Vivamente atingida, a Igreja reage apelando para a cultura intransigente, clássica receita dos tempos de crise, como quando mobilizou os católicos do mundo a se unirem ao redor do Papa “prisioneiro” em 1870. Desta vez, não são soldados armados que a atacam, mas a mídia mundial.
O comentário é de Giancarlo Zizola, jornalista italiano especializado em assuntos do Vaticano, publicado no jornal La Repubblica, 06-04-2010.
Do Times à revista Spiegel, do New York Times ao Washington Post, do El Pais ao Le Monde. Jornais que não deixam cair o tema dos abusos sexuais do clero e lançam uma nova acusação ao Papa Ratzinger de ter omitido qualquer alusão à crise da Igreja na mensagem pascal. Alguns chegam até a lançar a hipótese da demissão papal, outros liquidam o pontificado, na vigília dos cinco anos, como “missão fracassada” (Der Spiegel). A Rádio Vaticana denuncia, alarmada, uma “estrondosa campanha difamatória” contra o Papa, “apesar da sua ação decidida contra “a sujeira na Igreja”.
As movimentações do Vaticano nestes tempos de crise, uma crise cuja gravidade é, atualmente, difícil de comparar e medir, pois faltam ainda uma boa quantidade de dados – permitem que se perceba um mal-estar do sistema de administrar processos de crise recorrendo à arte do discernimento de prospectiva. Nesta arte, a Igreja parecia ser mestra.
Uma iniciativa totalmente fora do rito como a da homenagem pública do cardeal Sodano ao Papa no início da liturgia pascal, mostra, ao forçar a linguagem curial de vítima, a preocupação da cúpula do Vaticano em reforçar o pacto da totalidade da hierarquia católica ao redor do Papa, sem rachaduras.
Isso se dá quando é muito claro que a crise dos padres pedófilos, ainda que quantitativamente exígua, transmitiu ao conjunto do corpo hierárquico uma série de vibrações que, devido à sistema compacto da estrutura, colocaram o sistema em questão no que se refere a pontos delicadíssimos e fizeram voltar à baila debates que estão formalmente fechados como o que versa sobre o tema do celibato do clero latino.
Talvez Sodano avaliou as informações que afluem das dioceses católicas do mundo como sinais de um terremoto mais profundo. E o considerou mais perigoso não somente por causa da crise de desafeição desencadeada atualmente mas por perceber processos virtualmente cismáticos que alguns observadores católicos percebem já em curso no seio da Igreja.
Realmente, emergem novamente, por ocasião de uma crise tão dolorosa, insurreições nas comunidades eclesiais, seja sob a forma de protestos emotivos, seja de contestação do sistema de relações entre o clero e o povo dos fiéis ou apelos para que se desbloqueiem os processos de reforma a favor de um modelo de Igreja “de comunhão” que Wojtyla legou para o seu sucessor.
O pronunciamento de Sodano pode ser interpretado como um apelo a união das forças da Igreja na defesa de Roma. O movimento defende a boa fé de Bento XVI, cujo comportamento na crise é visto como inatacável por um observador qualificado como é o cardeal Martini. Ao mesmo tempo, revela que o sistema de governo da Igreja, privado da participação do colégio episcopal, não parece estar preparado para realizar adequadamente a tarefa de tirar o Papa da solidão do seu tabernáculo teológico para que seja capaz de por os pés e os ouvidos na história real do mundo, onde os anjos não voam.
O risco desta crise, aberta com um golpe audacioso do papa que rompeu, desde o alto, o sistema de encobrimento dos padres pedófilos, é fazer com que as forças involutivas na Igreja tenham um novo respiro para o combate, utilizando o complexo do estado de golpe contra a instituição eclesiástica. Segundo a análise da mídia feita por Sodano, que humilhou chamando-a de fofoqueira, segundo ele, denigre a Igreja, não somente desautoriza os papas do diálogo que a reconheceram como sujeito eclesial. Mas é o sintoma de uma recusa complexiva de discernir valores positivos na relativa autonomia da mídia e na enorme transformação civil em curso na sociedade global.
Uma coisa é deplora a ênfase e as distorções midiáticas, desejando uma informação eticamente sustentável. Uma outra coisa é desconhecer que a Igreja tirou vantagem do trabalho crítico e independente, da investigação e da denúncia, por parte da mídia, de mexer em algo que era sacralizado, na busca da verdade, a mesma que o Papa Ratzinger coloca como fundamento da moral. Sabemos que a Igreja “não é uma democracia”. É óbvio que o Papa tem o direito de seguir a própria consciência e não os humores da opinião pública e as suas pressões. Mas também é verdade que, sendo “comunhão”, a Igreja é mais que uma democracia, e não menos. E que “a Igreja sem a opinião pública, seria algo defeituoso”, dizia Pio XII.Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=31195 acesso em 6 abr. 2010.Foto: Angelo Cardinal Sodano, Secretary of State of the Vatican, during the festivity of San Ponziano in Spoleto (Perugia - Italy), January 15, 2006 / Starlight. 2006. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Sodano.jpg acesso em 6 abr. 2010.
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