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segunda-feira, 30 de abril de 2012

O GRANDE MISTÉRIO DO BATISMO



O GRANDE MISTÉRIO DO BATISMO

O Espírito vivifica

O Senhor que nos concede a vida, estabeleceu conosco a aliança do batismo, como símbolo da morte e da vida. A água é imagem da morte e o Espírito nos dá o penhor da vida. Assim, torna-se evidente o que antes perguntávamos: por que a água está unida ao Espírito? É dupla, com efeito, a finalidade do batismo: destruir o corpo do pecado para que nunca mais produza frutos de morte, e vivificá-lo pelo Espírito, para que dê frutos de santidade.

A água é a imagem da morte porque recebe o corpo como num sepulcro; e o Espírito, por sua vez, comunica a força vivificante que renova nossas almas, libertando-as da morte do pecado e restituindo-lhes a vida. Nisto consiste o novo nascimento da água e do Espírito: na água realiza-se a nossa morte, enquanto o Espírito nos traz a vida.

O grande mistério do batismo realiza-se em três imersões e três invocações, para que não somente fique bem expressa a imagem da morte, mas também a alma dos batizados seja iluminada pelo dom da ciência divina. Por isso, se a água tem o dom da graça, não é por sua própria natureza, mas pela presença do Espírito. O batismo, de fato, não é uma purificação da imundície corporal, mas o compromisso de uma consciência pura perante Deus.

Eis por que o Senhor, a fim de nos preparar para a vida que brota da ressurreição, propõe-nos todo o programa de uma vida evangélica, prescrevendo que não nos entreguemos à cólera, sejamos pacientes nas contrariedades e livres da aflição dos prazeres e do amor ao dinheiro. Isto nos manda o Senhor, para nos induzir a praticar, desde agora, aquelas virtudes que na vida futura se possuem como condição natural da nova existência.

O Espírito Santo restitui o paraíso, concede-nos entrar no reino dos céus e voltar à adoção de filhos. Dá-nos a confiança de chamar a Deus nosso Pai, de participar da graça de Cristo, de sermos chamados filhos da luz, de tomar parte na glória eterna, numa palavra, de receber a plenitude de todas as bênçãos tanto na vida presente quanto na futura.

Dá-nos ainda contemplar, como num espelho, a graça daqueles bens que nos foram prometidos e que pela fé esperamos usufruir como se já estivessem presentes. Ora, se é assim o penhor, qual não será a plena realidade? E, se tão grandes são as primícias, como não será a consumação de tudo?

Paz e Bem!

Fonte: Do Livro Sobre o Espírito Santo, de São Basílio, bispo - (Cap 15,35-36: PG 32,130-131) (Séc.IV)


São Francisco, o incompreendido

Antes de Francisco, a pobreza parecia apenas sacrifício e renúncia, enquanto, com ele, "através da experiência da pobreza", o homem renasce, "rico de um novo olhar sobre o real".

A opinião é do escritor italiano Luca Nannipieri, diretor do Centro de Estudos Humanísticos da Abadia de San Savino, em Pisa. O artigo foi publicado no jornal Europa, 26-04-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.
Jesus de Nazaré não foi compreendido no seu aspecto subversivo nem mesmo pelos seus primeiros seguidores. Segundo a antropóloga Ida Magli, de fato, "ele é o único que tentou uma obra impossível: mudar totalmente, subverter a cultura em que nasceu, enfrentando-a no seu focus, no seu centro, destruindo suas estruturas principais, negando todos os seus valores essenciais. Com base nas teorias antropológicas, é impossível que um indivíduo, pertencente a um determinado modelo cultural em que nasceu, fala a sua língua, absorveu os seus significados, valores, costumes desde o nascimento, pode sair dele, possa viver negando totalmente os seus conteúdos. Jesus, ao invés, conseguiu" (Gesù di Nazareth, Ed. Bur Rizzoli).

Cristo é uma figura insuperável, porque a radicalidade dos seus gestos jamais foi seguida plenamente nem mesmo pelos seus primeiros fiéis, mas apenas atenuada, circunscrita, limitada. Dois mil anos de cristianismo são também dois mil anos de traição da sua mensagem. A mesma sorte recaiu sobre Francisco de Assis.

O filósofo Massimo Cacciari reflete a respeito de modo admirável no livro Doppio ritratto, San Francesco in Dante e Giotto (Ed. Adelphi). Segundo Cacciari, Francisco testemunhou com a sua vida um modo de conceber a relação com o mundo, até então impensado senão por Cristo e jamais seguido depois dele. Com Francisco, o pobre não é mais "a figura de quem, absolutamente nada possuindo, está à mercê de todos, encolhido no canto. (...) Pobre não é o necessidade, aquele que carece-de, mas, pelo contrário, o perfeito, aquele que imita perfeitamente o Filho".

Antes de Francisco, a pobreza parecia apenas sacrifício e renúncia, enquanto, com ele, "através da experiência da pobreza", o homem renasce, "rico de um novo olhar sobre o real". Francisco não faz como os estoicos ou os sábios que convidam a desprezar os bens terrenos pela sua vaidade. A pobreza nele é uma escolha "que nada inveja, nada quer à disposição. Pobre é aquele que tudo “tem” como irmão e irmã, isto é, sem ter". "Somente o Pobre é verdadeiramente poderoso", porque a sua comunhão com as coisas é "livre da cadeia do possuir e do depender".

Essa revolução de pensamento permanece, porém, in-audita, não ouvida, a tal ponto que apenas "na solidão, em meio aos animais, ele a prega". Para Cacciari, essa novidade foi incompreendida seja pelos seus coirmãos, quanto por Giotto e Dante.

Giotto, nos afrescos da Basílica Superior de Assis, representa Francisco como uma figura pacificada, em harmonia com a sua Ordem, com a Igreja e a sociedade, enquanto, ao invés, o santo, quando vivo, foi uma alma em luta, dividiu grupos e pessoas, ficou desapontado com a sua própria Ordem, muitas vezes dilacerado em seu interior. E Dante, no Paraíso, trai a força de Francisco, porque não sente o porte inaudito da sua pobreza. O livro de Cacciari se detém no santo de Assis e nos dois sumos artistas, mas são claros as possíveis referências ao nosso tempo.

Matteo Renzi disse ter ficado impressionado com Nelson Mandela, mas o que aconteceria em Florença se Renzi tivesse a mesma radicalidade de visão que Mandela demonstrou? Walter Veltroni se inspirava muitas vezes em Martin Luther King, mas o que aconteceria com o Partido Democrático se Veltroni tivesse seguido concretamente a mesma subversiva novidade de valores que levou Luther King a abalar os fundamentos da sociedade norte-americana?

Todos nós sentimos a força catalisadora desses homens, mas, ao invés de igualá-la, a adaptamos, suavizando o seu ato subversivo, atenuando o seu radicalismo. Citamo-los, representamo-los como mitos, mas não queremos ser como eles.

Barcelona surgiu sobre o mito de Santa Eulália, uma menina de 13 anos, à qual, em 303 d.C., se impôs que renegasse o fato de ser cristã. Ela se recusou, e a trancaram em um barril de vidros e de pregos, e o fizeram rolar. Depois, arrancaram seus seios e, após a sua enésima rejeição, a pregaram em uma cruz. Agora, o seu corpo está na catedral, mas quantos desde então podem se dizer iguais a ela? Quantos amaram a força "desordenada" do Pe. Milani e da Escola de Barbiana? Porém, mesmo os seus próprios alunos não souberam regenerar a audácia da sua mensagem.

O Pe. Pietro Cesena, nos arredores de Piacenza, juntamente com um grupo de pessoas, repropõe hoje mesmo uma ideia de comunidade que remonta às origens da palavra evangélica, mas o que ele muitas vezes recebe, na católica cidade de Piacenza, é o silêncio, a desconfiança. Proclamar um valor ou testemunhá-lo. A diferença sempre foi enorme.

domingo, 29 de abril de 2012

Modo de conservar a reputação juntamente com o espírito de humildade


Modo de conservar a reputação
juntamente com o espírito de humildade


O louvor, a honra e a glória não são o
preço duma virtude comum, mas duma virtude rara e excelente. Louvando uma pessoa, queremos que outros a estimem, e, honrando-a nós mesmos, manifestamos a estima que lhe devotamos; e a glória é um certo resplendor da reputação que provém dos louvores que se lhe dão e das honras que se lhe tributam, semelhante ao brilho e esmalte de diversas pedras preciosas que, todas juntas, formam uma única coroa.

Ora, a humildade, nos impede de todo o amor e estima de nossa própria excelência, também não pode consentir que busquemos louvores, honras e glórias, que só são devidas ao merecimento da excelência e da distinção. Entretanto, aconselha o sábio que cuidemos de nosso bom nome, porque a reputação não se funda na excelência duma
virtude ou perfeição, mas nos bons costumes e na integridade da vida; e, como a humildade não proíbe crer que temos este merecimento comum e ordinário, também não nos proíbe que amemos e cuidemos da
reputação.
É verdade que a humildade desprezaria a
fama, se não fosse necessária à caridade; mas, sendo a reputação um dos principais fundamentos da sociedade humana e sendo nós sem ela não só inúteis, mas até perniciosos ao bem público, pela razão do escândalo que damos, a caridade nos obriga a desejá-la e conservá-la, e a humildade conforma-se com esses desejos e cuidados.

Não se pode dizer que o bom nome é para o homem o que o verde duma bela folhagem é para uma árvore? Com efeito, não são muito apreciadas as folhas duma árvore, mas servem para embelezá-la e conservar-lhe os frutos ainda verdes e novos; assim a reputação não é um bem desejável em si, mas serve de ornamento à nossa vida e muito nos ajuda a conservar as virtudes, principalmente as que ainda são tenras e frágeis; pois a obrigação de manter a reputação e ser em verdade aquilo que nos julgam tem grande influência e faz uma suave reação numa alma enerosa.

Conservemos as virtudes, porque são agradáveis a Deus, o grande e supremo fim de todas as nossas ações. Mas, como quem quer guardar por muito tempo alguns frutos intactos, não se contenta de os pôrem conserva, mas os coloca em vasos próprios para este fim, assim, ainda que o amor de Deus seja o principal conservador de nossas virtudes, utilmente poderemos empregar em conservá-las o amor à nossa reputação.

Contudo, não se deve fazer isso com um demasiado ardor e exatidão. Quem é, pois, tão sensível e delicado para com seu bom nome assemelha-se a certos homens que logo tomam remédio por qualquer incômodo insignificante, estragando assim a saúde em vez de conservá-la. E mesmo a delicadeza exagerada em conservar a fama a põe inteiramente a perder, porque essa sensibilidade extrema nos torna insuportáveis, aborrecidos e esquisitos e provoca contra nós as línguas maldizentes.

A dissimulação e o desprezo da detração ou calúnia é de ordinário um remédio mais salutar que o ressentimento, a contenda ou a vingança.

O desprezo dissipa tudo, ao passo que a cólera dá um ar de credibilidade ao que se diz. Conta-se que os crocodilos só mordem a quem tem medo deles; assim também, digo, a detração ou maledicência só prejudica a quem faz caso dela.  

Um temor excessivo de perder a fama dá
ensejo a outros de pensar que aquela pessoa não se fia muito de seus merecimentos ou da virtude que lhe serve de base. Numa cidade que só tem pontes de madeira sobre os grandes rios, crê-se que qualquer inundação as joga abaixo; mas onde as pontes
são de pedra só há perigo de ruína numa
inundação extraordinária.

As almas verdadeiramente cristãs desprezam essa torrente de palavras de que a detração enche o mundo; os fracos é que se inquietam de tudo o que dizem sobre eles. Sem dúvida, todo aquele que quer
ver a sua boa fama espalhada por toda parte, a perde completamente; e quem quer receber honras de homens desonrados pelo vício bem merece perdê-las totalmente.

A reputação não é como uma placa que dá a conhecer onde mora a virtude; a virtude lhe deve ser preferida sempre e em toda parte.

Portanto, se disserem que és uma hipócrita, porque vives cristãmente, ou um covarde, porque perdoaste a injúria que o próximo te fez, despreza semelhantes juízos;pois, além de virem de gente estúpida e por muitas razões desprezível, seria necessário abandonar a virtude para conservar a reputação. Os frutos das árvores valem mais do que as folhas; nós evemos preferir os bens interiores aos bens exteriores. Sim, pode-se ser cuidadoso de sua honra, mas nunca idólatra, e como nada se deve fazer que ofenda os olhos da gente de bem, tampouco se deve agradar aos olhos dos maus. O salmista diz que a língua maldizente é semelhante a uma navalha afiada e nós podemos comparar a boa fama a uma cabeleira que, sendo cortada ou raspada completamente, cresce ainda mais densa e bela; mas, se os cabelos forem arrancados até à raiz, já não crescem quase nunca. Assim também uma vida desregrada e escandalosa nos destrói a reputação e será dificílimo restabelecê-la. porque está destruído o seu fundamento ou a honradez dos costumes, que, enquanto existe, sempre nos pode restituir a honra que a difamação nos tiver roubado.

É necessário, portanto, deixar uma conversa vã, uma companhia Inútil, uma amizade frívola, um divertimento, um prazer, se a reputação sofre com isso, posto que valha muito mais que estas satisfações humanas. Mas, se, por causa de exercícios de piedade, do progresso na vida espiritual, de aplicação para merecer os bens eternos, o mundo murmurar, rosnar e prorromper em detrações e calúnias, deixemos, como se diz, os cães latirem contra a lua; a navalha servirá à nossa honra,
como a faca de podar a vinha, que a corta e faz abundar em uvas.

Tenhamos sempre os olhos fixos em Jesus
crucificado: caminhemos por suas sendas com confiança e simplicidade, mas também com prudência e discrição: ele será o protetor de nossa raputaçâo: e, se ele permitir que se manche ou perca inteiramente, será para nos enaltecer mesmo aos olhos  dos homens ou para nas fazer progredir na humildade, da qual te diga, em linguagem familiar, que uma onça vale mais que mil libras de fama.

Se nos repreendem injustamente, oponhamas a verdade à calúnia, com muita paz e sossego; e, se a calúnia ainda continua, permaneçamos nós em nossa humildade, depositando nossa honra e nossa alma nas mãos de Deus, com a que a conservaremos com muito maior segurança. Imitemos o divino Mestre na boa e má fama, camo dizia S. Paulo, para que possamos dizer como Davi: Por tua causa, meu Deus, tenho sofrido afronta; foi coberto de confusão o meu rosto.

Duas exceções, na entanto, é necessário fazer: a primeira concerne a certos crimes tão graves e infames de que ninguém deve sofrer a censura, se se pode justificar; a segunda é referente a certas pessoas, cuja reputação é necessária ao bem público. Nestes dois casos, segundo a sentença dos teólogos, é necessária defender-se tranqüilamente a reputação dos agravos recebidos. 

A paciência


A paciência


A paciência, diz o apóstolo, vos é necessária para que, fazendo a vontade de Deus, alcancemos o que ele nos tem prometido. Sim, nos diz Jesus Cristo possuireis vossas almas pela paciência.

O maior bem de todos nós, seres humanos, consiste, em possuirmos nosso coração e quanto mais o possuirmos tanto mais perfeita será a nossa paciência: cumpre, portanto, aperfeiçoarmos nesta virtude. Lembremos também que, tendo Nosso Senhor nos alcançado todas as graças da salvação, pela paciência de sua vida e de sua morte, nós também no-las devemos aplicar por uma paciência constante e inalterável nas aflições, nas misérias e nas contradições da vida.


Não devemos limitar a nossa paciência a alguns sofrimentos, mas estendê-la universalmente a tudo o que Deus nos mandar ou permitir que venha sobre nós. Tem muitas pessoas que de boa vontade aceita suportar os sofrimentos que de certa forma é honroso como: ter sido ferido numa batalha, ter sido prisioneiro ao cumprir o seu dever de cristão num país comunista, ser maltratado e humilhado pelos falsos seguidores da religião, tudo isso Ihes é suave; mas é a glória e não o sofrimento o que amam. A pessoa verdadeiramente paciente tolera com a mesma igualdade de espírito os sofrimentos ignominiosos e humilhantes como os que trazem honra. O desprezo, a censura e a deseducação dum homem vicioso e libertino é um prazer para uma alma grande; mas sofrer esses maus tratos de gente de bem, de seus amigos e parentes, é uma paciência heróica. Portanto aprecio e admiro muito mais o cardeal São Carlos Borromeu, por ter sofrido em silêncio, com brandura e por muito tempo, as ínvectivas e insultos públicos que o célebre pregador duma ordem reformada fazia contra ele do púlpito, do que ele ter suportado abertamente os insultos de muitos libertinos; pois, como as ferroadas das abelhas doem muito mais que as dos mosquitos, assim as humilhações vindas de gente de bem magoam muito
mais do que as que são feitas por homens viciosos e perversos. Acontece, no entanto, muitas vezes, que dois homens de bem, ambos bem intencionados, pela diferenças de opiniões, muito se agridem mutuamente.

Tenhamos paciência não só com o mal que sofremos, mas também com as suas circunstâncias e conseqüências. Muitos se enganam neste ponto e parecem desejar aflições, recusando sofrer as suas incomodidades inseparáveis. Não me afligiria, dizia alguém, de ficar pobre contanto que a pobreza não me impedisse de ajudar a meus amigos, de educar meus filhos, e de levar uma vida honrosa. E eu, declarava um outro, pouco me inquietaria disso, se o mundo não atribuísse esta desgraça à minha imprudência. E eu, dizia ainda um terceiro, nada me importaria com esta calúnia, contanto que as outras pessoas não acreditassem. Tem muitos que estão prontos a sofrer uma parte das incomodidades que vem junto com seus males, mas não todas elas, dizendo que não se irritariam de estar doentes, mas do trabalho que causam aos outros e da falta de dinheiro para se tratar. Digo, pois, que a paciência nos obriga a querer estar doentes, como Deus quiser, da enfermidade que ele quiser, no lugar onde ele quiser, com as pessoas e com todos os incômodos que ele quiser; e eis aí a regra geral da paciência! Se eu ficar doente, buscarei todos os remédios que Deus me conceder; pois esperar alívio sem empregar os meios seria tentar a Deus; mas, feito isso, devo me resignar a tudo e, se os remédios fazem voltar a saúde, agradecerei a Deus com humildade, mas se a doença persiste, bendirei-O com paciência continuando na busca do remédio certo. Sou do parecer de S. Gregório, que diz: Se me acusarem de uma falta verdadeira, humilha-me-ei, e confessarei que mereço muito mais que esta confusão. Se a acusação é falsa, justificar-me-ei com toda a calma, porque o exigem o amor à verdade e a edificação do próximo. Mas, se minha justificativa não for aceita, não devo me perturbar, nem me esforçar inutilmente para provar a minha inocência, porque, além dos deveres da verdade, devo cumprir também os da humildade. Assim, não negligenciarei a minha reputação e não faltarei ao afeto que devo ter à mansidão e humildade do coração.

Devo me queixar o menos possível do mal que me fizeram; pois queixar-se sem pecar é uma coisa raríssima; nosso amor próprio sempre exagera aos nossos olhos e ao nosso coração as injúrias que recebemos. Se houver necessidade de me queixar ou para abrandar o meu espírito ou para pedir conselhos, não o farei a pessoas fáceis de exaltar-se e de pensar e falar mal dos outros. Mas queixar-me-ei a pessoas comedidas e tementes a Deus, porque, ao contrário, longe de tranqüilizar a minha alma, a perturbarei ainda mais e, em lugar de arrancar o espinho do coração, o cravarei ainda mais fundo.

Muitos numa doença ou numa outra tribulação qualquer guardam-se de se queixar e mostrar a sua pouca virtude, sabendo bem (e isto é verdade) que seria fraqueza e falta de generosidade; mas procuram que outros se compadeçam deles, se queixem de seus sofrimentos e ainda por cima os louvem por sua paciência, Na verdade temos aqui um ato de paciência, mas certamente duma paciência falsa, que na realidade não passa dum orgulho muito sutil e duma vaidade refinada. Sim, diz o apóstolo, tem de que gloriar-se, mas não diante de Deus. Os cristãos verdadeiramente pacientes não se queixam de seus sofrimentos nem desejam que os outros os lamentem; se falam neles é com muita simplicidade e ingenuidade, sem os fazer maiores do que são; se, outros os lamentam, ouvem-nos com paciência, a não ser que tenham em vista um sofrimento que não existe, porque, então, lhes declaram modestamente a verdade; conservam assim a tranqüilidade da alma entre a verdade e a paciência, manifestando ingenuamente os seus sofrimentos, sem se queixarem.

Nas contrariedades que me sobrevierem no caminho da devoção (pois sei que delas não há de faltar), lembrar-me-ei que nada de grande podemos conseguir neste mundo sem primeiro passarmos por muitas dificuldades, mas que, uma vez superadas, bem depressa nos esquecemos de tudo, pelo intimo gozo que então teremos de ver realizadas as nossas aspirações. Pois bem, quero absolutamente trabalhar para me transformar em Jesus Cristo, como diz o apóstolo, em teu coração, como em tuas obras, pelo amor sincero de sua doutrina e pela imitação perfeita de sua vida. Há de custar-me algumas dores, sem dúvida; mas hão de passar e Jesus Cristo, que viverá em mim, há de encher minha alma duma alegria inefável, que ninguém me poderá furtar.
Se eu cair numa doença, oferecerei as minhas dores, a minha prostração e todos os meus sofrimentos a Jesus Cristo,  suplicando--lhe de os aceitar em união com os merecimentos de sua paixão. Lembrar-me-ei do fel que ele bebeu por meu amor e obedecerei ao médico, tomando os remédios e fazendo tudo o que ele determinar por amor de Deus. Desejarei a saúde para O servir, mas não recusarei ficar muito tempo doente para obedecer-lhe e mesmo disporei a morrer, se for a sua vontade, para ir gozar eternamente de sua gloriosa presença. Lembrar-me-ei, que as abelhas, enquanto fazem o mel, vivem dum alimento muito amargo e que também nós poderemos encher mais facilmente o coração desta santa doçura suavidade, que é o fruto da paciência, do que comendo com paciência o pão amargo das tribulações que Deus nos envia; e quanto mais humilhantes forem, tanto mais preciosa e agradável se tornará a virtude ao nosso coração.

Pensarei muitas vezes em Jesus crucificado; considera-o coberto de feridas, saturado de opróbrios e dores, penetrado de tristeza até ao fundo de sua alma, num desamparo e abandono completo, carregado de calúnias e maldições; verei então que minhas dores não se podem comparar às suas, nem em quantidade, nem em qualidade, e que jamais sofrerei por ele alguma coisa de semelhante ao que ele sofreu por mim.

Comparar-me-ei aos mártires, ou, sem precisar ir tão longe, às pessoas que sofrem atualmente mais do que eu e exclamarei, louvando a Deus: Ah! Meus espinhos me parecem rosas e minhas dores, consolações, se me comparo àqueles que vivem sem socorros, sem assistência e sem alívio, numa morte contínua. Presos de dores e de tristeza. 

sábado, 28 de abril de 2012

E ASSIM A VIDA NOS FOI DADA DE NOVO...






Eu morro por todos, diz o Senhor, a fim de que por mim todos tenham vida. Eu morro para resgatar todos pela minha carne! A morte morrerá em minha morte e, juntamente comigo, a natureza humana que caíra, ressuscitará.

Para tanto tornei-me semelhante a vós, um homem autêntico da descendência de Abraão, a fim de ser semelhante a meus irmãos. São Paulo compreendeu isto perfeitamente, ao dizer: Visto que os filhos têm em comum a carne e o sangue, também Jesus participou da mesma condição, para assim destruir, com a sua morte, aquele que tinha o poder da morte, isto é, o demônio (Hb 2,14).

Ora, aquele que tinha o poder da morte, e, por conseguinte, a própria morte, não poderia ser destruído de nenhuma outra maneira, se Cristo não tivesse se oferecido em sacrifício por nós. Um só foi imolado pela redenção de todos, porque a morte dominava sobre todos.

Por isso diz-se nos salmos que Cristo se ofereceu a Deus Pai como sacrifício imaculado: Sacrifício e oblação não quisestes, mas formastes-me um corpo; não pedistes ofertas nem vítimas, holocaustos por nossos pecados. E então eu vos disse: “Eis que venho.” (Sl 39,7-9).

O Senhor foi crucificado por todos e por causa de todos a fim de que, tendo um morrido por todos, vivamos todos nele. Não seria possível que a vida permanecesse sujeita à morte ou sucumbisse à corrupção natural. Sabemos pelas próprias palavras de Cristo que ele ofereceu sua carne pela vida do mundo: Eu me consagro por eles (Jo 17,19).

Com isso ele quer dizer que se consagra e se oferece como sacrifício puro de suave perfume. Com efeito, tudo o que era oferecido sobre o altar, era santificado ou chamado santo, conforme a Lei. Cristo, portanto, entregou seu corpo em sacrifício pela vida de todos e assim a vida nos foi dada de novo por meio dele. Como isso se realizou, procurarei dizer na medida do possível.

Depois que o Verbo de Deus, que tudo vivifica, assumiu a carne, restituiu à carne o seu próprio bem, isto é, a vida. Estabeleceu com ela uma comunhão inefável, e tornou-a fonte de vida, como ele mesmo o é por natureza. Por conseguinte, o corpo de Cristo dá a vida a todos os que dele participam; repele a morte dos que a ele estão sujeitos e os libertará da corrupção, porque possui em si mesmo a força que a elimina plenamente.

Paz e Bem!

Fonte: Do Comentário sobre o Evangelho de São João, de São Cirilo de Alexandria, bispo - (Lib. 4,2: PG 73,563-566)(Séc.V)


sexta-feira, 27 de abril de 2012

A fé não é uma ideologia e o marxismo não é uma fé

Entrevista com frei Betto
 
Pensar a relação entre religião e política na América Latina, nos anos de 1960, implica entender que esta relação está baseada tanto em conflitos como em convergências, tanto em legitimidades como em oposições, tanto em lutas como em aproximações. Longe de se tratar de uma questão “epocal” poderíamos sustentar que: “Uma visão, a longo prazo, nos mostra que na experiência histórica particular da América Latina [...] o ‘político’ e o ‘religioso’ – para além dos esforços de se racionalizar, controlar e rotinizar esses dois espaços – aparecem como ‘modalidades de ação’ onde se sobrepõem crer, sonhar, criar promessas de futuro e, sobretudo, dar sentido” (1). É inegável que parte dessa utopia socialista recebeu uma grande influência do cristianismo. Além disso, como sustenta Michael Löwy, o papel do fator religioso é determinante na hora de compreender o contexto de efervescência coletiva (2) e o fenômeno das guerrilhas na América Latina (3).

A entrevista (10-2011) é de Paulo Margaria, publicada no sítio Nuevo Mundo – Mundos Nuevos, 29-03-2012. A tradução é do Cepat.

Com o objetivo de refletir sobre a experiência brasileira, desta época, é que frei Betto (4) menciona, nesta entrevista, sua militância, a relação entre religião e política, o diálogo entre marxismo e cristianismo, e a luta armada como opção de luta política, fornecendo-nos algumas ferramentas para a compreensão da complexa relação entre religião e política.

Eis a entrevista.
Vamos começar falando de sua militância, na Ação Católica, como o início de sua militância na religião e na política. Você participava de um grupo em específico?

Comecei em 1959, na Ação Católica, que estava dividida em vários movimentos de acordo com a área de interesse, por exemplo, o A, E, I, O, U, a JAC, JEC, JIC, JOC e JUC. A JAC era a Juventude Agrária Católica, a JUC era a Juventude Universitária Católica, a JEC era a Juventude Estudantil Católica, formada por jovens secundários, da qual eu pertencia. Nesse momento, eu vivia em Belo Horizonte e Helder Câmara (5) foi um grande incentivador da Ação Católica no Brasil, ele era bispo auxiliar do Rio de Janeiro.

Eu comecei no ano de 1959, e em 1962 fui eleito para integrar a equipe de coordenação nacional da JEC, em todo o Brasil. Fui viver no Rio de Janeiro e, durante três anos, morei junto com a equipe de coordenação nacional da JUC. Os dominicanos de Belo Horizonte, que assessoravam a JEC, tinham uma cabeça aberta, progressista. Embora ainda não se falasse da Teologia da Libertação, já existia uma grande influência do padre Lebret (6), dos padres operários, que começavam a atuar na França, de Maritain, Mounier e de vários dominicanos do Brasil, que haviam estudado na França, que absorveram um cristianismo mais aberto e progressista. Então, na JEC e na JUC, nós já tínhamos uma visão muito progressista, de vincular a atuação política com a fé cristã, de evangelizar e conscientizar as pessoas para mudar o mundo e a sociedade. Desta mística, derivou a fundação de uma organização de esquerda que se chamava “Ação Popular”, que no início tinha uma implícita tonalidade cristã, porém, após o golpe militar de 1964, tomou um caminho marxista-leninista e, inclusive, dividiu-se, pois um setor abraçou o maoismo.

Em abril de 1964 houve o golpe militar e, em junho, pela primeira vez fui para a prisão, porque as duas equipes das coordenações nacionais, da JEC e da JUC, foram presas por 15 dias. No ano seguinte, posterior à experiência da prisão, ingressei nos dominicanos. Em Belo Horizonte, eu passei um ano de noviciado e, em 1966, vim para São Paulo. Aqui, envolvi-me com Marighella (7), com a Ação Libertadora Nacional.

Como conheceu Marighella? Em que circunstâncias?

Vários estudantes dominicanos, inclusive eu, estudavam na Universidade de São Paulo, e havia ali um movimento estudantil muito ardente, muito forte, de esquerda... Nos anos de 1960, houve uma divisão do Partido Comunista Brasileiro, porque o partido não queria entrar na luta armada e, então, Marighella rompeu e criou seu próprio grupo. Um estudante, que também estava nesse grupo, se aproximou de frei Osvaldo (8) - que hoje vive em Belo Horizonte – e lhe disse que um senhor, líder de seu grupo, queria contatar os dominicanos e, então, Marighella veio a nosso convento. Isso está muito bem descrito em “Batismo de Sangue” (9). Marighella apresentou-se com outro nome, “o professor Menezes”. Em seguido, ao final, quando nos apresentou sua literatura, nós não tivemos dúvidas de que era o próprio Marighella e, então, começamos a formar um grupo dominicano de apoio. Este foi o processo de aproximação e envolvimento com a luta armada.

O diálogo entre marxismo e cristianismo, que foi uma característica dos anos 1960 e inclusive de antes, foi bastante interessante e denso em termos filosóficos, teóricos e práticos. Como você viveu esse processo, essa tensão entre sua opção religiosa e sua opção política, em apoio à luta armada?

No Brasil ocorreu um fenômeno diferente do que aconteceu na Argentina e no Chile, porque nestes países muitos padres, quando descobriram a opção pelos pobres e o marxismo, saíram da Igreja. Aconteceu uma divisão entre padres e bispos, que eu trataria como um corte horizontal. Aqui, no Brasil, esse corte poderia ser considerado vertical, pois, existiam cardeais de direita e cardeais de esquerda, por isso, aqui, nunca foram criadas as organizações Sacerdotes para o Terceiro Mundo ou Sacerdotes para o Socialismo. No Brasil, isso não aconteceu. As pessoas, que vinham de fora, ficavam admiradas pela forma como nós, de esquerda e na luta armada, continuávamos na Igreja. Não precisamos sair do espaço eclesiástico para lutar, porque dentro de nosso próprio espaço existia apoio à luta. O nosso superior apoiava nossa luta, sabia que nós estávamos envolvidos na luta armada.

Então, a partir de 1960, começou o diálogo entre cristianismo e marxismo. Eu mesmo, no ano de 1961, era vice-presidente da entidade estudantil de Belo Horizonte, e havíamos conseguido ganhar as eleições numa aliança com os comunistas, contra a direita. Então, as pessoas da Ação Católica tinham um perfil de esquerda progressista e isso nos aproximava mais dos comunistas do que da direita reacionária. Daí, começamos a estudar muito o marxismo, mas, desde o início, desenvolvendo uma visão muito clara, com a ideia chave de que a fé não é uma ideologia e o marxismo não é uma fé. Isso que não foi chave em outras partes, criando uma enorme confusão, pois as pessoas acreditavam que abraçar o marxismo era abandonar a fé, não se podia ter fé e adotar o marxismo.

Para nós, o marxismo era um método de análise, não um dogma, não um catálogo de crenças. Na prisão, por exemplo, nós, os dominicanos, dávamos aulas de marxismo aos comunistas porque, curiosamente, o melhor manual de marxismo que havia neste momento era de um padre jesuíta francês, chamado Jean-Yves Calvez, que escreveu dois tomos sobre o marxismo (10): no primeiro, apresenta o marxismo e no segundo critica o marxismo. O primeiro tomo é uma perfeita apresentação do marxismo, com uma linguagem muito acessível e muito fiel ao que é o pensamento de Marx e, então, nós utilizávamos esse livro para dar aulas de marxismo aos marxistas. Portanto, eu diria que o diálogo cristianismo-marxismo se deu na prática, porque não pode haver diálogo entre cristãos e marxistas, como não pode haver diálogo entre cristãos e mulçumanos, se não houver uma prática comum. Qualquer outro diálogo fora da prática é uma discussão bizantina, sem sentido.

Em certa medida, essa questão dogmática, que você se refere, foi não haver entendido o marxismo de maneira mais aberta e como um projeto ou método de análise. Acredito que é uma das razões da “derrota” das esquerdas, na América Latina, nos anos de 1960 e 1970. Quais as conclusões que você tira dessas experiências?
Naquele momento, eu acredito que a luta armada foi justificada. Em nenhum momento afirmei ou escrevi que tenha sido um equívoco, não. Foi a única possibilidade de luta que havia naquele determinado momento, em fins de 1960 e início dos anos 1970. No entanto, avaliamos mal o inimigo, subestimamos o inimigo, e foi a partir daí que fomos descobrindo outras formas de luta, sobretudo porque naquele momento nossa forma de lutar era uma forma muito elitista, pois não tínhamos base popular. Éramos vanguarda de uma retaguarda que não existia, a não ser em nossa imaginação. Eu sempre afirmo o seguinte: tínhamos ideologia, tínhamos coragem – muita gente deu a sua vida -, tínhamos dinheiro das expropriações bancárias, tínhamos dedicação, porém não tínhamos um detalhe. Só que esse detalhe era os 90% de tudo, que era o apoio do povo e, por isso, fomos todos derrotados.

Porém, depois começamos a construir outros canais como o Partido dos Trabalhadores, o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra, a Central de Movimentos Populares e tudo isso; e começamos a fazer trabalho popular a partir das Comunidades Eclesiais de Base, dos movimentos populares sindicais. Aí, sim, construímos uma força política que levou Lula e Dilma à presidência da República e trouxe algumas mudanças não estruturais, mas significativas na história política do Brasil.

Nesse sentido, a Igreja no Brasil, nos anos de 1970, transforma-se num guarda-chuva que permite desenvolver a luta política?

Exatamente. No Brasil, no início, a Igreja apoiou o golpe militar, mas depois, quando a ditadura começa a perseguir a Igreja, ela assume uma defesa corporativa de seu corpo eclesiástico e vai se distanciando da ditadura e tornando-se cada vez mais crítica. O próprio Vaticano, com o papa Paulo VI, passa a ser crítico. Passa a ter uma atitude muito crítica e a apoiar a nós que lutávamos contra a ditadura, inclusive, quando estávamos na prisão, manifestou-nos apoio por escrito e nos deu um rosário de presente. É claro, realmente é um processo em que a Igreja se torna um guarda-chuva para todos aqueles que lutavam pelos direitos humanos e contra a ditadura, que não tinha nenhum respeito pelos direitos.

Tem uma frase no seu livro “Cartas da prisão” que me chamou muito a atenção. Numa das cartas, você se questiona: santo ou terrorista? Em certa medida, a tensão entre religião e política implica limites difusos e, nesse sentido, o julgamento legal que lhe fazem está baseado em encíclicas. Que sentido tinha esse questionamento?

Para nós, era muito claro que não havia possibilidade de separar religião e política. O arcebispo da África do Sul, Desmond Tutu (11), disse que “não há nada mais político que afirmar que a religião não tem nada a ver com a política”. Não existe religião ou Igreja politicamente neutra, existe Igreja que está muito satisfeita com o sistema, como no caso da Argentina e dos bispos que apoiaram a ditadura. Ou você apoia ou faz oposição, não existe um termo médio. Existe um discurso que tenta justificar a separação, este é um primeiro dado.

Em relação a um segundo dado, eu sempre afirmo que nós, os cristãos, somos discípulos de um prisioneiro político: Jesus não morreu por uma enfermidade na cama, nem por um acidente com um camelo, numa esquina de Jerusalém, morreu como muitos companheiros na Argentina e Brasil. Ele foi encarcerado, torturado, levado a julgamento e condenado a pena de morte na cruz. Então, dizer que Jesus não se meteu na política é uma ingenuidade, sobretudo, porque naquele momento a divisão cartesiana entre religião e política, que existe hoje, não existia; quem tinha poder religioso, tinha poder político, quem tinha poder político, tinha poder religioso. Pois bem, é necessário saber compreender que a religião é uma dimensão diferente da esfera política, são dimensões complementares em nossa vida e na vida social, mas, eu não vou a uma missa para receber o programa de um partido político, como também não vou a uma reunião política para dizer “vamos fazer agora uma oração”. É preciso fazer as modernas diferenciações, mas também é necessário ter a consciência de que não pode existir neutralidade. A religião sempre tem, implicitamente, uma clara posição política: a de legitimação do sistema de injustiça e opressão capitalista ou a de acusação, denúncia e não aceitação desta legitimação.

Sua experiência na prisão fez com que você se aproximasse muito mais da experiência religiosa...

Sim, muito mais. Porque a prisão é uma experiência de catacumba, como no caso dos mártires. Numa prisão, alguém se torna louco ou tem que mudar muitas coisas de sua vida. Para mim, a prisão foi um grande retiro espiritual, um momento de aprofundar bastante a minha vida de fé e a minha experiência religiosa. Neste sentido, foi uma escola e eu não lamento ter passado pela prisão, apesar de todo o sofrimento, é uma coisa que está muito incorporada em minha vida, não foi um hiato.

Como foi a experiência de convergência, nos anos 1970, dos grupos que se aproximaram da Igreja como uma maneira de seguir a militância política, na medida em que a ditadura suspendeu os direitos políticos?

Foi uma experiência muito rica, porque o ponto de encontro não era a fé, mas a luta contra a ditadura, pela democracia e pelos direitos humanos. Todos os grupos de esquerda, marxistas, que estavam nesta linha, se aproximaram da Igreja, porque, como você disse, a Igreja funcionou como guarda-chuva. Muitas pessoas, que nunca professaram a fé cristã, que nunca se aproximaram da Igreja, participaram ativamente, inclusive na Comissão Justiça e Paz, da Arquidiocese de São Paulo. Dom Paulo Evaristo Arns (12) abraçava a todas essas pessoas, sem pedir nenhuma certidão de batismo, nem nada. E aí foram sendo criadas muitas ferramentas de luta, a Comissão é uma delas, mas também surgiu o Clamor, que foi um grupo que também investigou a desaparecimento de crianças, durante a ditadura na Argentina e apoiou a elaboração do “Brasil Nunca Mais”, um trabalho clandestino, e havia muito receio por isso, e que foi um livro muito impactante, pois não se baseou em notícias de jornais, mas todos os seus dados foram retirados de documentos oficiais e da justiça militar. Enfim, foram apoiadas, também, muitas iniciativas relacionadas com a luta.

Por que o estado brasileiro nunca investigou os crimes da ditadura?
Porque ainda tem medo dos militares. Os militares são uma instituição muito forte e ainda não houve nenhum grupo político com a coragem de enfrentá-los. No entanto, houve pressão e, recentemente, está se formando uma Comissão da Verdade, que deveria ser da Verdade e da Justiça, porém não será feito Justiça porque foi criada, no Brasil, uma anistia esdrúxula, pois não se pode anistiar alguém que não foi acusado, nem julgado. Anistiar significa que você cometeu algo, que a lei reconhece como crime, e que, então, será anistiado. Porém, estas pessoas nunca foram acusadas, nem julgadas. Elas foram anistiadas, mas como uma operação jurídica. Existem pessoas da esquerda que apoiaram a anistia e isso é respeitável. Não há pressão suficiente para levar os militares a julgamento.

Por último, em geral, as ditaduras no Cone Sul tiveram o efeito de – em certa medida – romper o laço social e com isto, também, a possibilidade de assumir responsabilidades, de poder realizar um duelo. Como lutarmos para criar uma memória sobre este trauma? E, como prosseguir com a luta, numa perspectiva de esquerda, para que não se esqueça nunca mais, mas também para que não aconteça mais?

Bom, duas coisas. Primeiro, existe muitos trabalhos no Brasil para manter viva esta memória, por exemplo, a novela “Amor e Revolução” (13), que é muito dura com os militares. Existem, também, muitas peças de teatro e filmes sobre esta época, então acredito que existe um esforço para manter viva esta memória. Segundo, a reconstrução do laço também depende das pessoas, existem pessoas que não querem falar deste passado, outras que vivem deste passado e existem pessoas que, como eu, que fiz todas as minhas memórias sobre este tempo, já colocaram um ponto final para este período, não tendo mais nada para dizer. Eu escrevi três livros: “Batismo de Sangue”, “Cartas da Prisão” e “Diário de Fernando”. Atualmente, cada um segue uma forma de lutar diferente, no meu caso sigo assessorando os movimentos sociais, tentando abrir espaços que fragilizem o sistema capitalista. Para mim, organizar a esperança é organizar as bases.

Notas

(1)    Mallimaci, Fortunato, “Prólogo”, em Donatello, Luis. “Catolicismo e Montoneros: religión, política e desencanto”, 1ª ed. Bueno Aires: Manantial, 2010: p. 12.

(2)    Concordamos com Donatello que este conceito, de raiz na teoria sociológica clássica, permite pensar com maior complexidade e precisão o processo de transformação dos anos de 1960 e 1970, do que conceitos como radicalização, ruptura ou revolução. Donatello, Luis, op. cit.: p. 48.

(3)    Löwy, Michel. “Guerra de dioses. Religión y política en América Latina”, 1ª ed. em espanhol, México D. F.: Siglo XXI, 1999.

(4)    O escritor frei Betto é religioso dominicano e um dos principais representantes da Teologia da Libertação. Foi preso político nos anos da ditadura militar no Brasil. É autor de mais de 50 livros de diversos gêneros literários, de assuntos políticos e religiosos que foram traduzidos e editados em mais de 20 países. Recebeu numerosos prêmios internacionais pelo seu trabalho intelectual e sua militância em favor dos direitos humanos. Foi coordenador da ANAMPOS (Articulação de Movimentos Populares e Sindicais), participou da fundação da Central Única dos Trabalhadores (CUT) e da Central dos Movimentos Populares (CMP). Foi consultor e assessor da “Pastoral Operária do ABC” (São Paulo), e do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). Em 2003 e 2004, foi assessor especial do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, e coordenador da Mobilização Social do Programa Fome Zero e sócio-fundador do Programa Educação para Todos.

(5)    Helder Pessoa Câmara; (Fortaleza, 1909 – Recife, 1999) Sacerdote católico brasileiro cuja defesa da justiça social, assim como sua atitude de condenação das ditaduras latino-americanas, converteu-lhe em símbolo da chamada “Igreja dos pobres” e numa das figuras mais destacadas da Teologia da Libertação. Depois de ser nomeado arcebispo de Olinda e Recife, em 1964, e de ter ocorrido o golpe militar, que derrubou o presidente brasileiro João Goulart, ele foi uma voz crítica dentro da Igreja católica. Seu nome adquiriu reconhecimento internacional por sua defesa dos mais pobres e suas denúncias contra os atropelos da ditadura brasileira.

(6)    Louis-Joseph Lebret, (Le Minihic-sur-Rance, Bretanha, 1897 – Paris, 1966), foi um dominicano francês, economista e religioso católico, criador do centro de pesquisas e ação “Economia e Humanismo”, em 1942.

(7)    Carlos Marighella (1911-1969) nasceu em Salvador, Estado da Bahia. Foi membro do Partido Comunista Brasileiro (PCB). Depois de sua expulsão do Partido, devido a sua opção pela luta armada, fundou e foi o máximo dirigente da organização marxista “Ação Libertadora Nacional”, uma das principais organizações revolucionárias que optaram pela luta armada como forma de enfrentar a ditadura militar brasileira.

(8)    Oswaldo Augusto Rezende Jr., religioso dominicano companheiro de frei Betto. Integrou o grupo de freis dominicanos que apoiaram a luta da organização “Ação Libertadora Nacional”.

(9)    “Batismo de Sangue” é título do livro escrito por frei Betto, no qual relata sua experiência na prisão, descrevendo a participação dos freis dominicanos na resistência à ditadura, a morte de Carlos Marighella e as torturas sofridas pelo dominicano Tito de Alencar Lima (frei Tito).

(10)    Refere-se à obra “La Pensée de Karl Marx", París, 1956. Publicado em espanhol com o título “El pensamiento de Karl Marx”, pela editora Taurus, Madri, 1966.

(11)    Desmond Tutu foi o primeiro sul-africano negro a ser eleito e ordenado como arcebispo anglicano da Cidade de Cabo (África do Sul). Devido ao seu trabalho em defesa dos direitos humanos e de suas ações e pronunciamentos em favor da supressão do apartheid, foi reconhecido com o prêmio Nobel da Paz, em 1984.

(12)    Dom Paulo Evaristo Arns, frei franciscano, nos anos 1970 foi designado como arcebispo metropolitano da arquidiocese de São Paulo, pelo papa Paulo VI. Durante a ditadura militar, destacou-se pela sua luta contra a tortura, pelo restabelecimento da democracia, orientando sua pastoral para os marginalizados, na formação de comunidades de base nos bairros, principalmente nos mais pobres, e na defesa dos direitos humanos. Apoiou a investigação e a elaboração do relatório: “Brasil Nunca Mais” e integrou o movimento “Tortura nunca Mais”.

(13)    “Amor e Revolução” é a primeira novela brasileira que trata da ditadura militar (1964-1985), incluindo cenas sobre o funcionamento dos centros de detenção, durante o regime, e as torturas impostas aos militantes políticos. Foi colocada no ar, em abril de 2011, e produzida pelo canal SBT, um dos maiores em audiência. Esta novela, escrita por Thiago Santiago, gerou polêmica devido ao fato das Forças Militares do Brasil emitir um comunicado oficial solicitando a censura da sua transmissão.

quinta-feira, 26 de abril de 2012

"A Oração Contemplativa"


"A Oração Contemplativa"
de Thomas Merton


1. Na cozinha da minha casa, assim como eu imagino na de vocês, há uma caixa em cima do balcão com saquinhos de chá mate. E lê-se no rótulo: "Use e abuse". Isto somente para indicar que mesmo as melhores coisas podem nos trazer problemas, fato este já conhecido nos tempos de Aristóteles que afirmava: "Corruptio optimi pessima". (”A corrupção dos melhores é a pior. ")

2. No livro de Thomas Merton "A Oração Contemplativa", um de seus últimos trabalhos, ele trata dos "use" e "abuse" de uma das mais preciosas de todas as realidades: a vida espiritual, e mais particularmente, a oração. Por ela ser tão preciosa como um modo de nos unir a Deus e porquê seu abuso é potencialmente tão desastroso, como um modo de nos separar de Deus, Merton se dirige a seu público - tanto monges como leigos - com a combinação de zelo profético e intuição poética característica de seus melhores escritos.

3. Ele se baseia grandemente em suas citações de são João da Cruz, como ele faz 
freqüentemente, mas também faz numerosas referências à tradição mística do séc. XIV, tanto da Renânia (Tauler, Ruysbroeck) quanto da Inglaterra (Walter Hilton).

4. O que seria precisamente o abuso da vida espiritual? Reflexões sobre este tema nos círculos monásticos cristãos tiveram início já com Cassiano, no séc. V. No último livro de suas Instituições, Cassiano aborda a "paixão" do orgulho espiritual. Ela é - afirma ele - a principal e a raiz de todas as paixões/vícios, mas ela só é percebida claramente uma vez que a pessoa espiritual tenha travado batalha com bom êxito contra todos os outros vícios.

5. Orgulho espiritual, diz Cassiano, é a perversão da realidade espiritual por fins egoístas. Há em todos nós, seres humanos, um profundo desejo de instrumentalizar tudo - até mesmo Deus - a fim de glorificarmos a nós mesmos, a fim de afirmar nossa importância última. Desejamos instrumentalizar a Deus em nossas buscas espirituais, possuí-Lo, a fim de que possamos ser - ser eternos, ser independentes, não mais ser criaturas contingentes, mas como seres auto-evidentes, necessários.

6. Talvez pareça estranho e mesmo incrível que até o monge - obediente, silencioso, humilde - possa estar nutrindo estes desejos luciferianos em seu coração, mas isso está, de acordo com a tradição monástica (desde Cassiano até Merton) no centro penúltimo de cada pessoa. Penúltimo porquê a única realidade mais profunda no coração humano é o próprio Deus.

7. A maioria das pessoas não experimentará o orgulho espiritual conscientemente, ao menos não com plena força. Elas o experimentarão em sua forma oculta de "orgulho carnal" - como individualismo, falta de cooperatividade, ambição - e talvez elas não se dêem conta sequer disto. Mas se elas decidirem se lançar na batalha espiritual e se perseverarem nela, elas chegarão a esta última e pior batalha antes da puritas cordis (pureza de coração)- a batalha contra a tentação de sujeitar a Deus aos seus próprios propósitos.

8. Na própria tradição cisterciense de Merton, este orgulho espiritual é descrito como um desejo de ingerir a Deus através do conhecimento - fazer de Deus o objeto final, mais fascinante e deleitável de nossa quase infinita capacidade de compreender a verdade. Evidentemente, o problema não é o desejo de conhecer a Deus (que o próprio Deus coloca no coração e na mente humana), mas o desejo de governá-Lo - tê-Lo, controlá-Lo - através do conhecimento. Este modo medieval de descrever o orgulho espiritual iria assumir sua forma mais dramática na história de Fausto - o desejo de vender a própria alma ao Diabo a fim de conhecer tudo, de conhecer o Tudo. Para os cistercienses, o atrativo, o risco e a punição de tal orgulho estavam todos expressos no versículo muitas vezes citados dos Provérbios: "Scrutator maiestatis opprimatur a gloria" ("Aquele que busca penetrar os segredos da divina majestade será esmagado pela glória divina"). 

9. Aonde entra Merton em tudo isto? Como um descendente de toda a tradição monástica ocidental, obviamente, mas também como um herdeiro do existencialismo cristão (Kierkegaard, Marcel). Merton descreve a situação espiritual do homem interior como de um  temor ("dread"). Temor, para Merton, é uma realidade multifacetada. É, antes de tudo, nossa criaturidade e contingência, o fato de virmos "de Deus". Isto, obviamente, não é em si mesmo pecaminoso ou terrível - teoricamente deveria ser maravilhoso e regozijante. Mas o homem colocou no cimo de sua criaturidade uma recusa de sua criaturidade, um desejo tenaz de afirmar-se como livre de Deus (tanto ontologicamente quanto em termos de obrigação moral, ambos perfazendo aquilo que Merton se refere como sendo a obedientia fidei). Como esta recusa é uma mentira, a situação é de um contínuo desconforto, para dizer em termos leves (cf. o solilóquio de Lúcifer no primeiro livro de "Paradise Lost"). Na tentativa de solucionar este desconforto, a pessoa, ao invés de se arrepender e converter-se, cria toda uma cultura e mitologia para proclamar sua autocriada realidade inveraz. Ele vive - diz Merton - em contínua inautenticidade, recusando-se em devolver a Deus e aos outros, em amor e serviço, a superabundância que ele recebeu ao ser criado. Toda esta falta de integridade, toda esta construção de sua existência interior na inverdade, produz o estado de temor; uma mistura de teimosia, náusea, sentido de perda, medo e mágoa.


10. Aqui vem a parte mais estranha, diz Merton. O homem espiritual moderno - seja ele monge ou leigo, cristão ou não-cristão - ao invés de usar proeza ascética ou conhecimento intelectual como a base para seu orgulho espiritual, tende a usar a oração para este fim. Oração, que por sua natureza é uma total auto-entrega nas mãos de Deus, pode ser a arma mais potente no arsenal que empregamos para rechaçar a Deus e persistir em nossa inautenticidade. A oração pode ser desenvolvida, ano após ano, década após década, como um modo de engrossar a casca de nosso individualismo até que finalmente nos tornamos quase inteiramente inacessíveis a Deus. A oração pode ser a mais potente arma a nos manter totalmente fora da vivência da realidade.

11. Para Merton, monge trapista por quase três décadas, tal auto-ilusão era um perigo profissional. Aqueles que estão familiarizados com suas cartas e diários sabem como ele sofreu encontrando este tipo de artificialidade espiritual (ele adorava usar a gíria "bogus" para descrevê-la) em sua própria comunidade monástica e sofreu ainda mais ao ver esta tendência em si mesmo. Por esta razão, Merton, como muitos autores espirituais, fala do risco da vida contemplativa "oficial". Muito mais segura é a vida de tarefas simples e oração no contexto de família, trabalho, vizinhança; muito menor, no contexto das pressões das responsabilidades interpessoais no "mundo real", a tentação de construir e decorar-se como um santo monge, um santo esperando com segurança a data de sua ascensão à glória.

12. Não devemos rezar, então? Para Merton, vida sem oração é impensável, mas a fim de rezar genuinamente, nossa noção de oração e o nosso modo de rezar em si deve ser virado do avesso, assim como estes, por sua vez, devem nos virar do avesso, tornar-nos radicalmente diferentes e alterocentrados. Devemos vir a compreender que oração genuína não diz respeito a amar e conhecer a Deus (nós muito facilmente transformamos isto numa tentativa de dominá-Lo), nem a capturá-Lo como um objeto, ainda que como o supremo Objeto, mas diz antes respeito a experimentar a si mesmo e experimentar a si mesmo como se é realmente - como criado, sustentado, conhecido e amado por Deus. O caminho da experiência contemplativa de Deus, diz Merton provocativamente, se dá através da jornada da experiência cada vez mais profunda e autêntica de nós mesmos - àquele centro aonde nós descobrimos a nós mesmos como apoiados por Ele. Nós jamais O alcançaremos, exceto se permitirmos que Deus conhecendo a nossa pessoa, possa nos revelar como somos e possamos conhecer a nós mesmos.

13. Se a oração é uma jornada ao centro do coração e ao Deus que lá habita, nós podemos esperar que a jornada seja dura. Como já foi dito, nós fugimos com toda a intensidade de nossos medos e a rebelião que fazemos ao nosso centro de dependência cria o que nós experimentamos como desgraça e miséria. E de fato, em grande parte, o que há em nós é desgraça e miséria, não porque Deus assim nos criou, mas porque falsificamos o nosso ser. Quanto a isto, a oração será um verdadeiro purgatório no qual passo a passo nós precisaremos deixar que o conhecimento e o amor de Deus, na medida em que eles tomam conta de nós, desfaçam as múltiplas e enodadas mentiras que havíamos tramado. Como Mestre Eckhart diz: "Uma vez que nos damos conta que tomamos uma direção errada e afastamo-nos da estrada, a volta à estrada certa será tão longa quanto o desvio feito".

14. Como devemos rezar? Merton constantemente fala neste texto da oração como meditatio: a repetição interior de um versículo das Escrituras que é ao mesmo tempo a expressão de nossa verdadeira condição espiritual e um chamado à libertação. Como sabemos, na tradição cristã oriental, o versículo mais comumente usado é aquele que chamamos de "a oração de Jesus": "Senhor Jesus Cristo, Filho de Deus, tende pena de mim, pecador", enquanto que no Ocidente, a invocação vem do Salmo 69 (como foi transmitida pela tradição do deserto e por Cassiano): "Ó Deus, vinde em meu auxílio". Um tal versículo deve tornar-se a própria vida de alguém - ele se torna uma única coisa com a realidade de minha identidade. Eu reconheço a mim mesmo radical e continuamente como aquele que necessita o auxílio de Deus, como o pecador à beira da estrada à espera da passagem do Senhor Jesus Cristo e de sua misericórdia. Este processo de compenetração entre o texto das Escrituras e a pessoa do orante é a "oração do coração" e o anseio de uma tal pessoa é que a oração em questão "desça da mente até o coração", tome posse da pessoa, a fim de que a pessoa se torne aquela oração.

15. Deus nos livre, diz Merton, que uma tal oração se transforme num "hobby", ou em algo chique, ou simplesmente numa maneira de alguém acalmar as próprias emoções perturbadas. Lidar com a oração deste modo seria análogo a uma recepção profana da Eucaristia (a comparação é minha, não de Merton). A imensa alegria, paz e paciência experimentadas pelo peregrino russo no texto bem conhecido do século XIX não vêm como resultado do aperfeiçoamento de sua técnica (Merton tem algumas palavras muito ríspidas a dizer a este respeito), mas porque o Senhor vivo Jesus Cristo penetrou no coração do peregrino através da prática perseverante da oração e o peregrino se regozija imensamente nesta inabitação. Assim, uma tal jaculatória, ao invés de ter seu valor em seu efeito calmante ou em sua capacidade de nos "preparar" para a contemplação, é a expressão lingüística da verdade de nosso ser: nossa necessidade de Deus, nosso desejo de Deus e de Sua vinda misericordiosa.

16. Toda oração, de acordo com Merton, deveria ser, neste sentido, meditatio. Que utilidade, diz ele, tem a salmodia, toda a grande construção que nós conhecemos como Opus Dei, senão ser uma meditação atenta da Palavra de Deus, sendo penetrados por ela, uma compunctio (que toca o coração)? Aqui, mais uma vez, se a oração não for a honesta busca angustiante (ou o alegre encontro) de Deus e de Sua misericórdia, ela será um sedativo, uma maneira esteticamente agradável de preencher as longas horas de lazer no dia monástico. Ele aponta para a tradição do deserto, onde o Saltério, acima de todos os outros livros da Bíblia, era aquele que dava expressão aos medos e combates mais profundos do monge e oferecia a ele um vocabulário através do qual ele podia vocalizar sua fome e sede do Deus vivo.

17. Conforme continuamos em oração, é natural que ela se torne mais simples, mais obscura, com menos qualidades (Eigenschaften(propriedade)). Todos nós estamos familiarizados com vários termos para este período da experiência - deserto, noite, vazio, nada. Estes termos buscam refletir um número de realidades interconexas, diz Merton. Primeiramente, uma maior aceitação experimental da pobreza de nosso ser. Em segundo lugar, o silencioso porém ininterrupto trabalho de Deus na oração, purificando-nos cada vez mais e mais daquela resistência essencial a Ele e à Sua graça (impossível superestimar como, em última análise, a oração é mais a atividade de Deus do que nossa). Em terceiro lugar, a simplificação de nossa complexidade. Na noite da oração, aprendemos a não pedir nada em particular a Deus, porque chegamos a intuir que Deus não é algo em particular. É a maneira do espírito imperfeito, diz João da Cruz, de buscar na oração paz, conhecimento, consolação, luz. Nenhuma destas coisas são Deus, mas somente as conseqüências de Sua graça e quando as buscamos, podemos saber que estamos mais uma vez recaindo temerariamente em orgulho espiritual. O contemplativo, por desejar somente a Deus, não buscará nada destas coisas. De fato, diz Merton, a genuína oração contemplativa pode ser definida como uma "preferência pelo deserto", o "desejo de não saber mais do que o de saber". Então a oração se torna (ainda que sofridamente) mais e mais semelhante a Deus: sua falta de imagens, conceitos ou sentimentos, embora dolorosa para nós, nos traz mais próximos ao Deus verdadeiro, transcendente.

18. Em toda grande tradição contemplativa, chega finalmente (realmente no final) o feliz choque. O trabalho divino de purificação está essencialmente feito, a resistência foi ultrapassada e Deus faz por nós, à nossa vista, o que Ele sempre tem feito - ama-nos, salva-nos, vive em nós, age em nós. Na Regra de São Bento, à qual Merton se refere neste contexto, há o salto do décimo segundo grau da humildade, onde o monge, todo curvado pelo conhecimento de sua pequenez, é de repente exaltado a um êxtase produtivo-silencioso-estável dentro da caridade de Deus. Em João da Cruz (São Bento, perdoe a minha traição!), a realidade é descrita de modo ainda mais belo: a alma experimenta em seu próprio centro o banquete da Santíssima Trindade - as três Pessoas Divinas, fonte transcendente e fim de toda a realidade, são descobertas dentro de si, vivendo sua vida eterna de ser, conhecimento e amor e superabundantemente comunicando esta vida à pessoa. Somente a pessoa que passa através do abismo do "eu" conhecerá isto experimentalmente, a pessoa que toma com absoluta seriedade o mistério pascal: que a existência cristã é morte ao velho homem em suas ilusões e desejos e renascimento no Cristo Ressuscitado, na filiação divina. Esta compreensão da total importância da centralidade do mistério pascal é a única justificativa da oração.

19. Poderíamos, com Merton, afirmar que é aqui que a vida humana realmente começa, 
vida "impávida". Agora em contato com as águas vivas da vida de Deus, a pessoa de oração possui interiormente o que Merton chama uma "participação na caridade universal de Deus". Agora se torna possível - natural - para ele viver de acordo com o Sermão da Montanha, perfeitamente como seu Pai celeste é perfeito, perfeito no sentido que seu amor flui para todos os seres humanos, para todos os seres sensíveis. Tal pessoa experimenta agora que este amor evangélico, se ele pudesse porventura ser descrito como um dever, era um dever impossível antes que a morte e ressurreição de Cristo se realizassem em sua vida, em sua oração. Como poderia a pessoa que decidiu ficar em oposição e em contradição a Deus, que rejeitou sua identidade de criatura, poder sempre sentir brotando de dentro de si o amor indistinto do próximo ? (observe mais uma vez a ausência de limites particulares) – Se alguém não tem ao orar um desejo fundamental, de que nós somos capazes de amar a todos, abraçar a todos, no poder do Espírito Santo. Aonde este amor ativo - ativo ao servir em qualquer vocação que Deus nos tenha colocado - que gradualmente se transforma em toda a nossa orientação, a oração - diz Merton - é deveras um ópio. É somente assim que a vida divina flui desimpedida em liberdade na nossa consciência.



20. Nós encontramos neste livro da maturidade de Merton a constelação de seus temas centrais: oração e identidade existencial, oração e ação, oração e maturidade espiritual, oração e amor universal, oração e o encontro com o fundamento do ser. Ao invés de aparecer disparatado em algum modo, estes temas estão vitalmente unidos, todos expressando o desejo ardente de Merton de ser "virado do avesso" pelo Deus vivo. Embora quase não haja referências a autores não-cristãos e muito poucas a escritores protestantes (Jacob Boehme), o livro é ecumênico naquilo em que se ocupa predominantemente: como, através da oração, a humanidade teimosa e de cabeça dura pode tocar, no sentido mais profundo da palavra, o Deus Infinito que está sempre ocupado em amá-la e salvá-la. Por este motivo, não é de se surpreender que o prefácio do livro foi escrito por um budista e a introdução, por um Quaker. 

quarta-feira, 25 de abril de 2012

CRÔNICAS DE MINHA ALMA - ENTÃO, COMO ME SINTO AGORA?




CRÔNICAS DE MINHA ALMA - ENTÃO, COMO ME SINTO AGORA?



Os sentimentos são algo que sentimos nas situações que vivenciamos, e que podem ser para o nosso bem ou para o mal, dependendo das decisões tomadas, porque eles são fruto do que cultivamos com os nossos sentidos. Nossa alma é dotada de três faculdades básicas, que regem nossos sentidos a fim de que mantenhamos o equilíbrio necessário à nossa sobrevivência e bem estar no mundo, pois foi para isto que Deus nos criou. A saber, são estas as faculdades da alma: volitiva, que diz respeito à nossa vontade; intelectiva, que diz respeito ao nosso intelecto e tudo o que se processa nele; e, apetitiva, que diz respeito aos nossos desejos. Ora, elas são livres, desde que não as submetamos à prisão de nossos instintos, pois o poder de decisão é nosso e somente nosso, isto em se tratando de uma pessoa naturalmente normal, ou seja, em plena posse das faculdades de sua alma.

Caso nos deixemos levar só pelos instintos, nos tornamos escravos das decisões instintivas que geram os vícios e toda inclinação para o mal que vemos na face da terra. É como nos ensinou Jesus: “Ora, o que sai do homem, isso é que mancha o homem. Porque é do interior do coração dos homens que procedem os maus pensamentos: devassidões, roubos, assassinatos, adultérios, cobiças, perversidades, fraudes, desonestidade, inveja, difamação, orgulho e insensatez. Todos estes vícios procedem de dentro e tornam impuro o homem”. (Mc 7,21-23). Logo, precisamos de uma fonte geradora de liberdade, para que nossas decisões sejam tomadas em Deus e para Deus, porque somente em Deus somos verdadeiramente livres e felizes.

Então, qual é essa fonte infinda de liberdade, que nos faz tomar decisões em conformidade com a vontade de Deus? São Paulo nos ensina qual é: “Vós, irmãos, fostes chamados à liberdade. Não abuseis, porém, da liberdade como pretexto para prazeres carnais. Digo, pois: deixai-vos conduzir pelo Espírito, e não satisfareis os apetites da carne. Porque os desejos da carne se opõem aos do Espírito, e estes aos da carne; pois são contrários uns aos outros. É por isso que não fazeis o que quereríeis”.

“Se, porém, vos deixais guiar pelo Espírito, não estais sob a lei, porque, o fruto do Espírito é caridade, alegria, paz, paciência, afabilidade, bondade, fidelidade, brandura, temperança. Contra estas coisas não há lei. Pois os que são de Jesus Cristo crucificaram a carne, com as paixões e concupiscências. Se vivemos pelo Espírito, andemos também de acordo com o Espírito. Não sejamos ávidos da vanglória. Nada de provocações, nada de invejas entre nós”. (Gal 5,13a.16-26).

Portanto, o ser humano não é só carne, mas somos almas viventes, dotados por Deus de capacidades naturais e dons especiais para agirmos bem; e mais ainda, depois de batizados, recebemos em Jesus Cristo o dom do Espírito Santo, para vivermos como filhos e filhas de Deus que se destinam à vida Eterna.

Então, como me sinto agora? Depende da história que cada um de nós fazemos, se é de salvação ou de condenação. Se for de salvação, nossos sentimentos têm como fonte de inspiração o próprio Deus, e nos levam para Ele (cf. Col 3,17); se de condenação, nossos sentimentos têm como fonte de inspiração nossos instintos naturais desprovidos da graça santificante do Senhor, que nos levam à repulsa de Deus e de tudo o que diz respeito a Ele. (Leia 1Cor 2; Rm 8,5-17).

Destarte, “amai a justiça, vós que governais a terra, tende para com o Senhor sentimentos perfeitos, e procurai-o na simplicidade do coração, porque ele é encontrado pelos que o não tentam, e se revela aos que não lhe recusam sua confiança; com efeito, os pensamentos tortuosos afastam de Deus, e o seu poder, posto à prova, triunfa dos insensatos”. (Sab 1,1-3).

Paz e Bem!

Frei Fernando,OFMConv.


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