A análise é de Marco Cattaneo, publicada no jornal La Repubblica, 18-09-2010. A tradução é de Benno Dischinger.
A ciência não é nova a descobertas “contra-intuitivas”, que desmentem as impressões mais superficiais. Hoje quase todos sabemos que um corpo mais pesado não cai mais velozmente que um mais leve, como ensinava Aristóteles, nem o Sol gira em torno da Terra, embora pareça fazê-lo a cada dia. Tocou precisamente a Darwin, grande admirador de Paley, dar-se conta por primeiro que os organismos evoluem por conta própria e não pela mão de um projetista escondido atrás dos bastidores. Estas observações inauguraram um longo e doloroso trabalho interior que o levou com os anos a abandonar a fé, com grande perturbação da mulher que temia que o marido prejudicasse seu futuro ultra-terrestre.
Os físicos, bem antes dos biólogos, se tinham dado conta que o funcionamento do mundo pode ser explicado sem precisar levantar a hipótese da existência de um Deus. Já hoje, de resto, talvez nem sequer os teólogos pensem que Deus tenha criado cada uma das espécies vivas, ou que eventualmente teria criado o antepassado a todas comum. Se neste século, como é muito provável, se conseguirá gerar a vida em laboratório de matéria não viva, a “hipótese de Deus” deverá dar um novo passo para trás. É verdade, quem quiser crer na existência de um Criador supremo, poderá dizer que Deus quer permanecer por trás dos bastidores para não interferir com a liberdade do homem. “A natureza gosta de esconder-se”, dizia Heráclito: eis uma afirmação que o homem de ciência e o homem de religião podem interpretar de modos diametralmente opostos.
Não nos parece que a existência ou não de Deus possa ser provada logicamente. Entre os cientistas também se encontram pessoas de fé religiosa. De nossa parte, o fato de que da matéria possa ter nascido a vida e que a vida tenha dado forma a si mesma em centenas de milhões de formas diversas no decurso de sua longuíssima história, é não só razão de espanto, admiração e estupor, mas nos suscita uma curiosidade inexaurível e a imensa satisfação de participar disso. Se raciocinarmos sobre nossa espécie, encontramos como entusiasmante o fato de que todo comportamento, toda ética, toda filosofia e ciência, bem como toda política sejam uma simples criação humana e sempre mais assim no decurso dos aproximadamente 100.000 anos de evolução do homem moderno. E que não exista um parâmetro divino sobre o qual mensurar-se, nem alguma verdade absoluta, mas somente a certeza de nascimento e morte. Isso investe de responsabilidade cada gesto nosso. De suas ações o homem há de responder somente a si mesmo, aos outros homens e à natureza. Depende de nós, seres humanos, fazermos da vida um paraíso ou um inferno e do planeta um jardim ou um deserto.
A responsabilidade pessoal de cada um diante de tudo e de todos é a raiz de uma moralidade verdadeira que nos abre a possibilidade de desenvolver os melhores potenciais humanos. De dar, por assim dize, novas formas a nós mesmos. Seria assim se tivéssemos sido formados por um “projeto” que nos precede? Que exista ou não exista um Deus, a humanidade tem mostrado ter disso necessidade, em geral, pelo menos no decurso dos últimos milênios. A incerteza do futuro, o medo da dor e da morte, condições miseráveis de vida, o triunfo perene da violência e da injustiça: projetamos a esperança de um resgate fora de nós e além das repugnâncias da vida, portanto além da própria vida, se esta não tem outra coisa a oferecer. A fé religiosa pode assim revelar-se uma vantagem do ponto de vista evolutivo, porque a esperança de uma vida melhor no além atenua o terror da morte e dá força para levar em frente a vida, por dura que seja, e a esperança de um juízo divino que se abaterá sobre os culpados conforta quem já não espera mais na justiça humana.
Se não ajudassem a sobreviver e reproduzir-se, de resto, as religiões teriam desaparecido a tempo da face da Terra. Satisfazem a necessidade de um pai e de uma mãe, de um guia para viver, de esperar que a sorte nos reserve algo melhor e especial. Fantasias que por milênios tem sido quase uma necessidade, mas das quais o mundo moderno tende a fazer progressivamente menos caso. A moralidade laica de quem sabe que deve prestar contas somente a si mesmo e aos outros nos parece amplamente preferível e mais avançada, do que a moralidade de quem age com base em critérios fixados por entes eternos ou, talvez, por temor de punições post mortem.
Se quisermos, a verdadeira prova da inexistência de Deus não vem da lógica, mas da história: é nos horrores, nos morticínios, nas iniqüidades sem fim de que se tem tornado responsáveis as religiões, as confissões, as igrejas. A idéia de Deus naufragou nos mares de infâmias praticadas em seu nome, com freqüência promovidas por seus sumos sacerdotes. “Alguns o chama Ram; os outros o chamam Rahim; depois se matam um contra o outro”. Assim dizia Kabir, místico indiano que viveu no século quinze, dos muçulmanos e dos hindus seus contemporâneos. Em línguas diversas, tanto “ram” como “rahim” significam “amor”.
Para ler mais:
- ''O transcendente não pode deduzir-se do imanente''
- O grande desígnio
- ''Hawking se equivoca, porque aplica categorias finitas ao infinito''
- A ideia de Deus como criador do Universo é descartada por Hawking
- ''Deus não criou o Universo'', afirma Stephen Hawking
- Hawking e o universo: com ou sem Deus?
- Incrível mesmo seria se a ciência usasse fé como explicação
Imagem: Detalhe de Vitral ciência na Fuculdade de Direito da UFRGS / Eugenio Hansen, OFS. 2010. Original disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Direito-ufrgs-5.JPG acesso em 24 set. 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário