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quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

A Espiritualidade e o Carisma de Clara de Assis (I)


Autora: Irmã Sandra Maria, Clarissa
 
Introdução

Desejamos elucidar os temas espiritualidade e carisma, primeiro em termos de experiência cristã, em seguida, dentro do sentido e da diretiva que Clara de Assis com originalidade aponta, para que possamos aprofundar o caminho de experiência espiritual clariano. Falar de espiritualidade e de carisma é falar de experiência. A experiência não é uma realidade assim tão clara. É sempre difícil partir da experiência e clarificá-la, porque é um dos conceitos mais enigmáticos e difíceis da filosofia. Mas podemos nos aproximar de forma simples do mundo da experiência espiritual cristã, franciscana e clariana, colocando em evidência seus matizes próprios. Nossa espiritualidade está ligada ao modo de viver os dons que Deus nos deu, e precisamos ter clareza sobre as suas linhas fundamentais.

1. O que é espiritualidade

Espiritualidade é a realidade vivida, elaborada (transformada em teoria), uma modalidade própria de viver e encarar os princípios teologais, a nossa fé, a esperança e a caridade, o seguimento evangélico. Para viver uma espiritualidade autêntica precisamos de docilidade à ação do Espírito e aos seus desenvolvimentos e moções, numa vida conforme nosso Senhor Jesus Cristo: isso implica um caráter existencial, concreto, afetivo e dinâmico. É necessário nos comportarmos de modo a progredir na espiritualidade. Uma vida segundo o Espírito é progressão aberta a ulteriores realizações, segundo a graça do batismo atuando em nós. Espiritualidade é uma sabedoria de vida, uma vivência que implica ascese, mística, orientação, oração, relacionamento com Deus, consigo mesma, com as pessoas e com as criaturas, e desenvolvimento dos dons do Espírito e dos carismas recebidos. Portanto espiritualidade e carisma se interpenetram: o carisma está implicado na vivência da espiritualidade.

1.1. Experiência

O fenômeno que chamamos experiência possui uma grande complexidade. O que parece muito simples e fácil é efeito de mecanismos complicados, que a psicologia humana e religiosa ainda desconhece. A experiência é um processo. E o conhecimento dos processos humanos e religiosos vai lentamente sendo desvendado, sem jamais se esgotar. Nossas ações e reações podem ser identificadas somente em parte. Existe uma fome de experiência religiosa e de espiritualidade. Karl Rhaner chegou a afirmar que “o cristão do futuro ou será um místico, ou seja, alguém que experienciou alguma coisa, ou não será cristão”. Isto quer dizer que a experiência profunda das coisas de Deus determina o grau da espiritualidade e da mística.

As experiências significativas sempre fizeram parte da vida do povo de Deus e da Igreja. Nasceram assim as diversas correntes de espiritualidade, as diversas escolas: abraâmica, da Torah, deuteronomista, profética, sapiencial, sálmica, simbólica, evangélica, paulina, joanina, provindas da Bíblia; dos padres e madres do deserto, basiliana, agostiniana, beneditina, cisterciense, das Cruzadas, dominicana, franciscana, clariana, inaciana, carmelitana. Também podemos falar de espiritualidade italiana, francesa, dos países nórdicos, latino-americana, africana, asiática, ou de épocas, como a do século VIII, do século XIX, que tiveram suas características próprias... Espiritualidade é experiência e vida, experiência e empenho. A experiência é sempre algo vital, que existe na própria vida, é a própria vida. A experiência espiritual diz respeito ao Espírito: isso especifica a espiritualidade. A espiritualidade é uma forma concreta suscitada pelo Espírito, de viver o Evangelho. Da experiência espiritual profunda surge a tematização, o testemunho, a narrativa.

1.2. Narrativa

Quanto mais a espiritualidade se torna vivida, mais ela é narrativa. Narração e experiência é um dos binômios muito usados em nossos dias. Há uma forte atualidade para esses termos. Fazer a experiência é uma expressão da vida real, uma maneira de afirmar a convicção de que a experiência tem como elemento essencial de seu processo a realização. Fazer experiência é participar, a partir de dentro, da trajetória experimentada, seguir o caminho da experiência, deixar-se envolver por ela e vivenciar todas as suas conseqüências. A narrativa elucida a experiência.

A espiritualidade necessita da narrativa, mas exige que haja uma relação entre fazer experiência e narrar. E que se exercite a verificação da congruência entre as duas. A narrativa constrói uma teologia da espiritualidade, e isso somente pode fazer quem faz a experiência. Reforçando, somente quem vive uma experiência religiosa pode definir um caminho de espiritualidade e traçar projetos lineares dela.

1.3. Conhecimento a partir de dentro

Espiritualidade é um conhecer a partir de dentro. Descreve-se a experiência que se vive. Esse conhecimento interior que nasceu no íntimo da pessoa estende-se ao exterior com os matizes assumidos internamente. O termo conhecer significa entender ou compreender a partir de dentro. A espiritualidade e a experiência religiosa sempre partem de um conhecimento a partir de dentro, contudo, isso não impede que tenham como conteúdo realidades exteriores concretas.

2. O que é carisma

O termo carisma retoma uma palavra grega, usada no Novo Testamento. Significa dom generoso e tem a mesma raiz de cháris: graça. O Concílio Vaticano II colocou novamente em uso a noção de carisma e distinguiu os dons carismáticos dos hierárquicos, que estão ligados aos sacramentos e aos ministérios. Carismas são aqueles dons especiais do Espírito que nos tornam capazes de assumir uma missão na Igreja, para a construção do Reino.

O termo carisma pode ser empregado no sentido genérico para indicar todos os dons divinos, as novas formas de vida e ação que o Espírito suscita pela adesão ao Evangelho. Neste sentido, o carisma clariano é uma nova “forma de vida”, particular e especial, suscitada no seio da Igreja. Clara viveu o seu carisma irrevogável, provindo de Deus, experienciando uma libertação profunda e crescente. Num sentido mais específico, as Clarissas herdaram o carisma clariano: são chamadas a ser continuadoras do projeto evangélico iniciado por Clara e Francisco de Assis. A fidelidade de nossos fundadores à inspiração divina, à graça, ao carisma inspiracional é a força que continua nos impulsionando e guiando no caminho do seguimento de Jesus Cristo.

A comunidade de Clara é uma comunidade carismática, nos moldes da comunidade dos apóstolos e discípulos e das comunidades cristãs primitivas. O carisma de Clara, ao se tornar uma estrutura estável com o decorrer dos anos, adquiriu uma dinâmica institucional na Forma de Vida elaborada por Clara com base na experiência das regras anteriores e sustentada pela Regra de Francisco.

A vida espiritual clariana difundiu-se e foi interpretada durante os séculos segundo modelos recapitulativos, rememorativos de experiências passadas e em harmonia com a cultura dos tempos. Isso significa atualizar o carisma. Uma espiritualidade madura deve estar continuamente adaptando e atualizando o carisma, deve enriquecê-lo, alimentar suas riquezas. Clara, como mestra espiritual, é um ponto de referência que une a riqueza da experiência ao conhecimento dos valores e das opções vitais. O amor constrói, a contemplação purifica; existem comportamentos vitais que podem ser introduzidos somente em ambientes especiais marcados por vida espiritual intensa, e uma vez descobertos podem ser vividos e acolhidos. Clara é uma mulher de tamanha autoridade moral que sabe induzir comportamentos e mostrar a validade de opções históricas. Clara tem como função abrir caminhos de vida que possam ser percorridos por nós com segurança e firmeza. A instituição clariana, a Ordem das Irmãs Pobres, é um organismo que programa e facilita a referência para o modelo espiritual de Clara, e favorece-lhe o crescimento, construindo espaços de fidelidade e de intensa espiritualidade.

A santidade de Clara e de Francisco é espelho da santidade de Deus. Foram santos porque viveram a união com Deus, acolheram sua graça. Foram santos que tornaram Deus visível, tornaram seus dons frutificados, foram carismáticos, no verdadeiro sentido do termo. Clara e Francisco foram modelos de santidade porque estiveram em condições de atrair para o Evangelho e de induzir comportamentos que manifestam a validade da doutrina que ensinaram. Foram reveladores de Deus, e nos induzem a perfazer-nos com a proximidade que realizam e com a atração ao bem que suscitam.

Existem aspectos da ação salvífica de Deus que requerem entrelaçamento de pessoas, convergência de ideais, para serem acolhidos e revelados. A santidade evangélica de Clara e de Francisco e o seu peculiar carisma na Igreja são comunitários, decisão concorde de todos e de todas que acolhem como bem comum a glória de Deus. Eles entraram em relação com Deus a partir de uma tradição histórica oferecida por uma comunidade eclesial, e foram alimentados por muitas pessoas e por comunidades vivas. É isso viver um carisma.

3. A espiritualidade e o carisma clariano como acontecimento histórico

Os processos históricos e os acontecimentos sociais em que os cristãos e cristãs se encontram envolvidos e comprometidos numa determinada época ou lugar constituem um fator de espiritualidade, suscitando carismas específicos dentro do seio da Igreja. Assim ocorreu com Clara e Francisco. Eles representam um chamado específico de Deus para um carisma vivo, para uma espiritualidade peculiar. Um chamado a certas opções e a certos valores evangélicos, em especial a pobreza, a humildade, a minoridade e a fraternidade, que foram configurando a estrutura das comunidades clarianas e franciscanas, e deram origem a uma forma específica de espiritualidade.

Queremos nos aproximar do tempo de Clara, uma época de transformações, plena de luzes e sombras, em cujo panorama nascerá um outro modelo social, político e econômico; e também um tipo novo de crente, porque ocorrerá uma mudança em que o leigo será protagonista; e ainda, um novo tipo de religioso e de religiosa, marcado pela passagem fundamental do monge e da monja, para o de frei e de irmã. Estas características, que depois de oito séculos podemos esquematizar serenamente, tiveram uma gestação dolorosa e lenta, em que ocorreram tensões, rupturas, e em cujo processo Clara receberá, junto a Francisco e muitos outros, o carisma de orientar seu caminho para a grande reforma que os tempos pediam.

Nosso olhar sobre este período da espiritualidade tem o interesse histórico que busca as raízes; nossos fundadores são filhos de uma situação política, social, cultural e eclesial carregada de ambigüidades, de incertezas, de extremismos, como é a época medieval, junto a uma gama maior de possibilidades que eles puderam descobrir e abraçar, sendo fiéis à Igreja. Neste transfundo, Clara busca e oferece seu peculiar carisma e espiritualidade. Aqui está a importância de conscientizar-nos do fenômeno de um despertar humano global, para poder situar Clara e seu carisma naquilo que possui de novidade e de ruptura com todo um largo processo precedente.

A espiritualidade e o carisma clariano e franciscano, como resposta a uma realidade histórica, são um processo histórico, social e eclesial, que apresentam fatos, situações, valores que nós, como Clarissas e Franciscanos, devemos captar e interpretar em toda a sua significação. Tudo isso constitui para nós um chamado a decifrar os nossos valores, que nos são revelados pelo conhecimento e aprofundamento da história da Ordem das Irmãs Pobres, desde a sua gênese, para que possamos incorporá-los em nossa vida e em nossa vocação. Isso fará com que sejamos cristãs plenas de consciência de sua espiritualidade e de seu carisma. Conscientes do processo histórico que foi vivido durante os séculos na Ordem, para viver a fidelidade ao carisma inicial, e conscientes de ser testemunhas hoje da validade e da atualidade de nossa espiritualidade e de nosso carisma. Capazes de ativar uma formação eficiente, como resposta ao nosso contexto cultural, e de criar uma renovada espiritualidade, capazes de assumir e de expressar o carisma clariano, como uma nova síntese para o nosso contexto de vivência. Assim, afirmamos que nossa espiritualidade e nosso carisma são atuais, e podemos torná-los adequados para nossa situação histórica hoje. Trata-se de algo inerente à nossa fé cristã, que se desenvolve e se encarna em pessoas, circunstâncias e épocas específicas. Trata-se de um seguimento evangélico e de um carisma específico. Isso é o desafio com que nos defrontamos como atual geração de Clarissas. As profundas mudanças na situação social podem constituir uma das causas de crise para a nossa espiritualidade, mas podem ser também um desafio a traduzir para o hoje de nossa história toda a riqueza de nosso carisma, e torná-lo chamativo e atraente para muitas jovens de hoje.

4. As fontes da espiritualidade e do carisma clariano

A experiência de fé que Clara e Francisco viveram é a medula de nossa espiritualidade. E foi na Palavra de Deus, especialmente no Evangelho, que eles encontraram a fonte e a raiz de seu carisma peculiar. Na escuta fiel da Palavra de Deus teve início uma resposta que trouxe atrás de si oito séculos de história de um carisma vivido e encarnado.

Esse é um fato da experiência clariana e um testemunho vivo que chega até nós através de todos quantos conviveram com ela. A experiência de Clara nos mostra que aquilo que a manteve firme na fé e no seguimento foi a capacidade de ouvir o Senhor, na proclamação da Palavra de Deus, nas alocuções e pregações, na vida orante e silenciosa, na contemplação, na partilha da vivência de irmãs. Em Clara, podemos ver precisamente que a Igreja constitui o lugar habitual e necessário para a geração de sua espiritualidade e de seu carisma; a Palavra de Deus lhe veio da vida eclesial, o Evangelho lhe foi dado pela comunidade cristã, especialmente representada pelo ideal de Francisco. E assim, Clara e suas irmãs puderam reescrever uma das mais belas novas páginas de experiência de Igreja, do povo de Deus, no estilo das primitivas comunidades cristãs.

Podemos perceber, através de todos os escritos de Clara, quanto foi importante para o desenvolvimento de sua espiritualidade e do desabrochar de seu carisma o seu contato pessoal com a palavra de Deus, sobretudo com o Evangelho. São numerosas as citações bíblicas em seus escritos, em geral não literais, mas como fruto de uma rememorização, de uma ruminação afetiva. Assim como Clara, para descobrirmos o caminho de nossa espiritualidade, e o modo de colocar nossos dons a serviço da Igreja e da Ordem, precisamos de uma escuta mais pessoal da Palavra. Acima de tudo deve-se destacar que a Bíblia permanece o paradigma e a fonte de toda a nossa espiritualidade clariana, destacando-se sobretudo os Evangelhos, porque a nossa Forma de vida é “viver o Santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo”. Na leitura cristã da Bíblia, os Evangelhos devem ocupar o lugar central. Eles representam para nossa espiritualidade o sentido primordial e mais denso, já que Jesus Cristo é colocado como o espelho e modelo de conformidade. O Evangelho constitui para nós o acesso necessário à humanidade de Deus e a seu conhecimento e seguimento por amor. Uma Clarissa não pode deixar de ler diariamente o Evangelho, meditá-lo, ruminá-lo, nutrir-se dele.

Quando as irmãs se inspiram na Palavra de Deus e por ela pautam sua vida, a profundidade e solidez de nossa espiritualidade cresce, e podemos ver desabrochar os dons que Deus nos concedeu, o nosso carisma. A escuta e o contato periódico, diário, constante, na oração e na contemplação, apresentam uma fecundidade e uma capacidade capazes de gerar uma renovada vivência de nossa espiritualidade. Mais ainda, a partilha da palavra de Deus é a fonte de nossa espiritualidade e constitui um verdadeiro sacramento da presença do Espírito de Jesus entre nós; ler o Evangelho no espírito de discípulas significa encontrar Jesus. Juntamente com a eucaristia, constitui a experiência mais intensa de Jesus na vida cristã e clariana.

Podemos definir ainda como fontes da espiritualidade e do carisma clariano a vida sacramental da Igreja, especialmente a Eucaristia e a penitência; o testemunho da Igreja, a Virgem Maria, os santos e santas, a presença das irmãs e dos irmãos. Para o caminho clariano, as irmãs constituem uma fonte indispensável da espiritualidade. Todas as outras fontes ficariam deformadas se não levassem à prática do amor recíproco, que é a prova decisiva de nosso seguimento de Jesus Cristo e de que vivemos segundo o Espírito (continua).

Endereço da Autora:
Mosteiro Nazaré – Irmãs Clarissas
Av. Papa João XXIII, 1113 – Petrópolis
Lages, SC/BRASIL
88505-200

A segunda e última parte
não está disponível na Internet

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