- Extraído de http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/letters/2012/documents/hf_ben-xvi_let_20120401_anno-clariano_po.html acesso em 02 maio 2012.
CARTA DO PAPA
BENTO XVI
AO BISPOS DE ASSIS-NOCERA UMBRA-GUALDO TADINO
POR OCASIÃO DO «ANO CLARIANO»
AO BISPOS DE ASSIS-NOCERA UMBRA-GUALDO TADINO
POR OCASIÃO DO «ANO CLARIANO»
Ao Venerado Irmão
Domenico Sorrentino
Bispo de Assis-Nocera Umbra-Gualdo Tadino
Domenico Sorrentino
Bispo de Assis-Nocera Umbra-Gualdo Tadino
Foi com alegria que tomei conhecimento de que nessa Diocese,
assim como entre os Franciscanos e as Clarissas do mundo inteiro, se está a
recordar santa Clara com um «Ano Clariano», por ocasião do VIII centenário da
sua «conversão» e consagração. Tal evento, cuja datação oscila entre 1211 e
1212, completava, por assim dizer, «o feminino» a graça que tinha alcançado
poucos anos antes a comunidade de Assis com a conversão do filho de Pietro de
Bernardone. E, como acontecera para Francisco, também na decisão de Clara se
escondia o rebento de uma nova fraternidade, a Ordem clariana que, tornando-se
uma árvore frondosa, no silêncio fecundo dos claustros continua a espalhar a boa
semente do Evangelho e a servir a causa do Reino de Deus.
Esta feliz circunstância impele-me a voltar idealmente a
Assis, para meditar com Vossa Excelência, venerado Irmão, com a comunidade que
lhe foi confiada e, igualmente, com os filhos de são Francisco e as filhas de
santa Clara, sobre o sentido deste acontecimento. Com efeito, ele fala também à
nossa geração, e tem um fascínio sobretudo para os jovens, aos quais dirijo o
meu pensamento carinhoso por ocasião da Jornada Mundial da Juventude, celebrada
este ano, segundo a tradição, nas Igrejas particulares precisamente neste dia do
Domingo de Ramos.
É a própria Santa que fala, no seu Testamento, da sua
escolha radical de Cristo em termos de «conversão» (cf. FF 2825). É a
partir deste aspecto que me apraz começar, quase retomando o discurso feito em
referência à conversão de Francisco no dia 17 de Junho de 2007, quando tive a
alegria de visitar esta Diocese. A história da conversão de Clara centra-se na
festa litúrgica do Domingo de Ramos. Com efeito, o seu biógrafo escreve: «Estava
próximo o dia solene dos Ramos, quando a jovem foi ter com o homem de Deus para
lhe perguntar sobre a sua conversão, quando e de que modo devia agir. Padre
Francisco ordena que no dia da festa, elegante e ornamentada, vá aos Ramos no
meio da multidão do povo, e depois na noite seguinte, saindo da cidade,
transforme a alegria mundana no luto do domingo da Paixão. Portanto, quando
chegou o dia de domingo, no meio das outras mulheres, a jovem, resplandecente de
luz festiva, entra com as outras na igreja. Ali, com prenúncio digno, aconteceu
que, enquanto os outros corriam para receber os ramos, Clara, por pudor,
permaneceu imóvel e então o Bispo, descendo os degraus, chegou até ela e depôs o
ramo na suas mãos» (Legenda Sanctae Clarae virginis, 7: FF 3168).
Tinha passado cerca de seis anos desde que o jovem Francisco
empreendera o caminho da santidade. Nas palavras do Crucifixo de São Damião —
«Vai, Francisco, repara a minha casa» — e no abraço aos leprosos, Rosto sofredor
de Cristo, ele tinha encontrado a sua vocação. Disto brotara o gesto libertador
do «despojamento» na presença do Bispo Guido. Entre o ídolo do dinheiro que lhe
fora proposto pelo pai terreno, e o amor de Deus que prometia encher o seu
coração, não teve dúvidas, e com ímpeto exclamara: «De agora em diante poderei
dizer livremente: Pai nosso, que estais no Céu, e não já pai Pietro de
Bernardone» (Segunda Vida, 12: FF 597). A decisão de Francisco
tinha desconcertado a Cidade. Os primeiros anos da sua nova vida foram
caracterizados por dificuldades, amarguras e incompreensões. Mas muitos
começaram a meditar. Também a jovem Clara, então adolescente, foi sensibilizada
por este testemunho. Dotada de um acentuada sentido religioso, foi conquistada
pela «mudança» existencial daquele que tinha sido o «rei das festas». Achou o
modo de o encontrar e deixou-se envolver pelo seu fervor por Cristo. O biógrafo
faz um esboço do jovem convertido, enquanto instrui a nova discípula: «Padre
Francisco exortava-a ao desprezo pelo mundo, demonstrando-lhe com uma palavra
viva que a esperança deste mundo é árida e traz desilusão, e instilava nos seus
ouvidos a dócil união de Cristo» (Vita Sanctae Clarae Virginis, 5: FF
3164).
Segundo o Testamento de Santa Clara, ainda antes de
receber outros companheiros, Francisco tinha profetizado o caminho da sua
primeira filha espiritual e das suas irmãs de hábito. Com efeito, enquanto
trabalhava pela restauração da igreja de São Damião, onde o Crucifixo lhe tinha
falado, anunciara que aquele lugar teria sido habitado por mulheres que
glorificariam Deus com o seu santo teor de vida (cf. FF 2826; cf. Tomás
de Celano, Segunda Vida, 13: FF 599). O Crucifixo original
encontra-se agora na Basílica de Santa Clara. Aqueles grandes olhos de Cristo,
que tinham fascinado Francisco, tornaram-se o «espelho» de Clara. Não é por
acaso que o tema do espelho lhe será tão querido e, na iv carta a Inês de Praga,
escreverá: «Fixa todos os dias este espelho, ó rainha esposa de Jesus Cristo, e
nele perscruta continuamente o teu rosto» (FF 2902). Nos anos em que se
encontrava com Francisco para aprender dele o caminho de Deus, Clara era uma
jovem atraente. O Pobrezinho de Assis mostrou-lhe uma beleza superior, que não
se mede com o espelho da vaidade, mas desenvolve-se numa vida de amor autêntico,
nas pegadas de Cristo Crucificado. Deus é a beleza verdadeira! O coração de
Clara iluminou-se com este esplendor e isto incutiu-lhe a coragem de deixar que
lhe cortassem os cabelos e de começar uma vida penitente. Para ela, como para
Francisco, esta decisão foi marcada por muitas dificuldades. Se alguns
familiares a compreenderam sem dificuldade, e a mãe Ortolana e duas irmãs até a
seguiram na sua escolha de vida, outros reagiram violentamente. A sua fuga de
casa, na noite entre o Domingo de Ramos e a Segunda-Feira Santa, teve aspectos
aventurosos. Nos dias seguintes foi perseguida nos lugares onde Francisco lhe
tinha preparado um refúgio e tentaram em vão, até com a força, fazê-la renunciar
ao seu propósito.
Clara preparara-se para esta luta. E se Francisco era o seu
guia, um apoio paterno vinha-lhe também do Bispo Guido, como vários indícios
sugerem. Explica-se assim o gesto do Prelado que se aproximou dela para lhe
oferecer o ramo, como que para abençoar a sua escolha corajosa. Sem o apoio do
Bispo, dificilmente teria sido possível realizar o projecto idealizado por
Francisco e levado a cabo por Clara, quer na consagração que ela fez de si mesma
na igreja da Porciúncula na presença de Francisco e dos seus frades, quer na
hospitalidade que recebeu nos dias seguintes no mosteiro de São Paulo das
Abadessas e na comunidade de «Sant’Angelo in Panzo», antes da chegada definitiva
a São Damião. A vicissitude de Clara, como a de Francisco, demonstra assim uma
característica eclesial particular. Nela encontram-se um Pastor iluminado e dois
filhos da Igreja que se confiam ao seu discernimento. Instituição e carisma
interagem maravilhosamente. O amor e a obediência à Igreja, tão acentuados na
espiritualidade franciscano-clariana, afundam as raízes nesta bonita experiência
da comunidade cristã de Assis, que não só gerou para a fé Francisco e a sua
«plantinha», mas também os acompanhou com a mão pelo caminho da santidade.
Francisco tinha visto bem a razão para sugerir a Clara a fuga
de casa, no início da Semana Santa. Toda a vida cristã, e portanto também a vida
de consagração especial, constituem um fruto do Mistério pascal e uma
participação na morte e na ressurreição de Cristo. Na liturgia do Domingo de
Ramos, dor e glória entrelaçam-se, como um tema que depois se desenvolve nos
dias seguintes, através da obscuridade da Paixão, até à luz da Páscoa. Com a sua
escolha, Clara revive este mistério. No dia dos Ramos recebe, por assim dizer, o
seu programa. Depois, entra no drama da Paixão, cortando os seus cabelos e com
eles renunciando inteiramente a si mesma para ser esposa de Cristo na humildade
e na pobreza. Francisco e os seus companheiros já são a sua família. Depressa
chegarão irmãs de hábito também de terras distantes, mas os primeiros rebentos,
como no caso de Francisco, despontarão precisamente em Assis. E a Santa
permanecerá para sempre vinculada à sua Cidade, demonstrando-o especialmente em
certas circunstâncias difíceis, quando a sua oração poupou a Assis violência e
devastação. Então, disse às irmãs de hábito: «Caríssimas filhas, desta cidade
recebemos todos os dias muitos bens; seria muito ímpio se não lhe prestássemos
socorro, como podermos no tempo oportuno» (Legenda Sanctae Clarae Virginis
23: FF 3203).
No seu significado profundo, a «conversão» de Clara é uma
conversão ao amor. Ela já não terá as vestes requintadas da nobreza de Assis,
mas a elegância de uma alma que se despende no louvor a Deus e no dom de si
mesma. No pequeno espaço do mosteiro de São Damião, na escola de
Jesus-Eucaristia contemplado com afecto esponsal, desenvolver-se-ão no dia-a-dia
as características de uma fraternidade regulada pelo amor a Deus e pela oração,
pela solicitude e pelo serviço. É neste contexto de fé profunda e de grande
humanidade que Clara se faz intérprete segura do franciscano ideal, implorando
aquele «privilégio» da pobreza, ou seja, a renúncia a possuir bens, mesmo só em
comunidade, o que deixou perplexo durante muito tempo o próprio Sumo Pontífice,
que no final se arrendeu ao heroísmo da sua santidade.
Como não propor Clara, como Francisco, à atenção dos jovens de
hoje? O tempo que nos separa da vicissitude destes dois Santos não diminuiu o
seu fascínio. Pelo contrário, é possível ver a sua actualidade no confronto com
as ilusões e as desilusões que muitas vezes marcam a hodierna condição juvenil.
Nunca uma época fez sonhar tanto os jovens, com os milhares de estímulos de uma
vida em que tudo parece possível e lícito. E no entanto, quanta insatisfação
está presente, quantas vezes a busca de felicidade, de realização, acaba por
fazer empreender caminhos que levam rumo a paraísos artificiais, como os da
droga e da sensualidade desenfreada! Também a situação actual, com a dificuldade
de encontrar um trabalho digno e de formar uma família unida e feliz, acrescenta
nuvens no horizonte. Mas não faltam jovens que, também nos nossos dias, aceitam
o convite a confiar-se a Cristo e a enfrentar com coragem, responsabilidade e
esperança o caminho da vida, inclusive fazendo a escolha de deixar tudo para O
seguir no serviço total a Ele e aos irmãos. A história de Clara, juntamente com
a de Francisco, é um convite a meditar sobre o sentido da existência e a
procurar em Deus o segredo da alegria verdadeira. É uma prova concreta de que
quantos cumprem a vontade do Senhor e confiam nele não só nada perdem, mas
encontram o verdadeiro tesouro capaz de dar sentido a tudo.
A Vossa Excelência, venerado Irmão, a esta Igreja que tem a
honra de ser o lugar de nascimento de Francisco e de Clara, às Clarissas, que
mostram quotidianamente a beleza e a fecundidade da vida contemplativa, em prol
do caminho de todo o Povo de Deus, e aos Franciscanos do mundo inteiro, a tantos
jovens à procura e necessitados de luz, confio esta breve reflexão. Faço votos
por que ela contribua para fazer redescobrir cada vez mais estas duas figuras
luminosas do firmamento da Igreja. Com um pensamento especial para as filhas de
santa Clara do Protomosteiro, dos demais mosteiros de Assis e do mundo inteiro,
concedo de coração a todos a minha Bênção Apostólica.
Vaticano, 1 de Abril de 2012, Domingo de Ramos
BENEDICTUS PP. XVI
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