Muitos temas têm ocupado a atenção dos franciscanos seculares nos últimos tempos em diferentes níveis da Ordem: identidade franciscana secular, senso de pertença à Ordem, empenho de revigoramento das fraternidades locais, abertura à missão, preservação da natureza e tantos outros. A Ordem é dos leigos. Cabe-lhes tomar sua história em mãos e rasgar seu amanhã. Os franciscanos seculares não vivem à sombra dos frades. Têm sua caminhada própria, eminentemente laical. Há toda uma premente evangelização no mundo de hoje a ser desenvolvida e que só se realizará pelos leigos. Sua omissão será catastrófica. Nestes últimos tempos resolveu-se estudar mais de perto a questão do laicato franciscano e a significação da Ordem na Igreja local e no mundo em nossos tempos. Que significado tem, essa Ordem de cristãos leigos, no momento atual do mundo e da Igreja? Como se manifesta, de fato, a “secularidade” de seus membros? Vamos, pois, aqui, tecer, uma vez mais algumas considerações sobre a secularidade dos membros da OFS.
Frei Almir Ribeiro Guimarães
1. É importante viver e viver densamente.
Acordar de manhã, sentir as batidas do coração e atravessar o tempo da
vida na alegria de acolher o borbulhar da existência: homem, mulher,
trabalho, empenhos, filhos, projetos para viver em plenitude, sondando o
mistério da existência e vislumbrando lá em seu interior Alguém que
nos espreita e nos convida a viver em plenitude. Ser do Senhor. Mas
também levantar os caídos, maravilhar-se com um ipê roxo todo florido e
chorar a morte do rapaz que foi eliminado pelo tráfico. Vida, sempre de
novo a vida. Nada de mediocridade, nada de “empurrar” a história para
frente, nada de formalismos frios, nem de uma religião longe da vida e
alienante, religião de sacristia, asséptica, tranquila, inofensiva.
Felizes aqueles e aquelas que, na aventura da vida, são chamados a
seguir Cristo Jesus. “Vem e segue-me!” Aqueles que carregam o frasco do
perfume do Evangelho. São os bem-aventurados discípulos do
Ressuscitado. Tentam ser luz do mundo e sal da terra e assim fazem sua
parte, dão sua contribuição para que a terra seja mais parecida com o
mundo que começou a existir com a paixão, morte e ressurreição do
Senhor.
2. Sentir-se
homem, sentir-se mulher, crescer, quebrar a solidão. Nascer no seio de
uma família, sentir-se acolhido, amado. Não é bom que o homem viva só. E
essa peregrinação do masculino para o feminino ocupa importante lugar
na aventura da vida. Companheiros, amigos, confidentes, parceiros de
uma história. Um homem e uma mulher, dois que constituem uma comunidade
de vida e de amor, respeitosa, amorosa. A proximidade dos corações, o
encontro dos corpos. Tudo isso vivido sob o olhar do Senhor. Marido e
mulher que refazem em suas vidas a aliança entre o Esposo no alto da
cruz e sua Igreja. No casal cristão está a origem de uma família cristã.
Ali, no tecido do cotidiano, se refaz uma evangelização que se tornou
impossível no mundo da indiferença. A evangelização da vida e na vida…
Os pais transmitem, mesmo com toda dificuldade exterior, um estilo de
viver aos filhos, um modo de habitar o mundo, uma maneira de
atravessarem a existência sem que fiquem arranhões demais, para que os
filhos não sejam vazios, que possam escutar o ecoar do chamado de Deus
no seu coração de jovens. Os pais são os primeiros evangelizadores dos
filhos. Não é esta a missão dos leigos franciscanos em suas famílias?
3. Aí estão, pelo mundo afora, esses milhares de franciscanos seculares. Seu habitat
é o mundo, a cidade, o campo. Não vivem em primeiro lugar nos espaços
reservados para o sagrado e para celebração do culto. São do mundo,
vivem no mundo, transformam o mundo, evangelizam o mundo, sofrem no
mundo, se alegram no mundo. Mundo aqui não quer dizer a ordem de coisas
que vai contra a vontade de Deus, esse mundo do inimigo. Os cristãos
são do mundo, sem serem do mundo. Jesus dizia que os seus não eram desse
mundo mau. O mundo em que vivem os leigos é essa realidade boa que saiu
das mãos de Deus: sol e lua, água e fogo, vida de todos os dias,
cotidianidade, homem e mulher. Sentem os franciscanos seculares que
precisam “dominar a face da terra”. Alguns campos de atividade lhes são
próprios: família, trabalho e organização da pólis ( política). Sentem
eles que seu lugar se situa nas praças e no trabalho, nas fábricas e
campos, nos jornais e nas emissoras radiofônicas. Com Francisco
contemplam esse mundo que saiu das mãos de Deus e que era “muito bom”.
São apaixonados e fascinados pelo Evangelho, a ponto de fazerem uma
profissão de segui-Lo por toda a vida. Estão por ai: são pais e mães
com filhos pequenos, são jovens e adultos, vivem o matrimônio, educam
os filhos, carregam peso do trabalho, enfeitam a terra, cantam o sol
que chega e se encantam com a água mansa que desce pedras abaixo. São
balconistas, frentistas, médicos, escritores, marceneiros,
fisioterapeutas, advogados, mecânicos. Seu lugar primeiro e
preferencial são os caminhos pisados pelos homens, a cozinha da casa, o
hospital para onde levam seus familiares, a tribuna de uma câmara de
vereadores. São biscateiros, empregadas domésticas e professores. São
leigos cristãos que se vestem com as cores de Francisco e de Clara, no
meio do mundo. Vão pelo mundo sem perder o espírito da devoção e da
santa oração.
4. Frei
Jorge Peixoto, OFMConv, argentino, no VIII Congresso Latino-Americano
OFS/JUFRA (maio de 2012) dizia: “Queremos recordar o fato de que
Francisco descobre Deus no mundo, no abraço dado a um pobre excluído,
desprezado e miserável, no encontro com a miséria social que se
manifesta na pessoa do leproso. Francisco rompe com um certo tipo de
mundo: o mundo marcado pela exclusão e pela crueldade, que produz
sempre novos leprosos. Entra neste mundo a partir de um outro lugar, a
partir de um mundo marcado pela misericórdia e ternura de Deus que se
manifestou na pobreza e na humildade de Jesus, que resgata o homem e
todas as criaturas, colocando-as no centro de seu amor”. Sim, no dizer
de João, Deus amou tanto o mundo que lhe deu seu Filho único. Continua
Frei Jorge Peixoto: “Essa vocação secular da espiritualidade franciscana
nem sempre se manteve ao longo da história. Bem lá no começo
apareceram correntes que conseguiram seguir outros modelos mais
tradicionais. A separação do mundo e das pessoas do mundo foi se
acentuando, criando uma distância da vida corrente de dada dia. A
clericalização da vida dos frades e de muitos leigos nos foi
distanciando do mundo secular. Alguns irmãos seculares se reuniam em
associações piedosas, sem maior influência sobre a sociedade”.
5. Há muito
se fala que vivemos a “hora dos leigos”. A OFS é uma escola de
formação de um laicato maduro. O texto normativo da vida dos leigos é a
Regra com suas orientações, suas insistências e sua força: leigos que
não sejam superficiais na oração, que não se contentam com uma vida
salpicada aqui e ali de um pouco de água benta. Gente que escuta a
Palavra, se se forja pela Palavra, que passa do Evangelho para a vida e
da vida para o Evangelho, pessoas que vivem da Eucaristia, dessa
Eucaristia quase cotidiana que faz deles não apenas leigos ativistas que
correm de um lado para o outro, mas homens e mulheres profundos, gente
que não se deixa encantar pelo consumismo e pelo fascínio das coisas
que brilham e passam. Insistimos: não se trata de convidar os leigos a
correrem de um lado para o outro no ativismo que a nada leva.
6. Tomo a
liberdade de transcrever umas linhas magistrais de Michel Hubaut que
exprimem bem a ação do franciscano no mundo: O franciscano “é um
cristão que tem necessidade do apoio de uma fraternidade de irmãos e
irmãs para enraizar seus compromissos e amadurecer os compromissos mais
diversos na luta contra toda forma de injustiça, de violência, de
racismo, de desrespeito pela vida, pelas pessoas e pela criação e para
concretizar a paixão pela paz. É um cristão cuja alegria manifesta que o
Evangelho é caminho de humanização…”. Típico do franciscano secular é
viver em fraternidades e a partir do mistério da koinonia ir pelo mundo.
7. Leigos
franciscanos que vivem a experiência da fraternidade. Na mesma linha vai
Frei Jorge Peixoto: “Uma fraternidade tem coração e não somente
projetos e tarefas para realizar. A porta de ingresso na fraternidade
não pode ser nem a razão nem o interesse, porque estaríamos realizando
mais uma empresa do que uma fraternidade. O sentimento, a capacidade de
sentir-se tocado pelo outro, de comprometer-se com ele sem possuí-lo
nem humilhá-lo são conteúdos normativos de uma relação fraterna.
Admitir que a prioridade da bondade e do cuidado que se funda na
bondade original de Deus deve organizar o pensamento e a expressão
humana não significa deixar de trabalhar e de atuar no mundo… Ao
contrário, impulsiona a um modo de ser novo que renuncia a todo tipo de
poder de dominação que reduz os outros em objetos sem história e sem
sentimentos. Admitir a prioridade do cuidado e da bondade faz com que o
encontro humano tenha valor e que valha a pena conviver. O cuidado se
expressa na categoria do irmão guardião, como aquele que guarda e serve
os irmãos, o que se desvela desinteressadamente, que se faz menor e
disponível, e ao mesmo tempo designa uma atitude fundamental ou modo de
ser que possibilita uma existência nova”.
8. A
formação no seio das Fraternidades se encarregará de levar os seus a
uma profunda experiência cristã e franciscana: assim eles poderão
mostrar um estilo de vida cristã no comer, no comprar, no vender, do
lazer, no labor, na dor… A fonte é sempre essa experiência
crística. Os leigos deverão poder dizer: “Vimos o Senhor!” E
franciscanos dirão: “Convivemos com um Senhor que nos ama e se nos
manifestou no rosto do servo Jesus, daquele que não tinha uma pedra
para reclinar a cabeça, daquele nos encantou com sua pobreza e
dependência de tal forma que nós nos apaixonamos por ele e por seu
estilo de vida despojado. Assim também nosso viver é despojado”. Assim,
a vida leiga é perpassada da presença do Senhor. Um fiel leigo que vive
cada passo de sua Regra se dispõe a ser um leigo pregador pelo seu
estilo de viver, pelo seu estilo de usar a água, de conviver, de
partilhar, de se vestir com beleza, mas com simplicidade. Será que os
franciscanos seculares deixam transparecer tudo isto?
9. Em
Discurso numa assembleia pastoral da Itália, o Cardeal Diogini
Tettamanzi afirmou: “Urgente acelerar a hora dos leigos, retomando o
esforço eclesial e secular sem o qual o fermento do Evangelho não pode
atingir os contornos e meandros da vida cotidiana, nem penetrar os
ambientes fortemente marcados pelo processo se secularização (…).
Necessário se faz criar nas comunidades cristãs espaços em que os leigos
possam tomar a palavra, comunicar suas experiências de vida, exprimir
seus desejos, suas descobertas, seu pensamento a respeito do que vem a
ser cristão no mundo. Somente desta maneira poderemos criar uma
cultura que seja atenta às dimensões cotidianas do viver. Por isso,
urgentíssima uma formação dos leigos que leve em consideração seu
crescimento espiritual e intelectual, pastoral e social, fruto de um
novo estágio formativo para os leigos e com os leigos, formação que
leve à maturação de uma plena consciência eclesial e os habilite a um
eficaz testemunho no mundo. Estes novos programas requererão formas de
espiritualidade típicas da vida laical, para que encontro com o
Evangelho gere modelos capazes de serem propostos por sua beleza”. As
Fraternidades franciscanas seculares, custe o que custar, terão que ser
escola de leigos capazes de escreverem a historia de suas vidas no meio
do mundo com “seu estilo de habitar o mundo”. O Cardeal italiano diz
alguma coisa muito simples e fundamental: escolas de formação de leigos
que os habilite a dar um testemunho no meio do mundo. Não é essa a
missão da formação na Ordem de leigos dos franciscanos? Esta é nossa
prioridade, e não em primeiro lugar fornecer agentes para funções
litúrgicas e pastorais. Os franciscanos leigos bem formados serão uma
presença significativa na Igreja local.
10. Tenho
receio de não ter respondido ao tema que quis abordar pensando no
Capítulo Nacional da OFS do próximo mês de agosto. Que sugestões
práticas vêm à mente quando pensamos no tema do laicato franciscano?
Que todos aceitem estas considerações finais:
• A história da Ordem Franciscana Secular (Ordem Terceira) teve páginas brilhantes escritas por leigos.
Há esses leigos cujos nomes não são mencionados, terceiros anônimos. e
que temos a certeza de terem sido cristãos leigos e de muito valor.
Alguns são conhecidos internacionalmente: Frederico Ozanan, Raimundo
Lullo, Zilda Arns, Giorgio La Pira, Léon Harmell. Recentemente
encontrei mais uma vez um nobre frade menor, Mario Cayota, franciscano
uruguaio que foi mesmo embaixador de seu país na Santa Sé. Não quero
apenas me referir a nomes conhecidos. Há muitos outros leigos admiráveis
que viveram escondidos nas Fraternidades. Cada Fraternidade deveria
fazer a crônica de seus santos leigos.
• Nossas Fraternidades serão
espaços de reflexão séria sobre os grandes problemas que os leigos
vivem e sobre os campos de ação. A formação se encarregará de ajudar
os irmãos a habitarem franciscanamente a Igreja e o mundo. Quais são
esses problemas? Entre outros: indiferença para com a fé, vivência de
um cristianismo sentimental, confusões de gênero, sociedade hedonista,
meios de comunicação e mídia, deslocamento geográfico das pessoas,
questionamento de uma pastoral meramente conservadora sem a chama
evangelizadora.
• Constato que, nos últimos
tempos, Capítulos e Congressos dos seculares insistem na questão da
família. Uma das prioridades da Ordem é precisamente o tema da
família. Pensamos em primeiro lugar que homens e mulheres, casais
franciscanos, reavivem chama de seu amor conjugal, acendendo as graças
do sacramento do matrimônio, que não levem uma vida conjugal medíocre,
que vivam uma espiritualidade conjugal e familiar franciscana. Nossas
famílias são o primeiro espaço da nova evangelização e constituem o
primeiro momento do discernimento vocacional. Elas podem ser um lugar
de gestação de uma nova cultura cristã, do nascimento de um olhar
cristão sobre a caótica realidade que vivemos. Este é um papel
importantíssimo da família e, nosso caso da família dos franciscanos
seculares.
• Os livros de formação da OFS deverão ser fortemente marcados pelo método do ver, julgar, agir. Não se trata apenas de encher a cabeça de ideias, mas de olhar critica e cristãmente a realidade.
• No momento atual será de
fundamental importante, sobretudo no caso dos formandos, que sejam
levados a viver uma intensa espiritualidade franciscana, base de seu
amanhã na Ordem.
• Na medida do possível, e em
estreita união com a pastoral local, os franciscanos seculares poderão
dar sua contribuição específica na evangelização das famílias.
• Aos poucos precisamos ver serem multiplicadas fraternidades mais simples, mais flexíveis, mais verdadeiras.
Terminamos nossas reflexões,
mais uma vez, dando a palavra a Michel Hubaut: “Irmãos e irmãs de São
Francisco, temos um papel original a desempenhar nesse futuro que
devemos construir com todos os homens de boa vontade acentuando a
prioridade das pessoas no seio da Fraternidade universal; manifestando a
novidade do Evangelho, fonte de felicidade, encarnando, no cotidiano
dos relacionamentos o amor salvador de Cristo. Esforçando-nos para
sermos testemunhas da liberdade interior no Espirito; recusando a
ditatura do dinheiro e a pauperização de dois terços do planeta.
Construir um futuro maravilhando-nos da beleza da criação e promovendo
um desenvolvimento humano durável; apaixonado pela paz e pelo diálogo
entre as religiões; fiéis a uma Igreja muitas vezes pecadora e por vezes
luminosa”.
O laicato escuta as batidas do coração do Senhor no meio do mundo.Questões:
1. Nossas fraternidades locais exprimem, de verdade, o carisma de Francisco na Igreja?
2. Procure traçar o perfil do franciscano leigo secular.
3. Bem praticamente o que significa evangelizar a família hoje?
Frei Almir Ribeiro Guimarães
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