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domingo, 15 de setembro de 2013

Pobres em fuga

“É curioso que ultimamente tenha havido eloquentes gestos do Papa desalojando de suas poltronas bispos ou padres acusados de abuso sexual que colocam preto no branco a gravidade de tais ações que incompatíveis com a tarefa eclesial. Mas, ao mesmo tempo, chama a atenção que não haja ações concretas que apontem os culpados e os responsáveis pelas políticas que geram pobreza, miséria, violência, injustiça e que atingem milhões de pessoas”, escreve Marcelo Ciaramella, em artigo publicado no jornal argentino Página/12, 13-09-2013. A tradução é de André Langer.

E conclui sua reflexão perguntando: “Quando a Igreja se separará em sua análise, seus gestos e ações proféticas de resistência, de um projeto de mundo que só produz pobres em fuga?”

Marcelo Ciaramella é membro do argentino Grupo de Sacerdotes na Opção pelos Pobres.
Eis o artigo.
A lógica do sistema hegemônico de acumulação capitalista, que obriga os seres humanos a viverem dentro da lógica absoluta da valorização do valor, provoca o surgimento da “humanidade sobrante”. Massas “inúteis” que não trazem um valor agregado que se converta em capital acumulado e que contam com um poder aquisitivo quase nulo. Periferias de um centro poderoso que, como uma centrífuga, os arremessa contra as paredes que limitam com o nada. Pessoas que vão daqui para lá perambulando pelo mundo, expondo-se a tremendos perigos, experimentando a sensação de terem nascido no planeta errado, culpabilizados por serem a periferia que não tem direito nem oportunidade de aceder ao lugar dos privilegiados, acusados com frequência pelo crime de serem visíveis, pelo desatino de existirem, e são condenados a uma fuga eterna buscando um esconderijo onde redimir o pecado da exposição pública. Por isso, existe uma enorme quantidade de acampamentos, casas de acolhida, refúgios que, como a edícula, escondem tudo o que não serve para o uso cotidiano ou o que se usa de vez em quando, para que não seja visto pelas visitas.

O Papa Francisco voltou a repetir um de seus fortes gestos solidários com os pobres da periferia, escondidos, neste caso, no Centro Astalli de Roma, o serviço dos jesuítas para os refugiados na Itália. Voltou a chamar de maneira eloquente de “carne de Cristo” os sofredores, neste caso os condenados a viver como párias neste mundo por diferentes situações. E desnudou a incoerência de tantos conventos vazios diante de tanta “humanidade sobrante” necessitada de um lugar para comer, vestir-se e ser atendida. Mas estes gestos – na minha opinião – perdem força e acabam confinados a um álbum de fotos ou a uma coleção de discursos quando não são acompanhados de uma análise que produza um diagnóstico que leva finalmente a uma interpretação, uma tomada de posição, uma ação dirigida a encurralar as causas destes males.

Lamentavelmente, a Igreja substituiu a análise pela ética. Os documentos sociais em geral – além de extemporâneos em relação aos fatos que analisam e que mudam com uma rapidez vertiginosa – propõem uma reflexão de princípios, sempre válidos mas necessitados de mediações que os convertam em ações eficazes contra as causas dos males que se enumeram. Fazer uma análise em que a perspectiva crente seja auxiliada pelas ferramentas das ciências sociais, gera a necessidade de elaborar ações, projetar um modelo de mundo, construir a fé histórica.

É curioso que ultimamente tenha havido eloquentes gestos do Papa desalojando de suas poltronas bispos ou padres acusados de abuso sexual que colocam preto no branco a gravidade de tais ações que incompatíveis com a tarefa eclesial. Mas, ao mesmo tempo, chama a atenção que não haja ações concretas que apontem os culpados e os responsáveis pelas políticas que geram pobreza, miséria, violência, injustiça e que atingem milhões de pessoas.

Lembro da minha visita a Chiapas – estando na casa religiosa que me hospedou, situada perto dos territórios autônomos zapatistas e com plena relação com eles: escutei uma canção composta pelas bases civis, profundamente crentes, lutando contra a violência paramilitar, que beirava a lamentação e se chamava “Não basta rezar”: “Não, não, não basta rezar, necessitamos de muitas coisas para conseguir a paz, não, não, não basta rezar. E rezam de boa fé e rezam de coração, mas também reza o piloto quando entra no avião para bombardear as crianças no Vietnã, para bombardear as crianças no Iraque”.

Os crentes zapatistas que visitei têm muito claro que a fé é para mudar o mundo e não para salvar a alma. Porque Jesus deu a vida por um projeto de mundo, querido pelo Deus da Vida, justo, solidário, fraterno, igualitário, próximo dos pobres e em luta contra as causas da vida indigna e injusta.

A Convenção de Refugiados de 1951 explica que um refugiado é uma pessoa que, “temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, pertença a determinado grupo social ou opiniões políticas, encontra-se fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país”. Segundo o Alto Comissário das Nações Unidas para os Refugiados, os padrões globais de migração tornaram-se cada vez mais complexos nos tempos modernos, com a participação não apenas dos refugiados, mas também de milhões de migrantes econômicos. Os migrantes, especialmente os econômicos, decidem mudar-se com o objetivo de melhorar as perspectivas de futuro seus e de suas famílias. Os refugiados têm que se mexer caso queiram salvar suas vidas ou sua liberdade. Eles não têm a proteção do seu próprio Estado – de fato, é com frequência seu próprio governo que os está perseguindo. Se outros países não lhes oferecerem a proteção necessária e não os ajudarem uma vez dentro do respectivo país, então poderão estar condenando à morte ou a uma vida insuportável nas sombras, sem sustento e sem direitos. Às vezes, também os desequilíbrios ambientais provocados pela insaciável sede de recursos para produzir, expulsam muitos de suas terras que se tornaram desertos ou lugares inabitáveis.

O chanceler da Bolívia, David Choquehuanca, na reunião da Acnur, em 2011, em Genebra, defendeu que “...somente ultrapassando este cruel sistema capitalista é que vamos diminuir as vítimas dos deslocamentos forçados no mundo e vamos recuperar a dignidade de todas as pessoas evitando que devam que buscar refúgio em outras terras (...) hoje devemos solicitar à comunidade internacional para que seja responsável, para que, em vez de utilizar seus recursos econômicos na fabricação de armamentos, bombardeios, bloqueios, perseguições políticas e ataques armados, invista esses recursos na cooperação internacional, para mudar este sistema que só busca o consumismo e denigre o ser humano”.

A disputa vai ficando cada vez mais clara: um mundo para poucos versus um mundo para todos. A ideologia capitalista liberal nos impõe o mérito e a competição como a premissa para adquirir direitos de vida digna. A perspectiva cristã, defende claramente que o direito à vida digna neste mundo não consiste em ter méritos, mas no simples fato de ter nascido. Se há refugiados é porque há perseguidores que se arrogam o direito de decidir quem fica dentro do sistema, desrespeitando a liberdade de viver e morrer com dignidade de todo ser humano. Quando a Igreja se separará em sua análise, seus gestos e ações proféticas de resistência, de um projeto de mundo que só produz pobres em fuga?

Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/noticias/523720-pobres-em-fuga acesso em 2013-09-15

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