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quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Natal

Eduardo Hoonaert*
Não se sabe praticamente nada acerca das circunstâncias concretas do nascimento de Jesus. Certamente não foi no dia 25 de dezembro, data da festa do solstício no império romano. No século IV, essa data foi estabelecida para comemorar o nascimento de Jesus. Quanto ao lugar de seu nascimento, os evangelhos de Mateus e Lucas mencionam Belém, cidade natal de Davi, para dar a entender que Jesus seria ‘filho de Davi’ e ‘rei da Israel’. Hoje os especialistas são quase unânimes em afirmar que Jesus nasceu mesmo em Nazaré. Não conhecemos tampouco as circunstâncias em que ele tenha nascido (numa gruta ou num presépio, por exemplo). Os evangelistas constroem suas narrativas sem precisão historiográfica, porque eles escrevem para animar pessoas a participar do movimento. O que lhes interessa são as idéias e iniciativas de Jesus, que o fizeram o personagem mais importante da história ocidental.

No século XIX surgiu por toda parte interesse por um conhecimento mais científico da vida de Jesus. Com isso, um número crescente de cristãos descobre que sabe pouco sobre a biografia propriamente dita de Jesus de Nazaré, mas que dispõe de informações suficientes para captar seu espírito, idéias e objetivos, o que é mais importante.

O que se pode dizer sobre os primeiros anos de Jesus cabe em poucas palavras: Jesus (Jeschua) nasceu entre os anos 7 e 3 antes de Cristo em Nazaré, na época um conjunto de grutas com aproximadamente duzentos habitantes. O ambiente era de pobreza. O povo da Galiléia pagava 14% de seus rendimentos a Roma e 21% ao templo de Jerusalém. O contraste entre ricos e pobres era enorme. Os camponeses se alimentavam basicamente de pão de trigo ou cevada, que levavam consigo ao campo. De vez em quando aparecia peixe no cardápio ou ainda sopa de malva. Carne quase nunca. Os esqueletos da época revelam falta de ferro e proteínas. Jesus provavelmente freqüentou uma escola de rabinos, pois sabia ler a bíblia. No quarto capítulo do evangelho de Lucas, ele aparece como leitor na sinagoga. Sendo filho de artesão (não necessariamente carpinteiro), ele deve ter conseguido seu primeiro emprego com a idade de quatorze - quinze anos, indo trabalhar com o pai em Séforis (a 5 km de Nazaré) ou em Tiberíades (outra cidade moderna construída por Herodes) em obras de construção civil. Não faltava trabalho na época, pois tanto os romanos como os vassalos herodianos eram grandes construtores, como comprovam escavações arqueológicas na Palestina (Massadá, o templo, teatros, aquedutos, circos, fortalezas, piscinas públicas, casas com serviço de água corrente).

Não se sabe se Jesus era casado. Nos evangelhos, ele é chamado ‘rabi’, e os rabinos normalmente o eram. Os evangelhos não dizem nada a respeito. O que se escreve hoje sobre um possível romance entre Maria de Mágdala e Jesus é baseado no evangelho de Filipe, um texto do século III, não confiável de um ponto de vista historiográfico. Sumamente importante é que, num determinado momento, Jesus rompe com a família e se alia ao profeta João Batista, protagonista de um movimento não-violento de oposição à opressão social e dependência colonial. Aí começa um novo capítulo de sua vida.

Esses parcos dados biográficos combinam bem com as imagens que a cultura popular produz em torno da festa de Natal. Fruto da emoção e da imaginação de sucessivas gerações de cristãos, o Natal é um evangelho, não ‘segundo Marcos ou Mateus ou João’, mas segundo pessoas comuns que não escrevem livros, mas expressam sentimentos por meio da arte e da criatividade. Nas catacumbas do século III já podemos contemplar as primeiras imagens do nascimento de Jesus: os magos do oriente, o menino Jesus nos braços de sua mãe, os pastores. Na idade média surgiu, não se sabe quando nem como (alguns dizem que é uma idéia de São Francisco), a cena completa: o presépio, o boi e o burrinho, os pastores, os anjos, os magos, os presentes (ouro, incenso e mirra), a estrela, os inocentes. São criações da imaginação e da emoção de sucessivas gerações cristãs, e não de teologia erudita ou de orientações pastorais.

Como festejar o Natal? O importante consiste em captar o espírito de Jesus, que transparece nas imagens do presépio e também nas informações históricas: a sensibilidade pela vida pobre, condição da maioria da humanidade; a ternura (Maria e José); a presença de marginalizados (os pastores formavam uma classe marginal na Palestina); o nascimento inacreditável de um ‘rei’ num presépio e não em berço de ouro; a procura intensa e crítica da verdade (os magos); a abertura ecológica (o boi e o burro). Tudo isso está na cena do presépio. É de se admirar que o espírito do povo comum consiga expressar com tanta singeleza, sem pronunciar uma só palavra, o essencial do cristianismo.

* Padre casado, belga, com mais de 5O anos de Brasil, historiador e teólogo, mais de 20 livros publicados. Mora em Salvador. Dedica-se agora ao estudo das origens do cristianismo.

Extraído de http://www.adital.org.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=43909 acesso em 16 dez. 2009.

Ilustração: Geburt Christi / Kölner Maler. ca. 1330. Wallraf-Richartz-Museum, Köln. disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:K%C3%B6lner_Maler_um_1330_001.jpg acesso em 16 dez. 2009.

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