
FREI FERNANDO, VIDA, FÉ E POESIA by Frei Fernando,OFMConv. is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil License.
Quando éramos seminaristas, em Taquari, na década de 50 do século passado, todos os anos, por ocasião do dia 2 de Agosto, éramos conduzidos, turma por turma, para a capelinha interna dos freis. Lá, orientados pelo frei que nos acompanhava, rezávamos uma série (não me lembro quantos) de Pai Nossos. Terminada uma série saíamos da capelinha, dávamos uma pequena volta e retornávamos para mais uma série de Pai Nossos, e assim por diversas vezes e todos os anos. Explicaram os freis que em cada visita era uma graça ou indulgência que se lucrava. Mais tarde fiquei sabendo que este exercício espiritual, chamado “Indulgência da Porciúncula”, fora um privilégio que Francisco adquirira para a igrejinha da Porciúncula, situada perto de Assis, e que, posteriormente, o mesmo privilégio fora estendido a todas as igrejas próprias da Ordem.
Mas, o que era ou o que é essa Indulgência, nunca ficou muito claro para mim. Há dias, porém, folheando a nova edição italiana das “Fonti Francescane”, encontrei, pela primeira vez, o famoso documento acerca desse Privilégio. Trata-se do “Diploma do Bispo Teobaldo de Assis”, datado de 1310 e cuja tradução oferecemos aos interessados. Antes do texto propriamente dito, porém, é importante que se leia a pequena introdução historiográfica dos editores das mencionadas “Fonti Francescane”.
“A Indulgência da Porciúcula, evento de suma importância para a história e consciência da Ordem minorítica, e objeto de longas discussões historiográficas acerca de sua autenticidade histórica, encontra sua documentação mais objetiva no Bispo Teobaldo de Assis. Este Bispo recolheu e sintetizou os testemunhos anteriores, tidos historicamente como fundados, particularmente, aqueles de Benedito e Rainério d´Arezzo, de Tiago de Coppoli e de Pedro Zalfani, sem extrapolar a medida da narrativa com excessivos elementos miraculosos. Estes testemunhos nos evocam uma significativa fonte documentária, hagiográfica, e, na esteira do jubileu do milênio de 1300, no tempo de Bonifácio VIII (1294-1303), rica em aspectos pastorais, fundada, de um lado sobre a fidelidade à intuição de Francisco e, de outra parte, sobre a evolução institucional da Ordem no seio da Igreja.
Aqui se propõe o texto completo do documento traduzido a partir da recente edição paleográfica feita sob os cuidados de Stefano Brufani a partir do original, onde ainda se conserva pendente o selo de cera; documento esse conservado no arquivo público do Estado de Perúsia, Corporações religiosas supressas, São Francisco ao Prado, pergaminho 56 (1310, agosto, 10), descoberto em 1964 por Roberto Abbondanza. Cf. S. Brufani, Il diploma del vescovo Teobaldo d´Assisi pel indulgenza della Porciuncola,
Vamos, então, ao texto do mencionado documento ou carta do Bispo Teobaldo:
“Irmão Teobaldo, por graça de Deus, Bispo de Assis, aos fiéis cristãos que lerem esta carta, saúde no Salvador de todos..
Por causa de alguns faladores que, impelidos pela inveja, ou talvez pela ignorância, impugnam desaforadamente a indulgência de Santa Maria dos Anjos, situada perto de Assis, somos obrigados a fazer esta comunicação a todos os fiéis cristãos. Através da presente carta, queremos comunicar o modo e a forma desse benefício e como o bem-aventurado Francisco, enquanto estava vivo, o impetrou ao senhor papa Honório.Morando, o bem-aventurado Francisco, junto à Santa Maria dos Anjos da Porciúncula, o Senhor, durante a noite, lhe revelou que se dirigisse ao sumo Pontífice, o senhor Honório, que temporariamente se encontrava em Perúsia. A finalidade era impetrar-lhe a indulgência para a mesma igreja de Santa Maria da Porciúncula, há pouco restaurada por ele mesmo. Francisco, levantando-se, de manhã, chamou frei Masseo de Marignano, companheiro seu, com o qual morava, e se apresentou diante do mencionado senhor Honório, e disse:
- Santo Padre, há pouco acabei de restaurar para o senhor uma igreja dedicada à Virgem Mãe de Cristo. Suplico à vossa Santidade que a enriqueçais com uma indulgência, mas, sem a necessidade de nenhuma oferta em dinheiro.
O Papa respondeu-lhe:
- Não convém fazer uma coisa dessas. Pois, quem pede uma indulgência precisa que a mereça dando uma mão. Mas, diz-me para quantos anos você a quer, e quanta indulgência lhe deva conceder.
São Francisco replicou-lhe:
- Santo Padre, sua santidade queira-me dar não anos, mas, almas.E o senhor Papa respondeu:
- De que modo quer almas?
E o bem-aventurado Francisco declarou:
- Santo Padre, se aprouver à sua santidade, quero que todos quantos se achegarem a essa igreja, confessados e arrependidas e, como convém, absolvidos pelo sacerdote, se tornem libertados da pena e da culpa, no céu e na terra, desde o dia do Batismo até o dia e a hora de sua entrada na mencionada igreja.
O santo Padre acrescentou:
- Isso que pede, Francisco, é muito. E não é costume da Cúria romana conceder semelhante indulgência.
Então, o bem-aventurado Francisco respondeu:
- Senhor, não estou pedindo isto a partir de mim, mas, a partir daquele que me mandou, o Senhor Jesus Cristo.
Diante desse argumento, o senhor Papa concluiu imediatamente, dizendo por três vezes:
- Agrada-me que tenhas essa indulgência.
Os senhores Cardeais presentes, porém, intervieram:
- Vê, se o senhor der essa indulgência, estará destruindo a indulgência do além mar, bem como, virá destruída e considerada nula aquela dos Apóstolos Pedro e Paulo.
O senhor Papa respondeu:
- Agora já a damos e a concedemos; não podemos e nem convém que se destrua o que foi feito. Mas, a modificaremos, de modo que fique limitada apenas para um dia.
Então, chamou São Francisco e disse-lhe:
- Portanto, de hoje em diante, concedemos que, qualquer um que for e entrar na mencionada igreja, bem confessado e contrito, será absolvido da pena e da culpa; e queremos que isso valha todos os anos por somente um dia, das primeiras vésperas até o dia seguinte.
O bem-aventurado Francisco, de cabeça inclinada, começou a retirar-se do palácio. O senhor Papa, então, como o visse saindo, chamou-o dizendo-lhe:
- Ó, simplesinho, aonde vai? Que documento leva desta indulgência?
Respondeu Francisco:
- A mim basta sua palavra. Se for obra de Deus, Deus mesmo deverá manifestá-la. Não quero nenhum outro documento desse privilégio senão este: que a carta seja a bem-aventurada Virgem Maria, o notário Jesus Cristo e os anjos as testemunhas.
Depois disso, Francisco, deixando Perúsia, retornou a Assis. No caminho repousou um pouco, juntamente com seu companheiro, num lugar chamado Colle, onde havia um hospital de leprosos, e lá passou a noite. De manhã, acordado e feita a oração, chamou o companheiro e disse-lhe:
- Frei Masseo, digo-lhe, da parte de Deus, que a indulgência a mim concedida através do sumo pontífice está confirmada pelo céu.
Tudo isso foi contado por frei Marino, sobrinho do mencionado frei Masseo, que frequentemente o ouviu da boca do tio. Esse frei Marino, ultimamente, perto do ano de 1307, repleto de dias e de santidade, repousou no Senhor.
Depois da morte do bem-aventurado Francisco, frei Leão, um dos seus companheiros, homem de vida integralíssima, passou adiante esse fato, assim como o havia recebido da boca de São Francisco; e assim, também, frei Benedito de Arezzo, um dos companheiros de São Francisco, e frei Rainério de Arezzo contaram, tanto para os frades como para os seculares, muitas coisas referentes a essa indulgência, como as tinham ouvido do mencionado frei Masseo. Muitos desses ainda estão vivos e confirmam todas essas notícias.
Não pretendemos, pois, escrever com que solenidade essa indulgência foi tornada pública, durante a consagração da mesma igreja efetuada por sete Bispos. Vamos tão somente referir aquilo que Pedro Zalfani, presente à cerimônia, falou diante do Ministro frei Ângelo, diante de frei Bonifácio, frei Guido, frei Bartolo de Perúsia, e outros frades do lugar da Porciúncula. Contou ele que esteve presente à consagração da mencionada igreja no dia 2 de Agosto, e ouviu o bem-aventurado Francisco que pregava diante daqueles Bispos segurando na mão um documento, e dizia:- Quero mandar-vos todos para o céu. Anuncio-vos a indulgência que recebi da boca do sumo pontífice: todos vós que hoje vindes e todos aqueles que virão cada ano, neste dia, com um coração bom e contrito, obterão a indulgência de todos os seus pecados.
Fizemos essas considerações acerca da indulgência por causa daqueles que a ignoram. Assim não podem mais usar como desculpa a ignorância. E, acima de tudo, o fazemos por causa dos invejosos e faladores. Estes, em alguns lugares, procuram destruir, suprimir e condenar aquilo que, toda a Itália, a França, a Espanha e outras províncias, tanto de cá como de lá dos montes, ou melhor, o próprio Deus, em reverência à sua santíssima Mãe (pois, como se sabe, a indulgência é dela), quase todos os dias, vem revelando, engrandecendo, glorificando e espalhando com frequentes e manifestos milagres.
Como ousarão invalidar, com suas funestas persuasões, aquilo que já há tanto tempo, diante da Cúria romana, permaneceu com toda sua validade? Pois, também em nosso tempo, o próprio senhor Papa Bonifácio VIII enviou para essa igrejinha seus magníficos embaixadores para que, por sua vez, no dia da indulgência, nos pregassem com toda a solenidade. Às vezes, enviou até Cardeais. Vindos pessoalmente para celebrar a indulgência e, na esperança de receber o perdão, a aprovaram como verdadeira e certa com sua própria presença.
Diante do testemunho de todas essas coisas, e na fé mais certa, assinalamos a presente carta com nosso selo. Dada em Assis, na festa de São Lourenço, no ano do Senhor de 1310”.
Local:
Igreja São Francisco de Assis
R. Domingos Crescêncio c/ São Luís
Porto Alegre
Tríduo
Data:
30, 31 jul. e 1 ago.
sexta, sábado e domingo
horário: 19 horas
Missa Festiva
2 ago., segunda-feira
Retiro:
7 ago., sábado
das 8h até 17h
Pregador: Fr. Dorvalino Fassini, OFM
Ilustração: The Miracle of the Porziuncola / by Antonio de Oliveira Bernardes. 1698. Cathedral of Évora, Portugal. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Evora66.jpg acesso em 23 jul 2010.
Com muita alegria e empenho, o Conselho Nacional do Brasil acolheu recentemente a confirmação do Conselho Internacional da aprovação do Brasil, cidade de São Paulo (SP), como sede do XIII Capítulo Geral da Ordem Franciscana Secular, com o tema “Evangelizados para Evangelizar”. Motivo também de alegria e motivação para todas as fraternidades que compõem nossa família nacional, que recebe tal decisão com espírito fraterno e de comunhão recíproca, pois a participação de todas as fraternidades nacionais do mundo todo expressará a união orgânica de toda a Ordem.
Como bem sabemos, o Capítulo é um momento muito importante para a vida franciscana de nossas famílias. Em nome do Senhor, celebramos a vida de fraternidade, que é animada pelo Espírito Santo. Tratamos das coisas que se referem a Deus; o que for útil e bom para nossa vida, reconhecendo que o Senhor revela o que é melhor para nós, através da participação dos irmãos e irmãs, para o bem da vida espiritual que abraçamos ao entrar na Ordem, tais como: a vivência da palavra de Deus, sua pregação; a legislação da Ordem; eleições dos ministros; na partilha; confraternização; no envio de missionários; no conforto mútuo etc. Com a participação dos capitulares, que serão chamados a manifestarem, deliberarem, decidirem, sugerirem e votarem, novo impulso do Espírito será dado a toda Ordem Franciscana Secular para uma vivência do Evangelho e de sua propagação, regra e vida de todos aqueles que querem seguir a Jesus Cristo do jeito de São Francisco de Assis.
Os franciscanos seculares do Brasil são chamados a participarem, de vários modos, da organização deste Capítulo Geral. Com muito zelo, nossos Irmãos e Irmãs do Sudeste III, que abrange o Estado de São Paulo, assumiram a coordenação organizativa de serviço do Capítulo. Mais de perto estão envolvidos o irmãos Rosalvo Gonçalves Mota como Coordenador Geral; as Irmãs Bernadete Mesquita e Denise Marum; da parte do Conselho Nacional participam o Ministro Nacional e o Conselheiro Tesoureiro; como representante da Presidência do Conselho Internacional faz parte a Irmã Maria Aparecida Crepaldi, além de inúmeros outros irmãos e irmãs que não se deixam vencer em generosidade e já se dispuseram a trabalhar para a melhor acolhida e suporte à programação do nosso Capítulo Geral. Mas todos os irmãos e irmãs do Brasil poderão ajudar de várias formas para a realização do Capítulo: regionais, fraternidades locais e cada irmão e irmã deverão contribuir para esse fim. O Capítulo Geral da Ordem Franciscana Secular é responsabilidade de todos nós.
Sendo que o Capítulo é momento de graça, pois nos possibilita avaliarmos, decidirmos, programarmos a vida de toda a Ordem, não nos caberá somente o apoio material e do serviço para sua realização, mas a contribuição de vida franciscana que já testemunhamos no Brasil. O Conselho Internacional solicitou a participação de alguns Irmãos, que já dão testemunho de “Evangelizados que Evangelizam” por sua vida e obra, participarão de mesa redonda, onde exporão suas realidades de vida. E já que teremos sua realização no Brasil, creio que suas decisões e efeitos serão logo sentidos por nossa fraternidade nacional; principalmente pela temática proposta: “Evangelizados para Evangelizar”, reafirmando em nós o que desde os primórdios é fundamental em nossa vida franciscana: viver o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo segundo o exemplo de São Francisco de Assis, que fez do Cristo o centro de sua vida com Deus e com os homens... passando do Evangelho à vida e da vida ao Evangelho. (Regra da OFS, art. 4).
Quero, desde já, agradecer a todos que, por amor à vida franciscana, contribuirão para a realização deste Capítulo, em especial aos nossos irmãos os frades da Província da Imaculada Conceição do Brasil, que contribuirão com sua participação na tradução, ou mesmo em outras atividades.
Na alegria franciscana de podermos estar juntos para celebrar nossa vida, toda a Fraternidade Nacional da Ordem Franciscana Secular do Brasil, com santo orgulho, espera com fraterna expectativa, a chegada da data da realização do XIII Capítulo Geral de sua Ordem.
No pai seráfico Francisco, mãe Clara, nossa saudação fraterna de Paz e Bem a todos.
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/carisma/ofs/notas/09_150710.php acesso em 21 jul. 2010.
Frei Celso Márcio Teixeira
Introdução
À primeira vista, tendo-se presente que a pobreza se tornou ao longo da história quase que uma carteira de identidade dos franciscanos, o título desta reflexão parece conter um paradoxo ou talvez causar a expectativa de uma visão radicalmente negativa da economia. Pode o franciscano pelo menos pensar em economia, já que o próprio Francisco proíbe severa e terminantemente que os frades recebam dinheiro, comparando-o a uma pedra ou ao pó que se calca com os pés (cf. RnB 8,4.6)(1)? Haveria algum espaço para se falar em economia, quando se defende a pobreza radical do nada possuir (cf. RB 6,1)? Embora as aparências possam sugerir uma irreconciliável contradição entre espiritualidade franciscana e economia, ousamos afirmar que o próprio Francisco de Assis nos deixou o que poderíamos chamar de “modelo econômico alternativo”. E os franciscanos, ao longo da história, não somente elaboraram um pensamento sobre a economia, mas propuseram novos modelos econômicos na tentativa de diminuir a distância existente entre ricos e pobres.
1. Conceito de economia no pensamento e na práxis de São Francisco
Evidentemente, não vamos encontrar nos escritos de Francisco nem no conjunto todo das Fontes Franciscanas um conceito definido de economia. Mas vamos descobri-lo nas entrelinhas do que está escrito e na práxis de Francisco e de seus companheiros.
É necessário, antes de tudo, não identificar economia com possuir, acumular bens (dinheiro, propriedades) e gerir capital. Pelo menos não é este o conceito que ele tem de economia. Mas, se lermos atentamente as fontes franciscanas, verificaremos que, para ele, a economia consiste em gerir as necessidades vitais dos irmãos (gerir a vida). De fato, a grande preocupação dele com relação aos frades é cuidar deles em suas necessidades vitais. Embora a proposta franciscana seja de uma vida sóbria – devemos estar contentes, quando temos com que nos cobrir e com que nos alimentar (cf. RnB 9,1b) – no entanto, a economia que deve reger a vida dos frades será pautada pelo cuidado dos irmãos em suas necessidades, um princípio explícito na Regra Bulada:
Os ministros e custódios exerçam diligente cuidado, através de amigos espirituais, para com as necessidades dos enfermos e para vestir os demais irmãos de acordo com os lugares, tempos e regiões frias, como virem que seja conveniente à necessidade; salvo sempre que, como foi dito, não recebam moedas ou dinheiro (RB 4,3-4).
O conceito que ele tem de economia, portanto, não se situa no nível do possuir, do acumular ou gerir bens, mas no nível do cuidar das necessidades vitais e de gerir a vida.
2. Modelo econômico alternativo
Partindo do conceito de economia como cuidado dos irmãos em suas necessidades vitais, nós nos perguntamos se, de fato, se criou um modelo econômico para fazer frente a essas necessidades. Nossa busca neste sentido aponta para uma resposta afirmativa. Alguns elementos são bastante evidentes, permitindo-nos concluir categoricamente que se criou realmente um modelo alternativo.
a) Um modelo baseado no trabalho
O trabalho como base da economia franciscana já estava explícito na Regra não Bulada:
E os irmãos que sabem trabalhar trabalhem e exerçam a mesma arte que conhecerem... Pois diz o profeta: “Comerás do trabalho de tuas mãos”... E pelo trabalho possam receber todas as coisas necessárias, exceto dinheiro (RnB 7,3.4.7).
Pode-se dizer que o trabalho constitui o primeiro artigo do estatuto da economia franciscana. O meio de suprir as necessidades vitais dos frades, portanto, não consiste em rendas fixas nem na acumulação e capitalização de bens, mas no trabalho.
Este artigo contém um parágrafo: “E, quando for necessário, vão pedir esmola como os outros pobres” (RnB 7,8). Este parágrafo, no entanto, não significa que o meio normal de suprir as necessidades seja a esmola, como posteriormente na história foi interpretado, especialmente quando foi concedido aos frades menores poderem viver das esmolas dos fiéis e quando eles ficaram conhecidos com outros grupos como mendicantes. O parágrafo não vem substituir o artigo, mas apenas acrescentar uma cláusula para um caso especial, como o próprio Francisco chega a precisar no Testamento: “E quando não nos for dado o salário, recorramos à mesa do Senhor, pedindo esmolas de porta em porta” (Test 20b.21a.22).
b) A socialização dos bens pela partilha
Outro elemento que, a nosso ver, constituía um artigo importante do modelo econômico de Francisco é a partilha dos bens adquiridos pelo trabalho. A Regra é inequivocamente clara: “Quanto ao salário do trabalho, recebam para si e para seus irmãos as coisas necessárias ao corpo, exceto moedas e dinheiro” (RB 5,4).
Os bens adquiridos pelo trabalho são sempre “as coisas necessárias”. E a repetida proibição de que se receba dinheiro mostra com muita evidência que o modelo econômico proposto como alternativo não se baseia no dinheiro. Este artigo, porém, evidencia que os bens adquiridos não pertencem nem são destinados unicamente a quem trabalhou, mas ao conjunto dos irmãos: “para si e para seus irmãos”.
Infelizmente, ao longo da história, as intermináveis discussões sobre a pobreza nunca deram valor a este elemento que, a nosso ver, mostra o verdadeiro significado da pobreza franciscana: a pobreza significa não apenas não acumular, mas antes de tudo partilhar o pouco que se tem ou se adquire (2). Tudo em vista do cuidado (bem comum) da fraternidade. Este cuidado, princípio fundamental de todo o estatuto, por sua vez, dá a cada frade a liberdade de manifestar ao outro suas necessidades: “E com confiança um manifeste ao outro a sua necessidade” (RB 6,9).
c) Além da lei do supérfluo
Chamamos aqui “lei do supérfluo” aquela frase incandescente de São Basílio Magno em uma de suas homilias:
Pertence ao faminto o pão que tu reténs. Ao que está nu pertence o manto que guardas. Ao descalço, o calçado que irá apodrecer em tua casa. É do necessitado o dinheiro que tens enterrado (3).
Resumindo numa máxima a exortação de São Basílio: o supérfluo pertence aos pobres.
Embora Francisco não tenha escrito sobre a partilha com os demais pobres, sua práxis é profusamente atestada pelos hagiógrafos. Ele queria que os frades partilhassem com os necessitados não apenas o que lhes era supérfluo, mas também o que estava destinado às suas próprias necessidades. Ao encontrar alguém mais necessitado do que ele, não tendo supérfluo, dava aquilo que lhe era absolutamente necessário. Dizia:
Recebemo-lo de empréstimo até acontecer que encontremos alguém mais pobre... Não quero ser ladrão; ser-nos-ia imputado como furto, se não o dermos ao mais necessitado (2Cel 87; CA 32).
Exemplos claros disso são as várias vezes em que ele deu seu próprio manto a algum pobre (cf. 2Cel 86; 87; 88; 92) ou, quando já não tinha o manto, cortava um pedaço do próprio hábito (cf. 2Cel 90) ou dava como esmola os ornamentos do altar (cf. 2Cel 67) e até mesmo o livro do Evangelho usado na liturgia (cf. 2Cel 91).
Resumindo o pensamento de Francisco sobre economia, pode-se dizer que, tendo como princípio o cuidado dos irmãos, ele realmente desenvolve um modelo econômico alternativo, baseado no trabalho, na partilha entre os irmãos e na partilha (não só do supérfluo) com os demais pobres.
3. O conceito de propriedade privada no pensamento franciscano
A tese comum defendida na Idade Média, inclusive por teólogos do porte de Santo Tomás de Aquino (4), era a da justificação da propriedade privada pela lei natural. Na linha aristotélica, Tomás de Aquino defende que o dominium (o termo indica poder de uns sobre os outros e propriedade sobre as coisas) remonta ao estado original, não é consequência do pecado.
A escola franciscana, possivelmente influenciada por uma compreensão evangélica da pobreza (Cristo quis ser e fez-se pobre), elaborou um pensamento alternativo. Teólogos franciscanos que abordaram o tema: Alexandre de Hales, Boaventura, Mateus de Aquasparta, Pedro João Olivi, Duns Scotus e Ockham. Já com Alexandre de Hales (5), passando por Boaventura (6), a formulação adquire uma clareza incontestável. Segundo Alexandre de Hales, deve-se distinguir entre status innocentiae (o estado do ser humano antes do pecado) e status naturae lapsae (estado depois do pecado). Em seu estado de inocência foi dada ao ser humano a lex naturae simpliciter; em seu estado de natureza caída, foi-lhe dada a lex positiva, esta última com a finalidade de coibir a vontade dos mais fortes de submeter e explorar os mais fracos. Deste modo, em seu estado original, havia a potestas utendi, o commune solatium rerum (provisão ou uso comum das coisas). Com o pecado, irrompem a avareza, a tendência à apropriação, a separação entre o meu e o teu, a concupiscência da posse e da acumulação. Por isso, a necessidade de uma lei positiva (lei da sociedade), que, no entanto, não deve ser absolutizada nem divinizada como se fosse o projeto eterno de Deus. Ela mostra apenas a precariedade e a fragilidade da condição em que se encontra o ser humano caído. Se ela estabelece normas para proteger a propriedade particular, é porque o ser humano perdeu o senso do uso comum das coisas, que era próprio de seu estado primeiro.
Igualmente, para Duns Scotus, o ser humano não é proprietário por natureza. Como bem comenta Todisco, “os dominia não fazem parte do status innocentiae, quando tudo era comum e o uso dos bens respondia somente à lógica da necessidade de cada um. O atual desenfreamento do instinto concupiscente faz parte de nossa história, não de nossa natureza... Assim, a partir do estado de comunhão de bens se passou ao estado de distinção dos dominia para propiciar uma convivência pacífica. Nem o direito natural ou ius naturae nem o divino ou ius divinum se podem tomar legitimamente como argumento a favor da propriedade, como se esta expressasse a índole originária da natureza humana” (7) .
E Guilherme de Ockham sublinha que, depois do pecado, o ser humano não está em condições de gozar os bens em comum, motivo pelo qual precisa regular o poder de apropriar-se das coisas, de acordo com a condição humana atual (8).
4. O modelo econômico dos Montepios
A crescente monetarização acontecida já na época de São Francisco despertou muitos homens ricos à prática da usura. Devido aos seus lucros exorbitantes e à espoliação dos pobres causada pelos juros altos dos usurários, esta prática, comparada em gravidade à simonia e à avareza, era severamente condenada pela teologia moral. Santo Antônio de Lisboa, por exemplo, tornou-se um grande pregador contra a usura, pelo fato de esta prática miserar muitas famílias já pobres. Com comparações contundentes, ele clamava:
Um povo maldito de usurários, forte e inumerável, cresceu sobre a terra. Os seus dentes são como os dentes de leão... seus dentes cheiram mal, por motivo de existir sempre na sua boca o estrume da pecúnia e o esterco da usura. Os seus queixais são como leõezinhos, porque arrebatam, mastigam e devoram os bens dos pobres, dos órfãos e das viúvas” (9).
Com o passar do tempo, os frades menores, compreendendo que o uso do dinheiro fazia parte da vida cotidiana do povo, perceberam que não bastava anatematizar o dinheiro. A usura ainda dizimava muitas vidas e dignidades. Participando das angústias dos cidadãos, especialmente dos mais pobres, e conscientes da força do capital que movia a sociedade – sem deixar de arruinar muitas vidas –, os frades começaram a refletir também sobre esta realidade de maneira realista, chegando a elaborar um pensamento sobre economia. Exemplos disso são os tratados de Pedro João Olivi, intitulados Tractatus de emptione et venditione e Tractatus de contractibus usurariis et de restitutionibus. Este teólogo trilha o caminho do preço justo dos bens produzidos, levando em conta não apenas o trabalho do artesão, mas também as dificuldades e trabalho do mercador, as situações de escassez e de abundância, etc., que acabam incidindo legitimamente na valorização da mercadoria. Posteriormente, Bernardino de Sena estabelecerá os elementos a serem levados em conta no preço dos bens produzidos: o valor natural da coisa produzida (realis bonitas naturae) e a utilidade (utilitas rei, pois o uso acrescenta valor à coisa); acrescentem-se a estes a virtuositas (qualidade), a raritas (escassez) e a complacibilitas (a satisfação que o produto dá ao que o compra) (10).
A contribuição franciscana em assuntos de economia, porém, não ficou no nível do pensamento. A iniciativa dos montepios foi a maneira concreta encontrada para levar a sociedade ao bom uso do dinheiro, isto é, a produzir bens de consumo sem produzir miséria. Bernardino de Sena (1380-1444) e Bernardino de Feltre (1439-1494), entre muitos outros pregadores, foram os incentivadores deste modelo de economia. O sistema consistia em levar os ricos a substituírem as esmolas por empréstimo a juros baixos para os que não tinham um capital e eram capazes de produzir bens de consumo. Deste modo, o pobre se sentiria valorizado em sua dignidade de poder produzir, de colaborar com a construção da vida social. Uma frase de Bernardino de Feltre, que mostra a natureza dos montepios, reza assim:
Não retenhas o supérfluo, que o supérfluo rompe a cesta... quando és rico e tens a barriga cheia e o pobre te pede emprestado e tu podes ajudar, se não o ajudas, pecas mortalmente. Portanto, se estás obrigado a dar esmola e ser generoso, quanto mais estás obrigado a dar ajuda daquilo que receberás com juro? (11).
O primeiro montepio foi fundado em 1462, em Perúgia, mas a iniciativa estendeu-se com muita rapidez pelas cidades da Itália e da Europa.
Conclusão
Quando os frades menores se põem a pensar a economia e a criar modelos econômicos alternativos, onde fica a pobreza? Estariam eles distanciando-se do carisma do fundador, afastando-se da pobreza radical? Não subsistiria, no fundo, a contradição à proposta original de Francisco?
Pelo contrário, vemos aí exatamente a superação da suposta contradição e uma até mesmo apologia da pobreza. Aos que consideravam a pobreza uma violação dos direitos fundamentais da natureza humana (entre estes o chamado direito natural à posse), a renúncia à posse dos bens mostra que a pobreza radical, pensada neste contexto, não vai contra a natureza humana, mas contra a natureza atual (caída) que se tornou egoísta. A pobreza radical (renúncia a qualquer domínio) aponta, portanto, para o status innocentiae, não viola absolutamente nenhum direito natural (lex naturae), como pretendiam os que se inspiravam numa concepção naturalista pagã, mas restaura a condição primeira. Esta visão dá ao indivíduo o pleno direito (liberdade) a renunciar a todos os direitos, e nisso consiste a radicalidade máxima da pobreza.
1 Os hagiógrafos são ainda mais radicais, ao atribuírem a Francisco a comparação do dinheiro com o esterco; cf. 2Cel 65,3; 66,2; CA 27,3; LTC 45,4.
2 Quem recentemente fez uma abordagem da pobreza do ponto de vista da economia foi D. Flood em seu livro Frei Francisco e o movimento franciscano, Vozes-Cefepal, Petrópolis, 1986, onde ele fala da “base econômica” (p. 42, 54, 55, 58), de “sistema econômico” (p. 49), de “organização econômica” (p. 67, 71) da vida dos frades, caracterizando-a como “economia fraterna” (p. 71), apontando, inclusive, a esmola não por razões de pobreza, mas por razões simplesmente econômicas (p. 55-56).
3 Basílio Magno, Homilia in Lc 12,16, em PG 31, c. 1752.
4 STh., I, q. 96, a. 4.
5 SH, II, q. 3, c. 2.
6 Boaventura, II Sent., d. 44, q. 2, a. 2.
7 Todisco O., “Ética e Economia”, em Merino J.A.; Fresneda F.M. (org.), Manual de Filosofia Franciscana, Petrópolis, Vozes-FFB, 2006, 261-332, p. 267; cf. Duns Scotus, Ordinatio IV, d. 15, q. 2, n. 5; sobre a questão da propriedade em Duns Scotus, cf. Bottin F., “G.D. Scoto sull’origine della proprietà”, em Rivista di Storia della Filosofia 52 (1997) 47-59.
8 Cf. Todisco O., o. c. 267.
9 Sermão da Sexagésima.
10 Bernardino de Sena, II, Sermo XXX, c. 1; obra citada por Todisco O., o. c. 324.
11 Citado por Todisco O., o. c. 327.
Extraído de http://www.itf.org.br/artigos/2010/006.php acesso em 20 jul. 2010.Ilustração: Das gute Schicksal, Detail / Georges de La Tour. 1633-1639. New York : Metropolitan Museum of Art. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Georges_de_La_Tour_017.jpg acesso em 20 jul. 2010.
AUDIÊNCIA GERAL
Sala Paulo VI
Quarta-feira, 7 de Julho de 2010
[Vídeo]
João Duns Escoto
Amados irmãos e irmãs!
Esta manhã – depois de algumas catequeses sobre diversos grandes teólogos – desejo apresentar-vos outra figura importante na história da teologia: trata-se do beato João Duns Escoto, que viveu no final do século XIII. Uma antiga inscrição sobre o seu túmulo resume as coordenadas geográficas da sua biografia: "a Inglaterra acolheu-o; a França instruiu-o; Colónia, na Alemanha, conserva os seus despojos mortais; na Escócia ele nasceu". Não podemos descuidar estas informações, também porque temos muito poucas notícias sobre a vida de Duns Escoto. Ele nasceu provavelmente em 1266 numa aldeia que se chamava precisamente Duns, perto de Edimburgo. Atraído pelo carisma de São Francisco de Assis, entrou na Família dos Frades Menores, e em 1291 foi ordenado sacerdote. Dotado de uma inteligência brilhante e propensa à especulação – aquela inteligência pela qual a tradição lhe conferiu o título de Doctor subtilis, "Doutor subtil" – Duns Escoto foi orientado para os estudos de filosofia e de teologia nas célebres Universidades de Oxford e de Paris. Concluída com bom êxito a formação, empreendeu o ensino da teologia nas Universidades de Oxford e de Cambridge, e depois de Paris, começando a comentar, como todos os Mestres da época, as Sentenças de Pedro Lombardo. As obras principais de Duns Escoto representam precisamente o fruto maduro destas lições, e tomam o título dos lugares onde ele ensinou: Opus Oxoniense (Oxford), Reportatio Cambrigensis (Cambridge), Reportata Parisiensia (Paris). Afastou-se de Paris quando, tendo rebentado um grave conflito entre o rei Filipe iv o Belo e o Papa Bonifácio VIII Duns Escoto preferiu o exílio voluntário, para não assinar um documento hostil ao Sumo Pontífice, como o rei tinha imposto a todos os religiosos. Assim – por amor à Sé de Pedro – juntamente com os Frades franciscanos, abandonou o país.
Queridos irmãos e irmãs, este acontecimento convida-nos a recordar quantas vezes, na história da Igreja, os crentes encontraram hostilidades e até sofreram perseguições devido à sua fidelidade e devoção a Cristo, à Igreja e ao Papa. Todos nós olhamos com admiração para estes cristãos, que nos ensinam a guardar como um bem precioso a fé em Cristo e a comunhão com o Sucessor de Pedro e, assim, com a Igreja universal.
Contudo, as relações entre o rei da França e o sucessor de Bonifácio VIII depressa foram restabelecidas, e em 1305 Duns Escoto pôde regressar a Paris para ali ensinar teologia com o título de Magister regens, que hoje corresponderia a professor ordinário. Sucessivamente, os Superiores convidaram-no para Colónia como professor do Colégio teológico franciscano, mas ele faleceu a 8 de Novembro de 1308, com apenas 43 anos de idade, contudo deixando um número relevante de obras.
Devido à fama de santidade da qual gozava, o seu culto difundiu-se depressa na Ordem franciscana e o Venerável Papa João Paulo II quis proclamá-lo solenemente beato a 20 de Março de 1993, definindo-o "cantor do Verbo encarnado e defensor da Imaculada Conceição". Nesta expressão está sintetizada a grande contribuição que Duns Escoto ofereceu à história da teologia.
Antes de tudo, ele meditou sobre o Mistério da Encarnação e, ao contrário de muitos pensadores cristãos da época, afirmou que o Filho de Deus se teria feito homem mesmo se a humanidade não tivesse pecado. Ele afirma na "Reportata Parisiensia": "Pensar que Deus teria renunciado a esta obra se Adão não tivesse pecado seria totalmente irracional! Portanto, digo que a queda não foi a causa da predestinação de Cristo, e que – mesmo se ninguém tivesse pecado, nem o anjo nem o homem – nesta hipótese Cristo teria sido ainda predestinado do mesmo modo" (in III Sent., d. 7, 4). Este pensamento, talvez um pouco surpreendente, surge porque para Duns Escoto a Encarnação do Filho de Deus, projectada desde a eternidade por parte de Deus Pai no seu desígnio de amor, é cumprimento da criação, e torna possível que cada criatura, em Cristo e por meio dele, seja colmada de graça, e preste louvor e glória a Deus na eternidade. Duns Escoto, apesar de estar consciente de que, na realidade, por causa do pecado original, Cristo nos remiu com a sua Paixão, Morte e Ressurreição, reafirma que a Encarnação é a obra maior e mais bela de toda a história da salvação, e que ela não está condicionada por qualquer facto contingente, mas é a ideia original de Deus para unir finalmente toda a criação consigo mesmo na pessoa e na carne do Filho.
Discípulo fiel de São Francisco, Duns Escoto gostava de contemplar e pregar o Mistério da Paixão salvífica de Cristo, expressão do amor imenso de Deus, o Qual transmite com grandíssima generosidade para fora de si os raios da sua bondade e do seu amor (cf. Tractatus de primo principio, c. 4). E este amor não se revela só no Calvário, mas também na Santíssima Eucaristia, da qual Duns Escoto era devotíssimo e que via como o Sacramento da presença real de Jesus e como o Sacramento da unidade e da comunhão que conduz a amar-nos uns aos outros e a amar Deus como o Sumo Bem (cf.Reportata Parisiensia, in IV Sent.,d.8,q.1, n. 3).
Queridos irmãos e irmãs, esta visão teológica, fortemente "cristocêntrica", predispõe-nos para a contemplação, admiração e gratidão: Cristo é o centro da história e da criação, é Aquele que dá sentido, dignidade e valor à nossa vida! Como o Papa Paulo VI em Manila, também eu hoje gostaria de bradar ao mundo: "[Cristo] é o revelador do Deus invisível, é o primogénito de cada criatura, é o fundamento de todas as coisas; Ele é o Mestre da humanidade, é o Redentor, Ele nasceu, morreu, ressuscitou para nós; Ele é o centro da história e do mundo; é Aquele que nos conhece e nos ama; é o companheiro e o amigo da nossa vida... Nunca terminaria de falar d'Ele" (Homilia, 29 de Novembro de 1970).
Não só o papel de Cristo na história da salvação, mas também o de Maria é objecto da reflexão do Doctor subtilis. Na época de Duns Escoto a maior parte dos teólogos fazia uma objecção, que parecia insuperável, à doutrina segundo a qual Maria Santíssima foi preservada do pecado original desde o primeiro momento da sua concepção: de facto, a universalidade da Redenção realizada por Cristo, à primeira vista, podia parecer comprometida por semelhante afirmação, como se Maria não tivesse precisado de Cristo e da sua redenção. Por isso os teólogos opunham-se a estes textos. Então, Duns Escoto, para fazer compreender esta preservação do pecado original, desenvolveu um tema que depois seria adoptado também pelo beato Papa Pio IX em 1854, quando definiu solenemnete o dogma da Imaculada Conceição de Maria. E este argumento é o da "Redenção preventiva", segundo a qual a Imaculada Conceição representa a obra-prima da Redenção realizada por Cristo, porque precisamente o poder do seu amor e da sua mediação obteve que a Mãe fosse preservada do pecado original. Por conseguinte Maria é totalmente remida por Cristo, mas já antes da concepção. Os Franciscanos, seus irmãos de hábito, aceitaram e difundiram com entusiasmo esta doutrina, e outros teólogos – muitas vezes com juramento solene – comprometeram-se a difundi-la e a aperfeiçoá-la.
A este propósito, gostaria de ressaltar outro aspecto, que me parece importante. Teólogos de valor, como Duns Escoto acerca da doutrina sobre a Imaculada Conceição, enriqueceram com a sua contribuição específica de pensamento aquilo em que o Povo de Deus já acreditava espontaneamente sobre a Bem-Aventurada Virgem, e manifestava nos actos de piedade, nas expressões da arte e, em geral, na vivência cristã. Assim a fé quer na Imaculada Conceição, quer na Assunção corporal da Virgem já estava presente no Povo de Deus, mas a teologia ainda não tinha encontrado a chave para a interpretar na totalidade da doutrina da fé. Por conseguinte, o Povo de Deus precede os teólogos e tudo isto graças àquele sensus fidei sobrenatural, ou seja, àquela capacidade infundida pelo Espírito Santo, que habita e abraça a realidade da fé, com a humildade do coração e da mente. Neste sentido, o Povo de Deus é "magistério que precede", e que depois deve ser aprofundado e intelectualmente acolhido pela teologia. Que os teólogos possam pôr-se sempre à escuta desta nascente da fé e preservar a humildade e simplicidade dos pequeninos! Já recordei isto há alguns meses, dizendo: "Existem grandes doutos, grandes especialistas, grandes teólogos, grandes mestres da fé, que nos ensinaram muitas coisas. Penetraram nos pormenores da Sagrada Escritura... mas não puderam ver o próprio mistério, o verdadeiro núcleo... O essencial permaneceu escondido! Em contrapartida, no nosso tempo existem também os pequeninos que conheceram este mistério. Pensemos em santa Bernadete Soubirous; em santa Teresa de Lisieux, com a sua nova leitura "não científica" da Bíblia, mas que entra no coração da Sagrada Escritura" (Homilia na Missa celebrada com os Membros da Pontifícia Comissão Teológica Internacional, 1/12/2009, ed. em português de L'Osservatore Romano de 5/12/2009, p. 9).
Por fim, Duns Escoto desenvolveu um aspecto ao qual a modernidade é muito sensível. Trata-se do tema da liberdade e da sua relação com a vontade e com o intelecto. O nosso autor ressalta a liberdade como qualidade fundamental da vontade, iniciando uma orientação de tendência voluntarista, que se desenvolveu em contraste com o chamado intelectualismo agostiniano e tomista. Para São Tomás de Aquino, que segue Santo Agostinho, a liberdade não pode considerar-se uma qualidade inata da vontade, mas o fruto da colaboração da vontade e do intelecto. Uma ideia da liberdade inata e absoluta colocada na vontade que precede o intelecto, quer em Deus quer no homem, de facto, corre o risco de levar à ideia de um Deus que não estaria relacionado nem sequer com a verdade e com o bem. O desejo de salvar a absoluta transcendência e diversidade de Deus com uma acentuação tão radical e impenetrável da sua vontade não tem em consideração que o Deus que se revelou em Cristo é o Deus "logos", que agiu e age cheio de amor por nós. Certamente, como afirma Duns Escoto na esteira da teologia franciscana, o amor supera o conhecimento e é capaz de compreender cada vez mais o pensamento, mas é sempre o amor do Deus "logos" (cf. Bento XVI, Discurso em Regensburg, Insegnamenti di Benedetto XVI, II [2006], p. 261). Também no homem a ideia de liberdade absoluta, colocada na vontade, esquecendo o nexo com a verdade, ignora que a mesma liberdade deve ser libertada dos limites que lhe provêm do pecado.
Falando aos seminaristas romanos no ano passado recordei que "a liberdade em todos os tempos foi o grande sonho da humanidade, desde o início, mas sobretudo na época moderna" (cf. Discurso ao Pontifício Seminário Maior Romano, 20 de Fevereiro de 2009). Contudo, precisamente a história moderna, além da nossa experiência quotidiana, ensina-nos que a liberdade só é autêntica, e só ajuda a construir uma civilização deveras humana, se estiver reconciliada com a verdade. Se estiver separada da verdade, a liberdade torna-se tragicamente princípio de destruição da harmonia interior da pessoa humana, fonte de prevaricação dos mais fortes e dos violentos, e causa de sofrimentos e de lutos. A liberdade, como todas as faculdades das quais o homem está dotado, cresce e aperfeiçoa-se, afirma Duns Escoto, quando o homem se abre a Deus, valorizando aquela disposição para a escuta da Sua voz, que ele chama potentia oboedientialis: quando nos pomos à escuta da Revelação divina, da Palavra de Deus, para a acolher, então somos alcançados por uma mensagem que enche de luz e de esperança a nossa vida e somos deveras livres.
Amados irmãos e irmãs, o beato Duns Escoto ensina-nos que na nossa vida o essencial é crer que Deus está próximo de nós e nos ama em Jesus Cristo, e portanto, cultivar um amor profundo a Ele e à sua Igreja. Deste amor nós somos as testemunhas nesta terra. Maria Santíssima nos ajude a receber este amor infinito de Deus do qual gozaremos de modo pleno eternamente no Céu, quando enfim a nossa alma estiver para sempre em Deus, na comunhão dos santos.
Saudação
Uma saudação cordial aos peregrinos de língua portuguesa, com votos de que sejais sobre esta terra testemunhas do Amor de Cristo, consolidando a fé que professais através da visita aos túmulos dos Apóstolos Pedro e Paulo. Que Deus vos abençoe!
Extraído de http://www.vatican.va/holy_father/benedict_xvi/audiences/2010/documents/hf_ben-xvi_aud_20100707_po.html acesso em 15 jul. 2010.Ilustração: Le "Quaestiones" di Giovanni Scoto (manoscritto del sec. XIV-XV): iniziale decorata. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Duns-Scoto-manoscrito.jpg acesso em 15 jul. 2010.