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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Celibato

“Se o celibato é vivido como um dom, mesmo que custe, vamos por um bom caminho; se é visto como uma obrigação, não tem futuro. Impor como lei o que só é um dom, ou dizer fanfarronamente que “o matrimônio é para a tropa”, é converter em mérito próprio o que nos foi dado”, escreve o teólogo espanhol José Ignacio González Faus em seu blog Miradas Cristianas, 30-10-2010. A tradução é do Cepat.
Eis a sua reflexão.
Em tempos de pederastias clericais e transtornos afins, pode um pobre diabo pecador e jesuíta oferecer seu testemunho sobre o tema do celibato? Tentarei fazê-lo, amparando-me em testemunhos mais amadurecidos que os meus.

1. O padre Casaldáliga, em um famoso poema para rapazes que se preparavam para o ministério eclesial, lhes dizia: “será uma paz armada, companheiros / será toda a vida esta batalha / que a cratera da carne só cala / quando a morte faz calar seus braseiros”. Um rapaz que leu o poema me comentava ingenuamente: “não pensei que Casaldáliga tivesse tanta experiência nisso”. E o soneto do bispo continua: “não é que deixais o coração sem bodas / tereis de amar tudo, todos, todas / discípulos Daquele que amou primeiro”.

Amor mais universal e batalha mais dura. Não se trata de um desprezo platônico da matéria nem de suprimir a dimensão afetiva da pessoa, mas de tentar transformá-la para que se pareça com o amor “até o extremo” (Jo 13, 1) do Deus anunciado pelo cristianismo. Tentar isso, nós, que quase não somos mais que necessidade de afeto! É uma loucura, não uma proeza; e é preciso sabê-lo. Mas tudo o que tem a ver com o amor e com Deus tem algo de loucura, mesmo que depois muitos que não saem na imprensa possam testemunhar que às vezes essa loucura “funciona”. Talvez por isso disse Schillebeeckx que toda a relação de casal há de ter uma dose de celibato e, caso contrário, não funcionará. Ser homem ou mulher é simplesmente aprender a amar; e o que conta no final de nosso trajeto, neste campo, não é um expediente impoluto, mas o que se tenha aprendido a querer.

2. A esta visão de Casaldáliga acrescento um matiz Jesus de Nazaré: “não se concede a todos”. Portanto: se o anterior é vivido como um dom, mesmo que custe, vamos por um bom caminho; se é visto como uma obrigação, não tem futuro. Impor como lei o que só é um dom, ou dizer fanfarronamente que “o matrimônio é para a tropa”, é converter em mérito próprio o que nos foi dado.

3. O dito joga um balanço claro: há certa coerência entre o ministério eclesial, como construtor e servidor da comunidade e a vida célibe. Mas essa coerência não pode ser imposta à força, mas deve ser despertada pela iniciação na experiência do amor de Deus. Em 325, no Concílio de Niceia, se procurou pela primeira vez impor o celibato a todos os servidores da Igreja (bispos, presbíteros...). E conta o historiador Sócrates que um certo Pafnucio, bispo da Tebaida, se ergueu na assembleia e “vociferou com veemência que não se devia impor essa carga; que o matrimônio e o leito conjugal são santos, e que um excesso de severidade seria prejudicial à Igreja, pois nem todos poderiam suportar uma disciplina tão estrita” (1, 11).

Demonstrou assim que seu o celibato não o havia reprimido nem o tornado um invejoso, mas mais compreensivo: como deve ser. Mas, ao menos, naquele tempo os problemas eram discutidos. A partir de então as Igrejas orientais conservaram a disciplina de Niceia: ordenam pessoas casadas e o celibato só obriga aquele que acedeu como célibe ao ministério.

4. A demanda atual de reexaminar a lei do celibato não pode ser esse sonho burguês, segundo o qual a mulher não é mais que a última demanda de um clero que já tem tudo. Pois, como escreve Metz, se o cristianismo de hoje necessita de algo é encarnar-se “para além da religião burguesa”. A razão dessa demanda é que as comunidades têm direito à eucaristia, e a instituição eclesial não pode privá-las desse direito. Isso, creio, que obriga, em nome do Evangelho, a elevar um protesto dolorido pelo que aconteceu nas Igrejas mexicana de Chiapas, com dom Samuel Ruiz.

Este bispo foi formando pacientemente uma fornada de diáconos casados, que saíam às próprias comunidades, recebiam boa formação teológica e acabaram sendo líderes e pontos de referência das comunidades. Com o passar dos anos e visto o sucesso do experimento, as próprias comunidades acabaram perguntando por que não se podia ordenar presbíteros a todos aqueles diáconos que eram efetivamente (e com léxico bíblico) “seus pastores”. A reação de Roma não foi a de encarar diante de Deus o problema, mas proibir terminantemente a ordenação de novos diáconos. Dizem que contribuíram para essa decisão as pressões do governo mexicano de direita, temeroso com a liderança dos diáconos. Mas isso não importa agora. O doloroso é constatar o declive daquelas comunidades, alguns anos depois.

Na minha humilde opinião, esse modo de proceder foi pecaminoso. A eucaristia é um direito das comunidades que está acima do direito que tiver a instituição de impor algumas condições para os responsáveis da Igreja. Há já quarenta anos, Rahner dizia que isto é “evidente”. Responder que a eucaristia não é um direito, mas um dom e que a Igreja dá um presente quando impõe uma lei, é resposta heterodoxa, mesmo que seja feito por algumas mitras em defesa do status quo.
Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=37933 cesso em 02 nov. 2010.

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