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domingo, 9 de janeiro de 2011

Desafios da Ecologia às religiões

José María VIGIL

Esse artigo é parte do número coletivo
de revistas latino-americanas de teologia de 2010,
animado pela Comissão Teológica Latino-americana
da ASETT/EATWOT

A ciência que mais mudou a consciência da humanidade é, na atualidade, a “nova cosmologia”, ou seja, as ciências do cosmos e da natureza. Pela primeira vez, e de modo simultâneo para toda a humanidade, temos uma visão científica do universo: sua origem, suas dimensões, sua evolução, as galáxias, as estrelas, os planetas, a vida..., que acaba sendo uma visão muito diferente daquela que tínhamos durante milênios e tivemos até a poucas décadas passadas.


Ao longo de toda a história de nossa espécie não desfrutamos desta nova visão maravilhosa. As religiões, a arte, a poesia... se encarregaram, então, de suprir, com imaginação e crenças, nossa ignorância coletiva e nossos medos. Os “mitos” que elas criaram cumpriram um papel social útil para nossa organização civilizacional, e muito importante e significativo para nosso imaginário coletivo. Mas, hoje em dia, há um problema, e ele consiste no seguinte: aqueles mitos simbólicos não podem mais continuar sendo interpretados com uma “epistemologia mítica”, ou seja, não podemos continuar acreditando que eles são ainda “descrições objetivas da realidade”... As religiões, a poesia, a arte imaginaram um mundo pequeno, plano, parado, fixo, criado diretamente assim como o vemos e regido por um Deus lá em cima, lá fora, que seria uma espécie de razão última de tudo.

Diante da nova ciência, este “imaginário religioso clássico”, que presidiu a consciência da humanidade durante milênios, salta em pedaços. Não é mais possível ser uma pessoa atualizada e continuar cultivando aquele imaginário. Este é o principal motivo pelo qual a relação entre a ecologia e as religiões é tensa.

A “nova narrativa” que a ciência nos apresenta – e que hoje, como afirmamos acima, pela primeira vez, é uma narrativa científica e simultaneamente a mesma para toda a humanidade, para todos os povos do planeta – oferece-nos uma nova visão do mundo, até agora desconhecida, e com estas características:

– um universo em total e contínuo movimento: ao contrário de como sempre tínhamos imaginado, nada está parado;

– em expansão: tudo começou com uma grande explosão, e tudo continua incontidamente se expandindo; estamos numa explosão, somos parte dessa explosão;

– em evolução e desdobramento: não se trata de um “cosmos” regido por leis eternas e imutáveis, mas de uma “cosmogênse” que se desdobra a partir de dentro;

– com o aparecimento de propriedades emergentes e de auto-organização a partir da desordem do caos: um todo que é maior do que as partes e que está em cada parte...;

– orientado para a vida, a complexidade e a consciência, que, finalmente, emerge no ser humano, que se torna consciência coletiva, que assume conscientemente o cosmos e por ele se responsabiliza;

– relacionado, em forma holística, em rede de redes..., nas quais cada partícula está relacionada com todas...

Esta nova visão do cosmos nos situa num mundo muito diferente daquele que as religiões nos ensinaram, e nos muda, radicalmente, em vários aspectos:

Muda a imagem da natureza, que, a partir de agora:

– Não podemos mais imaginá-la como mero cenário da história humana, história essa que seria o único evento importante que acontece no planeta e no cosmos...

– Na atual cosmovisão não é possível aceitar um “segundo andar”. O que se queria indicar com aquele simbolismo só pode encontrar-se agora “neste mesmo andar”. Não há “metafísica” (ou, pelo menos, não é necessário nem obrigatório crer nela, mesmo que seja útil imaginá-la...).

– Já não é aceitável uma qualificação religiosa negativa (pecaminosa) da matéria e de tudo o que a ela se relaciona (carne, instinto, sexo, prazer...).

– Não podemos mais aceitar o pressuposto mitológico de um “pecado original” que, ancestralmente, tudo contaminou, mas sim, uma “bênção original”...

– Esta vida não pode ser somente uma ilusão passageira, uma “prova”, em função de outra vida, a verdadeira e definitiva, aquela depois da morte à que um Criador nos teria destinado... As religiões de “salvação eterna” precisam, com urgência, dar novamente a razão de si mesmas no contexto mental da atualidade.

Muda a imagem do ser humano:

– Não viemos de cima, nem de fora, mas sim, de baixo, de dentro, da Terra, do Cosmos; somos o resultado atual, a flor da evolução cósmica...

– Não é verdade que somos superiores, diferentes e alheios ao resto da Natureza, únicos com mente e espírito procedentes diretamente de Deus...

– Não somos os “donos da criação”; somos apenas mais uma espécie, embora a única capaz de assumir responsabilidade.

– Não podemos viver separados da Natureza, como “sobre-naturais”, injustificadamente auto-exilados de nossa placenta, abdicando insensatamente de nossas raízes naturais, auto-despojados, artificialmente desnaturalizados.

– Não somos “sobre-naturais”, mas sim, muito naturais, e naturais a um tal estágio ao qual, talvez, outros seres ainda não tenham logrado chegar. Somos Natureza, Terra que sente, que pensa e ama, matéria que em nós chega à reflexão...

• Muda a imagem de Deus

– Uma visão tão precária da natureza e do cosmos como aquela que a humanidade teve só podia dar dela mesma uma imagem insuficiente de Deus.

– A atual visão da realidade não nos permite mais imaginar um Deus lá fora, lá em cima, nesse “segundo andar superior” do qual dependeria o nosso. Hoje vemos que não tem mais sentido falar nem pensar num lugar “fora” ou “acima” do cosmos.

– A ideia de um Deus separado da criação ou trans-cendente é um de nossos principais problemas (Thomas Berry).

– Um deus antropomórfico não faz sentido: “pessoa” que pensa, decide, ama e se expressa como nós... Deus, theos ou Zeus do Olimpo.

– E pensar que é “Senhor”, Dono, Juiz que distribui prêmios e castigos é, hoje, claramente, um antropomorfismo agrário.

– Se existir “a divindade” (dimensão real da realidade), só poderá ser encontrada na única realidade cósmica...

Retornemos ao cosmos e à natureza

Santo Tomás disse que “um erro a respeito da Natureza leva a um erro a respeito de Deus”... Os erros que sofremos a respeito da natureza e, sobretudo, a ignorância a seu respeito foram máximos, pelo que é de se supor que a imagem de Deus e do religioso que dessa referência decorreu implique em grandes deficiências que, hoje, estaríamos em condições de reparar.

Parece evidente que as religiões viveram de costas para a natureza, sobretudo por que concentraram toda a sua atenção numa pequena “história sagrada”, iniciada somente há 3.000 anos, e esta foi a única “revelação” que levaram em conta.

A explosão científica dos últimos tempos é, sem dúvida, uma nova “experiência de revelação” em que o divino da realidade se nos manifesta de uma nova forma. Na atualidade, não há nada que esteja inspirando uma tomada de consciência espiritual no mundo como a “nova narrativa” de nossa história cósmica. As religiões precisam sentir o kairós ecológico desta hora e voltar-se para o cosmos e a natureza, para neles reconhecer nossa “história sagrada” e superar o atual divórcio entre ciência e espiritualidade, entre religião e realidade. Aceitar o desafio da ecologia não é somente incluir o “cuidado da natureza” entre os imperativos morais; é mais: implica uma “reconversão ecológica” da religião.

Desafios

Portanto, não é só a imagem física do mundo que mudou. Todo ele mudou: sua origem, suas dimensões, sua arquitetura, sua complexidade, seu sentido... Diante desta mudança, as religiões, que elaboraram todo seu patrimônio simbólico (categorias, teologias, liturgia, dogmas, ritos, mitos...) no contexto daquele velho imaginário, parecem agora profundamente antiquadas, pertencentes a um mundo obsoleto, distante, que já não existe e nem é compreensível. A linguagem religiosa tradicional perde sentido e significado e até se torna ininteligível para os jovens. As religiões, que durante milênios prestaram à humanidade o serviço de expressar a dimensão mais profunda da existência, dão mostra de que já não servem mais...

Nesta situação, as religiões se sentem a si mesmas desatualizadas e incompreendidas, sem perceber com clareza qual seja a causa. Com frequência reagem defendendo-se, repetindo e reafirmando intempestivamente sua tradição sagrada, suas “verdades reveladas”, as “verdades eternas”..., quando deveriam reinterpretá-las e adequá-las à nova linguagem e aos novos paradigmas a que nos referimos acima, abandonando aqueles erros de perspectiva que todos sofremos pela ignorância da humanidade à qual, historicamente, nos vimos submetidos...

Em geral, os anos 60 do século passado foram um momento de esperança e otimismo no cristianismo, quando parecia que se estava abrindo a possibilidade de uma profunda renovação interna e a possibilidade de uma reconciliação com o mundo e com os valores da modernidade (razão, ciência, mundo, democracia, valor da pessoa, liberdade religiosa e demais liberdades, perspectiva dos pobres etc.).

Mas esta primavera logo foi truncada, diante da possível comoção que tal renovação poderia produzir. O medo venceu. Os freios e os retrocessos a que se optou desde então, distanciaram mais e mais a sociedade em relação ao cristianismo institucional. São dezenas de milhões de pessoas que, nas últimas décadas, na Europa, abandonaram a religião, alegando não poder aceitar uma cosmovisão que lhes parece superada, buscando então sua realização espiritual por novos caminhos. Só uma profunda reflexão – no campo da ecologia e no de vários outros “novos paradigmas” – e uma consequente e corajosa renovação teológica reabrirá a esperança.




José María VIGIL
Comissão Teológica Latino-americana da ASETT
Panamá – REPÚBLICA DO PANAMÁ


Extraído de:
RELaT - Revista Eléctronica Latinoamericana de Teologia. N. 411p.
Disponível em http://servicioskoinonia.org/relat/411p.htm acesso em 9 jan. 2011.

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