a experiência contemplativa em Clara de Assis
Por Delir Brunelli (1)
Os grandes mestres da contemplação falam em passos, etapas, graus ou degraus para se chegar à experiência contemplativa. Também Clara elaborou seu método, sua via, mas sem se prender a nenhuma das grandes correntes. É um método simples que brota da experiência vivida e não se perde em grandes explicações. Pode ser resumido em três verbos que aparecem juntos duas vezes nas Cartas a Inês de Praga: olhar, considerar, contemplar (2In 20; 4In 15-23).
Inserida na perspectiva do seguimento, a contemplação clariana não tem dificuldade em harmonizar a participação dos sentidos, da mente e do coração, sem acentuar demasiadamente um aspecto em detrimento do outro. O “olhe-considere-contemple” indica dimensões de um mesmo processo, mais do que graus, degraus ou etapas sucessivas.
1. Olhar a pobreza
O seguimento contemplativo de Jesus Cristo envolve o olhar. Em São João, a primeira proposta feita aos discípulos é esta: vinde e vede (Jo 1,39). “Ver” significa também ouvir, tocar, apalpar..., experiências que se tornam essenciais para o testemunho. Diz São João: o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam [...] vo-lo anunciamos (1Jo 1,1-3). O “ver” – que sintetiza toda a experiência – leva ao “permanecer”: Eles foram e viram onde morava e permaneceram com ele (Jo 1,39).
Na simbologia do espelho, o olhar se destaca de um modo especial, mas expressa o envolvimento de todos os sentidos. Quando Clara diz “olhe”, diz também “toque”, “ouça”, “experimente”, “sinta o perfume e o sabor”... Todos esses aspectos aparecem nos textos clarianos. Ao falar do espelho, o convite é para olhar a pobreza de Jesus: Olhe dentro desse espelho todos os dias [...]. Preste atenção no princípio do espelho, à pobreza daquele que, envolto em panos, foi posto no presépio. Admirável humildade, estupenda pobreza! O Rei dos anjos repousa numa manjedoura (4In 15.19-21).
Não se trata de uma postura romântica e sentimentalista diante do presépio, mas de uma experiência real de pobreza, que é privação de bens e também humilhação e desprezo, tal como o Filho de Deus que vindo a um seio virginal, quis aparecer no mundo desprezado, indigente e pobre (1In 19). Certamente os pobres a quem Clara muito amava e estendia a mão com prazer (LSC 3; PC 1,3; 17,1), pessoas concretas que viviam nas periferias e ruelas de Assis e frequentavam São Damião em busca de auxílio, esses pobres estavam ali, presentes nas feições humanas do Filho de Deus envolto em panos e reclinado numa manjedoura.
O primeiro passo na via da contemplação clariana não consiste em penetrar em si mesmo/a para descobrir a própria miséria, mas em sair de si e olhar a miséria do outro e da outra. Não é a luta contra vícios e paixões, num árduo exercício de humildade, mas a opção decidida pela pobreza, como caminho escolhido pelo Filho de Deus. O realismo da opção feita na juventude e a dura batalha travada durante toda a vida para permanecer fiel a esta opção não deixam Clara idealizar ou espiritualizar a pobreza. Esta é muito concreta e pode ser vista. “Olhe! Ele está ali, envolto em panos”.
O seguimento contemplativo de Jesus Cristo envolve o olhar. Em São João, a primeira proposta feita aos discípulos é esta: vinde e vede (Jo 1,39). “Ver” significa também ouvir, tocar, apalpar..., experiências que se tornam essenciais para o testemunho. Diz São João: o que ouvimos, o que vimos com nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam [...] vo-lo anunciamos (1Jo 1,1-3). O “ver” – que sintetiza toda a experiência – leva ao “permanecer”: Eles foram e viram onde morava e permaneceram com ele (Jo 1,39).
Na simbologia do espelho, o olhar se destaca de um modo especial, mas expressa o envolvimento de todos os sentidos. Quando Clara diz “olhe”, diz também “toque”, “ouça”, “experimente”, “sinta o perfume e o sabor”... Todos esses aspectos aparecem nos textos clarianos. Ao falar do espelho, o convite é para olhar a pobreza de Jesus: Olhe dentro desse espelho todos os dias [...]. Preste atenção no princípio do espelho, à pobreza daquele que, envolto em panos, foi posto no presépio. Admirável humildade, estupenda pobreza! O Rei dos anjos repousa numa manjedoura (4In 15.19-21).
Não se trata de uma postura romântica e sentimentalista diante do presépio, mas de uma experiência real de pobreza, que é privação de bens e também humilhação e desprezo, tal como o Filho de Deus que vindo a um seio virginal, quis aparecer no mundo desprezado, indigente e pobre (1In 19). Certamente os pobres a quem Clara muito amava e estendia a mão com prazer (LSC 3; PC 1,3; 17,1), pessoas concretas que viviam nas periferias e ruelas de Assis e frequentavam São Damião em busca de auxílio, esses pobres estavam ali, presentes nas feições humanas do Filho de Deus envolto em panos e reclinado numa manjedoura.
O primeiro passo na via da contemplação clariana não consiste em penetrar em si mesmo/a para descobrir a própria miséria, mas em sair de si e olhar a miséria do outro e da outra. Não é a luta contra vícios e paixões, num árduo exercício de humildade, mas a opção decidida pela pobreza, como caminho escolhido pelo Filho de Deus. O realismo da opção feita na juventude e a dura batalha travada durante toda a vida para permanecer fiel a esta opção não deixam Clara idealizar ou espiritualizar a pobreza. Esta é muito concreta e pode ser vista. “Olhe! Ele está ali, envolto em panos”.
Quem sofre a pobreza, em primeiro lugar, a sofre em seu corpo. É a fome, a sede, a nudez, o cansaço, a doença, o desabrigo... Da mesma forma, quem percebe a pobreza, antes de tudo, a percebe pelos sentidos. É assim que se abre o caminho evangélico da solidariedade e da partilha de vida, que é justamente a proposta do Espelho posto no presépio. O gesto solidário de Clara para com os destituídos de bens e de poder, rompendo com o modelo social, econômico e político de seu tempo, tem como razão fundamental o mistério da encarnação do Filho de Deus, sintetizado no presépio. Ela fez primeiro o que depois recomendou à amiga: Veja como por você ele se fez desprezível e o siga, sendo desprezível por ele neste mundo (2In 19).
2. Considerar a humildade
Para seguir Jesus é necessário compreender o mistério que o envolve e a proposta que ele faz. Os discípulos são questionados várias vezes porque são tardos para entender as palavras do Mestre ou não percebem o significado dos sinais que realiza.
Segundo Clara, a consideração leva a perceber a humildade, o contraste que escandaliza e fascina: o Rei dos anjos está envolto em panos numa manjedoura (4In 19-21); aquele que rege o céu e a terra aparece no mundo desprezado, indigente e pobre (1In 19s); o Filho do Altíssimo é acolhido no pequeno claustro do seio de Maria (3In 17-19).
Nos escritos de Francisco, pobreza e humildade aparecem associadas várias vezes, em relação a Jesus Cristo e à forma de vida evangélica assumida pelos frades. Francisco se propõe viver todo o evangelho e coloca diante de si o inteiro evento histórico e mistério Jesus de Nazaré, mas o faz na perspectiva da pobreza e da humildade. A concepção franciscana de seguimento passa a ter esta marca específica.
Pobreza e humildade formam uma dupla inseparável também em Clara e constituem quase uma constante nos textos que falam sobre o seguimento. Esta preferência mostra que o enfoque particular sob o qual ela entende o mistério da encarnação e a sequela Christi é o mesmo de Francisco. A pobreza põe em destaque a vida na condição dos pobres e a humildade expressa o mais profundo da pobreza, o rebaixamento, a humilhação, o desprezo. Na prática, para Clara, significou assumir uma vida pobre, sem a garantia dos bens de propriedade, ou seja, assumir a condição dos excluídos, daqueles cuja história não era recolhida nos registros oficiais da época. Se a pobreza é a negação das riquezas, a humildade é a negação do poder. O seguimento de Jesus Cristo exige as duas dimensões.
Considerar a humildade, portanto, significa ir ao mais profundo do mistério da encarnação e entender a proposta que Deus nos faz em Jesus, as razões dessa proposta e os caminhos para concretizá-la. Os estudos bíblicos e teológicos devem nos ajudar neste sentido. Em seus escritos, Clara revela uma formação teológica bastante sólida, adquirida especialmente através da escuta atenta da Palavra de Deus, na pregação e na liturgia. No Processo de Canonização, uma das irmãs diz: dona Clara gostava muito de ouvir a Palavra de Deus. E, embora não tivesse estudado letras, ouvia de boa vontade as pregações literatas (PC 10,8).
O “considere” clariano inclui também o conhecimento da realidade, pois é nela que se realiza o seguimento de Jesus. Ao longo de sua vida, nas decisões que assumiu e nas lutas que sustentou, Clara mostrou-se profunda conhecedora da realidade onde estava inserida. Quando decidiu não ter propriedades e pediu o Privilégio da Pobreza; quando renunciou à condição de nobre e estabeleceu em São Damião um estilo de vida onde não se fazia distinção de classes; quando renunciou ao uso do título de abadessa e organizou democraticamente sua comunidade; ou ainda quando resistiu às pressões do papa Gregório IX, não estava agindo por simples intuição, mas sabia exatamente o que desejava e em que terreno estava pisando.
3. Contemplar a caridade
O seguimento contemplativo de Jesus Cristo envolve o coração. Na terceira Carta, Clara convida Inês a colocar no Espelho a mente, a alma e o coração (3In 12s).
Ao falar do coração nas relações com Deus e com Jesus Cristo, Clara se inspira na Escritura. A Bíblia dá grande importância ao coração. É o lugar das opções decisivas do ser humano e da ação misteriosa e misericordiosa de Deus. A Aliança que Deus faz com seu povo passa pelo coração e exige abertura, acolhida, compromisso. Israel é convidado a buscar a Iahweh com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças, para amá-lo da mesma forma. O próprio Deus se encarrega de conceder a Israel um coração novo, totalmente purificado, para garantir a fidelidade à Aliança. A Nova Aliança, firmada em Jesus Cristo, também exige o envolvimento do coração.
Para Clara, o coração é o lugar da experiência dialogal com Deus, como dom gratuito. Falando da própria vocação, ela diz: o Altíssimo Pai celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar meu coração para fazer penitência, segundo o exemplo e ensino de nosso bem-aventurado pai Francisco... (TestC 24; RSC 6,1). O coração expressa também a radicalidade da resposta. Inês podia ter gozado das pompas e honras deste mundo desposando o imperador, mas preferiu a pobreza com toda a alma e com todo o afeto do coração (1In 6).
A contemplação exige um “coração puro” (RSC 10,10), ou seja, um coração não contaminado pelos ídolos da ganância, da sede de poder, do egoísmo descompromissado. Um coração capaz de ver e considerar a partir do “coração de Deus”. De fato, Deus também tem coração e falar do coração de Deus é falar de sua misericórdia, de suas entranhas maternas. Neste sentido, o texto de Oséias 11 é muito significativo. Iahweh amou Israel desde menino, cuidou dele no deserto, envolveu-o em laços maternos. Quando pensa em castigá-lo por suas infidelidades, seu coração se contorce, suas entranhas se comovem. Afinal, ele é Deus e não ser humano! A perfeição de Deus é expressa por Lucas em termos de misericórdia e o mesmo se exige dos discípulos e discípulas (Lc 6,36; Mt 5,48). A primeira carta joanina é clara: o amor de Deus só permanece em quem não fecha seu coração aos necessitados (1Jo 3,17).
Este amor misericordioso de Deus se manifesta, sobretudo, na cruz de Cristo. Ali se percebe de maneira inequívoca que Deus colocou seu coração na miséria humana, levando ao extremo o seu amor. O escândalo da cruz é o escândalo do amor, o escândalo de um coração apaixonado.
O Jesus de Clara é o pobre, humilde e crucificado. Essas três dimensões correspondem ao ver, considerar e contemplar. A contemplação sintetiza todo o processo, reassume e redimensiona o ver e o considerar. Contemplar é ver com outros olhos, é sentir de outro jeito, é perceber o que as análises sozinhas não dizem. Contemplar é ver com os olhos do coração, mas do coração de Deus, que é compassivo e misericordioso.
É muito comum, quando se fala em contemplação, pensar em quietude para observar as maravilhas da criação de Deus: uma bela paisagem, o céu estrelado, as lindas flores, o encanto da vida em suas múltiplas formas. Isso é legítimo. Mas o nosso desafio é sermos contemplativos/as diante da miséria humana em suas muitas expressões ou diante de realidades desumanas e violentas; em meio ao cimento armado, ao barulho e à poluição de nossas cidades; nos ônibus lotados e nas intermináveis filas para atendimento público... Ou ainda, como sermos contemplativos/as no cotidiano de nossas vidas agitadas e cheias de solicitações. A proposta de Clara é simples: olhe, chegue bem perto, sinta a realidade por dentro; considere, procure entender, estude o quanto se fizer necessário; mas olhe tudo de maneira compassiva e misericordiosa, e busque entender não só com a mente, mas também com o coração.
Olhar e considerar podem ser atitudes simplesmente humanas: estudamos o Evangelho em seus mínimos detalhes; olhamos a realidade e analisamos as causas da pobreza, da violência, da exclusão das pessoas, da destruição da natureza... Tudo muito “científico”. A contemplação vai fazer a diferença. Não dispensa o ver e o considerar, mas lhes confere um toque especial. É a diferença do Espírito. Contemplar é abrir-se ao Espírito que renova, transforma e impulsiona ao testemunho!
O seguimento contemplativo de Jesus Cristo envolve o coração. Na terceira Carta, Clara convida Inês a colocar no Espelho a mente, a alma e o coração (3In 12s).
Ao falar do coração nas relações com Deus e com Jesus Cristo, Clara se inspira na Escritura. A Bíblia dá grande importância ao coração. É o lugar das opções decisivas do ser humano e da ação misteriosa e misericordiosa de Deus. A Aliança que Deus faz com seu povo passa pelo coração e exige abertura, acolhida, compromisso. Israel é convidado a buscar a Iahweh com todo o coração, com toda a alma e com todas as forças, para amá-lo da mesma forma. O próprio Deus se encarrega de conceder a Israel um coração novo, totalmente purificado, para garantir a fidelidade à Aliança. A Nova Aliança, firmada em Jesus Cristo, também exige o envolvimento do coração.
Para Clara, o coração é o lugar da experiência dialogal com Deus, como dom gratuito. Falando da própria vocação, ela diz: o Altíssimo Pai celestial, por sua misericórdia e graça, se dignou iluminar meu coração para fazer penitência, segundo o exemplo e ensino de nosso bem-aventurado pai Francisco... (TestC 24; RSC 6,1). O coração expressa também a radicalidade da resposta. Inês podia ter gozado das pompas e honras deste mundo desposando o imperador, mas preferiu a pobreza com toda a alma e com todo o afeto do coração (1In 6).
A contemplação exige um “coração puro” (RSC 10,10), ou seja, um coração não contaminado pelos ídolos da ganância, da sede de poder, do egoísmo descompromissado. Um coração capaz de ver e considerar a partir do “coração de Deus”. De fato, Deus também tem coração e falar do coração de Deus é falar de sua misericórdia, de suas entranhas maternas. Neste sentido, o texto de Oséias 11 é muito significativo. Iahweh amou Israel desde menino, cuidou dele no deserto, envolveu-o em laços maternos. Quando pensa em castigá-lo por suas infidelidades, seu coração se contorce, suas entranhas se comovem. Afinal, ele é Deus e não ser humano! A perfeição de Deus é expressa por Lucas em termos de misericórdia e o mesmo se exige dos discípulos e discípulas (Lc 6,36; Mt 5,48). A primeira carta joanina é clara: o amor de Deus só permanece em quem não fecha seu coração aos necessitados (1Jo 3,17).
Este amor misericordioso de Deus se manifesta, sobretudo, na cruz de Cristo. Ali se percebe de maneira inequívoca que Deus colocou seu coração na miséria humana, levando ao extremo o seu amor. O escândalo da cruz é o escândalo do amor, o escândalo de um coração apaixonado.
O Jesus de Clara é o pobre, humilde e crucificado. Essas três dimensões correspondem ao ver, considerar e contemplar. A contemplação sintetiza todo o processo, reassume e redimensiona o ver e o considerar. Contemplar é ver com outros olhos, é sentir de outro jeito, é perceber o que as análises sozinhas não dizem. Contemplar é ver com os olhos do coração, mas do coração de Deus, que é compassivo e misericordioso.
É muito comum, quando se fala em contemplação, pensar em quietude para observar as maravilhas da criação de Deus: uma bela paisagem, o céu estrelado, as lindas flores, o encanto da vida em suas múltiplas formas. Isso é legítimo. Mas o nosso desafio é sermos contemplativos/as diante da miséria humana em suas muitas expressões ou diante de realidades desumanas e violentas; em meio ao cimento armado, ao barulho e à poluição de nossas cidades; nos ônibus lotados e nas intermináveis filas para atendimento público... Ou ainda, como sermos contemplativos/as no cotidiano de nossas vidas agitadas e cheias de solicitações. A proposta de Clara é simples: olhe, chegue bem perto, sinta a realidade por dentro; considere, procure entender, estude o quanto se fizer necessário; mas olhe tudo de maneira compassiva e misericordiosa, e busque entender não só com a mente, mas também com o coração.
Olhar e considerar podem ser atitudes simplesmente humanas: estudamos o Evangelho em seus mínimos detalhes; olhamos a realidade e analisamos as causas da pobreza, da violência, da exclusão das pessoas, da destruição da natureza... Tudo muito “científico”. A contemplação vai fazer a diferença. Não dispensa o ver e o considerar, mas lhes confere um toque especial. É a diferença do Espírito. Contemplar é abrir-se ao Espírito que renova, transforma e impulsiona ao testemunho!
- Texto completo em: Delir BRUNELLI. Ele se fez Caminho e Espelho: O seguimento de Jesus Cristo em Clara de Assis. Petrópolis: Vozes, 1998, pp. 192-200.
- (1) Irmã Delir Brunelli é religiosa da Congregação das Irmãs Catequistas Franciscanas. Atualmente está à serviço do ITF, onde atua na coordenação do Curso Master em Evangelização e Missão.
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