"O teísmo é visto sempre mais como um modelo, um, não o único e não necessário", escreve José Maria Vigil, teólogo, em artigo publicado pela Agência Adista, 18-10-2010. A tradução é de Benno Dischinger.
Segundo Vigil, "o teísmo é um instrumento cultural que se mostrou sumamente útil e até genial; mas, não é uma “descrição fiel” da Realidade última, a qual não podemos “imaginar”. Ou seja, para o teólogo, "ao teísmo não se opõe mais o a-teísmo, mas o pós-teísmo: a conduta profunda de quem crê na Divindade de sempre, mas sem considerá-la theós".
Vigil é licenciado em Teologia pela Universidad Pontificia de Salamanca. Na Universidade de Santo Tomás de Roma, obteve a licenciatura em Teologia Sistemática. Foi ordenado sacerdote em 1971. Durante treze anos, trabalhou na Nicarágua e, atualmente, mora e trabalha no Panamá. É autor do livro Teologia do Pluralismo Religioso. Para uma releitura pluralista do cristianismo (São Paulo: Paulus, 2006).
Eis o artigo.
VER
Uma longa, mas não eterna história da idéia “Deus”
Os antropólogos insistem no fato que o homo sapiens foi homo religiosus desde o princípio. Este primata começou a ser “humano” quando chegou a ter necessidade de um sentido para viver, chegando com isso a perceber uma dimensão espiritual, sagrada, misteriosa... Pensávamos que aquela dimensão religiosa indicasse uma relação necessária e indiscutível com “Deus”. Mas, hoje sabemos que nem sempre foi assim. Agora temos dados que indicam que durante todo o Paleolítico (70.000-10.000 a.C.) os nossos ancestrais adoravam a Grande Deusa Mãe, que não era um “Deus” feminino, mas a “Divindade”, confusa e profusamente identificada com a Natureza. A idéia concreta de “deus”, tal como depois chegou a nós, é de uma época muito posterior, ou seja, somente da época da revolução agrícola (há 10.000 anos). O deus pessoal, masculino, guerreiro, que habita no céu e se alia com a tribo para defendê-la e lutar contra os seus inimigos.. é uma idéia relativamente recente, que se generalizou e se impôs prevalentemente nas religiões “agrárias”.
A ciência e a modernidade se desencontram com Deus
No entanto, a partir do século XVII, a evolução da ciência faz retroceder “Deus” em relação a tudo o que lhe tinha sido atribuído até então. Grotius formulou-o de maneira emblemática: tudo funciona autonomamente, etsi Deus non daretur, como se Deus não existisse. A ciência descobre as “leis da natureza”, os duendes e os espíritos já não são mais necessários, os milagres desaparecem e se tornam até mesmo inacreditáveis. Bultman dirá: “É impossível fazer uso da luz elétrica e do rádio, tirar proveito das modernas descobertas médicas e cirúrgicas e ao mesmo tempo crer no mundo testamentário dos espíritos e dos milagres”.
Não só a ciência, mas também a psicologia social nos transforma: o ser humano moderno adulto não se sente à vontade ante um Deus paternalista e tapa-buracos (Pere Torras). Bonhoeffer dirá: “Deus se retira, chama-nos a viver sem ele como adultos, num cristianismo sem religião, numa santidade laica”.
Se no século dezoito iniciou o ateísmo, no século vinte o mesmo se multiplicou exponencialmente: foi a escolha “religiosa” que teve maior desenvolvimento. Aumentam os a-theós, os “sem Deus”, que não são pessoas de má vontade que querem combater Deus, mas pessoas a quem esta imagem, este conceito de Deus com freqüência já não resulta crível, e muito menos inteligível. A idéia de um ”deus” é sempre mais profundamente colocada em questão.
Novos modos de impostar a questão
O cristianismo ocidental dos séculos dezoito-dezenove interpretou o ateísmo como anticlericalismo e em parte tinha razão. Porém mais tarde reconheceria que os críticos ateus tinham outra grande parte de razão: “nós cristãos velamos mais do que revelamos a face de Deus” (Vaticano II, Gaudium et Spes 19). A partir do Vaticano II, reconhecemos que com bastante freqüência defendemos, pregamos e sustentamos imagens inadequadas de Deus, e agora são muitos os cristãos que reconhecem que “nem mesmo eu creio naquele Deus no qual não crêem os ateus” (Juan Arias, e o patriarca Atenágoras IV).
Porém hoje estamos dando um passo ulterior. Agora chegamos a pensar que o próprio conceito de “Deus” não é uma obviedade universal e indiscutível. Hoje vemos claramente que este conceito é uma construção humana. Como qualquer outro conceito. É um “modelo” que utilizamos para dar uma forma acessível a um mistério percebido com muita dificuldade. Um modelo, um instrumento cognitivo, não uma descrição daquela realidade que pretende evocar e que está sempre além do instrumento criado pelo ser humano para dar-lhe uma forma cognitiva. A esta altura estamos em condições de descobrir suas limitações e não permanecer ligados à sua mediação obrigatória. Há mais: há quem crê que certos conceitos de deus – seguramente muito difundidos – sejam até prejudiciais por transmitirem idéias profundamente errôneas à Humanidade. Andrés Pérez Baltodano considera urgente modificar a imagem de Deus no seu país, porque a imagem comum que ali é difundida resulta nociva para um desenvolvimento social sadio. A questão é nova e muito séria: que estatuto damos ao conceito “deus”?
JULGAR
A idéia de “theós” tem os seus problemas
Comecemos reconhecendo alguns deles:
- a “objetivação” de deus: Deus torna-se “um ser”, muito especial, porém um ser concreto, um “indivíduo”... que vive no céu, “lá em cima, lá fora”... Ainda hoje a imensa maioria dos crentes deste planeta crê que seja literalmente assim;
- é uma “pessoa”: ama, perdoa, ordena, tem um projeto... como nós... Isso não é antropomorfismo?
- é onipotente, Senhor, dono absoluto de tudo, alguém de quem depende inteiramente o ser humano, um Juiz universal que recompensa e castiga... Uma projeção do sistema agrário?
- toma cuidado, com sua “providência”, da história humana e exerce e detém a responsabilidade última sobre seu curso e sobre seu fim. Não nos desresponsabiliza?
- é o Criador que um dia decidiu criar, ao invés de continuar a deixar existir o nada. Sendo criador, é absolutamente “transcendente”, totalmente diverso do cosmo que teria podido jamais existir, se o Criador não tivesse decidido fazê-lo surgir e mantê-lo continuamente no ser... Estaríamos ante um dualismo radical que põe o Absoluto de um lado e a realidade cósmica, despojada de todo valor, do outro?
- tradicionalmente, tem sido um deus do meu país e da minha religião, que “nos escolheu” e nos protege ante os outros, revelou-nos a verdade e nos dá uma missão universal para salvar os outros... Um deus tribal, particularista, provincial?
Vendo bem, o conceito “Deus” é um modelo que tem sido útil, um modelo genial que conquistou por milênios a humanidade, mas que, com o avançar da história, evidenciou os seus limites, as suas implicações inaceitáveis e também suas graves carências. Tem sido uma forma de modelar o Mistério que percebemos e queremos evocar, mas um modelo que há tempo resulta inaceitável para um número crescente de pessoas, as quais não refutam a sacralidade da vida e da realidade, sua Divindade, mas não conseguem “modelá-la” como um theós, que outra coisa não é senão o modo agrário de imaginar-conceber a Divindade... Se existe o mistério da Divindade – e não são muitos que a negam – deve ser algo mais profundo do que aquilo que aquela fé tradicional tem imaginado como “Deus”.
Estabeleçamos uma distinção: uma coisa é instituir o Mistério, intuir com reverência o Sagrado da realidade, a Realidade última, inexprimível e indescritível, e acolhê-la num reverente e respeitoso silêncio sem formas, e outra coisa é crer que aquele Mistério adote concretamente o modelo “Deus” (theós, um ser onipotente que se encontra lá em cima...). Hoje esta distinção se acentua e salta mais claramente aos olhos. O teísmo é visto sempre mais como um modelo, um, não o único e não necessário.
Crer na realidade última, sem uma imagem de Deus
- Sempre mais seres humanos intuem e percebem que a Realidade última não pode ser tão simples como aquela imagem do deus-theós... Não podemos confundir o que é, em verdade, a realidade última com a nossa idéia “deus”. O teísmo é um “modelo”, um modo concreto de imaginar-conceber o divino, um instrumento conceitual ou cognitivo, uma ajuda, mas não é o único modelo, nem um modelo imprescindível.
- O teísmo é um instrumento cultural que se mostrou sumamente útil e até genial; mas, não é uma “descrição fiel” da Realidade última, a qual não podemos “imaginar”.
- É uma criação humana e por isso sujeita à mudança; pareceu-nos uma idéia evidente, mas a humanidade transcorreu muito tempo sem isso e chega o momento em que muitas pessoas não se sentem mais à vontade com este modelo: não conseguem aceitar aquele modo de imaginar a Realidade última. Sentem que o “teísmo”, o fato de imaginar a Realidade última como “deus”, não é a única maneira de relacionar-se com ela, nem a melhor e nem sempre positiva.
Mas, não há razão para desacreditar o “teísmo” que para muitas pessoas continua sendo útil e até imprescindível. O que importa é que todos, também aqueles para os quais não é um problema, deixem de considerá-lo imprescindível e descubram que é apenas um instrumento e que sempre mais pessoas começam a ter necessidade de outro modelo, não teísta. Ao teísmo não se opõe mais o a-teísmo, mas o pós-teísmo: a conduta profunda de quem crê na Divindade de sempre, mas sem considerá-la theós.
“Crer ou não crer em Deus” não é mais o centro da questão. Dizemos que se pode crer em Deus sem crer em theós; pode-se alimentar a mesma posição de fé de sempre sem sacralizar nem acolher um “modelo” que hoje pode parecer superado. O que agora é decisivo não é mais aceitar ou não um modelo, mas viver a mesma experiência espiritual dos nossos ancestrais com modelos que a nós podem já não servir mais.
AGIR:
O que fazer diante dessa descoberta da iminente superação do teísmo?
- Quem se sente bem na forma teísta tradicional pode continuar a segui-la; pode continuar a considerá-la útil. Ninguém pode ser criticado por sua fé teísta.
- Não obstante isso, muitas pessoas e comunidades tradicionais, às quais o teísmo resulta útil, farão bem em refletir sobre este tema; não é bom desconhecê-lo e não lhe colocar alternativas simplesmente por ignorância ou preguiça.
- Em geral faltam novas imagens, novas metáforas de Deus; muitas daquelas tradicionais estão desgastadas e a muitas agora já não servem mais.
- Devemos estar conscientes que um número crescente de pessoas descobre que o teísmo aparece agora como incompatível com a percepção atual do mundo, e que, paradoxalmente, fora do teísmo – no pós-teísmo – um novo nome se reconcilia com a dimensão divina da realidade, com a Realidade Divina – uma nova imagem, um novo conceito – mais respeitoso, dado àquilo que outros têm modelado como Deus.
- Os teólogos vêem a cada dia ser mais clara a possibilidade de um cristianismo pós-teísta, embora ainda falte muito para que esta intuição se deposite muito bem. Poder-se-ia ser cristãos e não ser teístas, não crer em “deus-theós”, mas na Realidade divina, na Divindade. Obviamente, isso sugere a necessidade de uma “releitura pós-teísta” das religiões atualmente teístas. Uma dificuldade especial – mas não insuperável – pode revestir o caso do cristianismo, tradicionalmente expresso em termos teístas. A humanidade passou de épocas pré-teístas a uma teísta, e talvez esteja se encaminhando para uma época pós-teísta. Se uma religião é chamada a continuar servindo a humanidade além de uma época teísta, é de se supor que contará com recursos internos suficientes para reconverter-se pós-teisticamente. Esta é uma das tarefas em suspenso na teologia atual.
- Pode-se e deve-se reler as religiões além do teísmo (algumas nem são teístas). Porque, assim como o modelo “deus” não é imprescindível, sequer o é a forma teísta das religiões. Podemos viver além do teísmo, embora não além da Realidade Última. Uma reinterpretação pós-teísta do cristianismo já foi levada adiante por muitos, em nível prático e teórico, e convém a todos conhecê-la e estudá-la (Spong).
- A experiência espiritual do ser humano é permanente e continua a aprofundar-se, mas as imagens e as explicações que temos dado a nós mesmos para compreendê-la e exprimi-la mudaram e mudarão com o crescer do nosso conhecimento. O teísmo é um modelo fortemente radicado, o qual tradicionalmente tem sido “transparente” e não perceptível, identificado por definição com a religião. Por isso, a muitos resulta difícil chegar a identificá-lo como um “modelo” separável no interior da própria religião. Mas, quando vemos que a experiência espiritual de muitas pessoas concretas é obstaculizada por tal modelo, nossa opção não pode não tender radicalmente a considerar acidentais os modelos e a dar o primado e o via livre à experiência espiritual, realizando-a com os modelos que cada um considere mais razoáveis e adequados.
- A polêmica tradicional sobre a existência de Deus (crer ou não crer em Deus...), que tão ásperas discussões tem produzido nos últimos séculos, vemo-la hoje como uma discussão sem sentido que muitas vezes permaneceu ligada a um simples “modelo cognitivo” do qual não eram conscientes as partes. De nominibus non est quaestio [não se discute nomes], nem é necessário discutir em torno de “modelos”, procurando discutir em torno da realidade à qual se supõe que correspondam literalmente. O modelo teísta não é absoluto; ele é tão tradicional que a muitos parece imprescindível, mas não o é. E sê-lo-á sempre menos. Mas, em todo caso, a alternativa ao teísmo não é o ateísmo, mas o “pós-teísmo”, ou simplesmente o não-teísmo. E ambas as formas são compatíveis com a experiência espiritual do ser humano.
Para ler mais:
Disponível em http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=37604 acesso em 24 out. 2010.
Ilustração: Gott Vater, Mosaik, Wiedner Hauptstraße 14, Wien-Wieden / foto de Buchhändler. 2009. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Wiedner_Hauptstra%C3%9Fe_12.JPG acesso em 24 out. 2010.
Nenhum comentário:
Postar um comentário