Entrevista com Moisés Sbardelotto
“Parece-me que a religião que brota no meio do debate político é apenas uma faceta, talvez a mais negativa, do âmbito religioso”, afirma o jornalista Moisés Sbardelotto em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line. “A discussão religiosa que se manifestou no debate político mostrou ser extremamente reacionária e conservadora, apelando para aspectos quase medievais de um debate que, de fundo, é do âmbito científico, bioético”, acrescenta. IHU On-Line - Como você vê a dimensão que a religião está tomando nesse debate para o segundo turno? Moisés Sbardelotto - Por um lado, considero importante que a religião tenha entrado mais fortemente no debate político. Em uma democracia, especialmente em um período de discussão nacional como o processo eleitoral, é relevante que os diversos setores e atores sociais tenham espaço para propor suas ideias e suas pautas próprias. Mas não acredito que essa tenha sido a "pauta definidora" do segundo turno. As últimas pesquisas revelam que os eleitores "religiosos" (cristãos evangélicos) votaram em Dilma Rousseff no primeiro turno, na grande maioria do país. Portanto, a religião é relevante, mas não definidora. Ao lado da religião, considero que a questão ambiental também foi um salto positivo e direcionador no debate de 2010. Porém, por outro lado, pode-se questionar: de que religião estamos falando ao discorrer sobre religião? Pelo que pude observar, estamos falando apenas de setores específicos das Igrejas cristãs, especialmente das evangélicas, neopentecostais e católica. A pauta das religiões de matriz africana, por exemplo, foi debatida ou ao menos ouvida? Por enquanto, não se tem notícia de quais sejam as suas reivindicações ou opiniões a respeito das propostas de governo – mas, obviamente, elas existem. Isso está ligado, além disso, a um processo comunicacional atual, que é o fenômeno da midiatização. O social passa a ser permeado por práticas comunicacionais. Prova disso é a construção e reconstrução das discussões políticas por meio de dispositivos comunicacionais, assim como a inserção de novos atores, como a religião, o que também ocorre via mídias. Cada vez mais, o que está menos evidente nesse processo midiatizado (como o exemplo citado das religiões de matriz africanas, dentre inúmeros outros) perde relevância e interesse. Assim, nas configurações da sociedade atual, não basta que os sujeitos e grupos conquistem seu reconhecimento político, transformando-se em atores sociais: é necessário que eles conquistem, em um processo complexo, o seu reconhecimento sócio-midiático, transformando-se, assim, também em atores públicos. A religião, no momento atual, parece ter conseguido ambas as coisas. Além disso, a religião entrou em pauta mais fortemente depois do supostamente inesperado segundo turno. Aí ficaram marcados dois projetos de governo também aparentemente opostos, que se colocam em confronto. Com uma crescente midiatização do sistema político, mas também religioso, colocou-se em cena, junto com a concorrência política, uma disputa mais de fundo, de mercado religioso. Assim, uma polarização que parecia ser apenas política transforma-se, também, em uma polarização no âmbito da religião, entre interesses religiosos – mas claramente mercadológicos – de Igrejas que tentam marcar essa diferença justamente apelando para pontos críticos, extremos. Mas cabe ainda retomar a pergunta inicial: de que religião estamos falando? Parece-me que a religião que brota no meio do debate político é apenas uma faceta – talvez a mais negativa – do âmbito religioso. A discussão religiosa que se manifestou no debate político mostrou ser extremamente reacionária e conservadora, apelando para aspectos quase medievais de um debate que, de fundo, é do âmbito científico, bioético. A religião acabou se destacando como a “porta dos desesperados” políticos, um último recurso – e totalmente desvirtuado – para a vitória política. As demais religiões que não a cristã, e os demais aspectos religiosos – e seriam inúmeros para serem citados – acabaram se perdendo no mar raso das expectativas mais imediatas de alguns setores político-religiosos. IHU On-Line - Como você descreve a relação entre as igrejas, a mídia e as eleições no atual cenário eleitoral? Moisés Sbardelotto - Parece-me que há uma confluência de fatores vários e complexos. Em primeiro lugar, chama a atenção, como dizíamos, essa conquista de um papel social e público por parte de algumas Igrejas. E isso se dá no âmbito religioso, político e também mercadológico. São Igrejas que possuem grande quantidade de fiéis, com uma considerável bancada política, eleita especialmente para o Congresso e o Senado, e que administram grandes complexos comunicacionais, que também adquiriram certa relevância na disputa de mercado midiático. Assim, as Igrejas conseguiram propor sua agenda como moeda de troca social. A Igreja Católica, por exemplo, apesar de internamente sair dividida do processo eleitoral, especialmente a partir de todo o debate envolvendo a questão do aborto e dos panfletos supostamente impressos pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) – o que foi oficialmente desmentido –, reconquista um papel central no debate político. Exemplo disso é o primeiro debate promovido em rede nacional pelas emissoras católicas, com a presença dos quatro candidatos principais do primeiro turno, e transmitido – mesmo que com relativo amadorismo – por grandes redes de comunicação, como a TV Canção Nova, a Rede Aparecida e a Rede Vida, envolvendo simultaneamente TV, rádio e Internet. Além disso, os grupos religiosos participantes no atual cenário eleitoral têm uma relação estreita com as mídias – o que reforça a tese de um processo de midiatização do social. São cristãos evangélicos e neopentecostais, e católicos de uma ala mais conservadora e "papista" da Igreja (como o padre da Canção Nova que afirmou que não votaria no PT porque o partido seria favorável ao aborto e ao casamento homossexual. Ele disse ainda, por exemplo, que nunca iria celebrar casamento de homossexual "porque a Igreja não quer, e Bento XVI também não quer, e eu estou com Bento XVI, estou com a Igreja"). Ao mesmo tempo, midiaticamente, são grupos relativamente avançados, pois captaram os ritmos, os processos e as linguagens das mídias, convergindo-os para o âmbito religioso. A diferença entre evangélicos e católicos – como se vê no exemplo citado – é que os primeiros também aceitaram se adaptar a esses ritmos, processos e linguagens das mídias, o que os segundos consideram como uma deturpação de sua missão. Porém, o que estes não percebem é que, conforme McLuhan, o que está em jogo não é tanto o conteúdo, mas sim a matriz por meio da qual se dá a produção simbólica, as relações, interações e inter-relações entre os diversos atores que participam dessa cultura e dessa ambiência midiatizada. E, por estarem nas mídias, acabam assumindo essa cultura, mesmo que irrefletidamente. Como pano de fundo, temos ainda uma questão relacionada ao padrão jornalístico brasileiro, fundamentalmente importado dos Estados Unidos. Diferentemente de outros modelos, como o europeu ou o asiático, o jornalismo norte-americano é moldado por polarizações entre democratas e republicanos, brancos e negros, Sul e Norte, Leste e Oeste, nativos e imigrantes. Então, se o que está em jogo é a matriz da produção simbólica, seria revelador analisar esse aspecto do religioso a partir dos protocolos do padrão jornalístico brasileiro (especialmente da Rede Globo de Televisão, famoso por ter sido implantado em conjunto com a Time-Life norte-americana no período da ditadura). A título de hipótese, se poderia dizer que esse padrão de jornalismo, portanto, lida muito melhor com opostos, resumindo a complexidade social em A e B. Mas, em nível de Brasil, com uma estrutura social muito mais ampla, complexa e fluida, o social transborda e escapa às mídias. Isso, sem dúvida, restringe muito o debate político mais amplo, focando-se em questões limitadas, passíveis de polarização e polêmica. IHU On-Line - A mídia, tanto tradicional quanto alternativa, tem poder sobre a formação de opinião ou decisão de voto? Moisés Sbardelotto - Ao longo das últimas décadas, a teoria comunicacional já superou em vários pontos uma perspectiva que ficou conhecida como a teoria da "agulha hipodérmica", ou seja, aquela ação eficaz e efetiva da mídia – como uma agulha, justamente – sobre alguma população dada. Se isso fazia algum sentido no início do século XX, hoje está bastante longe do que acontece na vida social. As mídias atuais são de outra ordem, especialmente porque "convergem" e se constroem conjuntamente, configurando-se como interfaces ou superfícies multimidiáticas, nas palavras de Antonio Fausto Neto. Por outro lado, o indivíduo não se informa hoje apenas pelo rádio, como na década de 1930, mas sim por um somatório de dispositivos, envolvendo rádio, TV, Internet (e seus vários ambientes), mídias impressas, móveis etc. E, ainda e principalmente, por meio de suas relações interpessoais – midiatizadas ou não. Nesse sentido, hoje, a reconstrução por parte da sociedade daquilo que é ofertado pelas mídias é um processo complexo. Além da produção (por parte das mídias) e da recepção (por parte da sociedade), há ainda um sistema de resposta social, segundo José Luiz Braga, ou seja, aquilo que a sociedade faz com o que é ofertado pelas mídias, a crítica social que, por diversas formas, é devolvida às mídias, dando continuidade a um processo circulatório da comunicação. Assim, especialmente por dispositivos como as redes sociais como o Twitter, a oferta midiática – por exemplo, em temas eleitorais – dificilmente irá alcançar um suposto "efeito desejado". A ressignificação feita pela sociedade escapa aos interesses e às esperanças midiáticas e eleitoreiras. Como aponta Manovich, todas as experiências culturais, no fundo, podem ser definidas como uma forma de interação. No caso midiático, essa interação se dá em uma infinidade de possibilidades, especialmente com uma configuração midiática de redes de redes interconectadas. A produção simbólica ocorre por meio de uma hipernarrativa, ainda segundo Manovich, pois o sujeito, especialmente na Internet, constrói sentido a partir de uma oferta da produção, mas as trajetórias possíveis de leitura são múltiplas. A complexidade comunicacional é justamente o "caos" de escolhas particulares feitas dentro de hipernarrativas, que, em nível macro, dão origem à "pauta do dia". Por isso, parece-me que o fator-surpresa é um elemento que deveria estar sempre presente em uma análise midiática de qualquer fenômeno, especialmente hoje, em ambientes digitais fluidos e autopoiéticos dos mais variados. Poderíamos dizer que existem, em suma, dois fenômenos midiáticos claros hoje (sem dúvida, entre eles, haveria um espectro imenso de nuances, já que estamos falando de um processo fluido – rizomático – como a comunicação midiática): 1) a produção de um acontecimento midiático, em que um elemento do social, algo que nasce na e da sociedade, é apropriado pelas mídias, que o ressignificam e o redimensionam, ofertando-o à sociedade; esta, por sua vez, reconstrói esse acontecimento e realimenta o processo circulatório (como, por exemplo, o caso Isabella, o caso Erenice, etc.). E, por outro lado, 2) a midiatização do social, em que um fenômeno já nasce por causa e por meio das mídias e assim circula pela sociedade. Ou seja, algo que, sem a existência das mídias, não existiria. Talvez o debate em torno do aborto e da religião tenha nascido assim, sem uma origem única e definida em um fato concreto, mas sim por meio das interações em redes sociais, correntes de e-mail, da circulação comunicacional. Por isso, por parte dos envolvidos, é necessária uma atenção constante e respostas rápidas. Justamente nesse sentido talvez se poderia fazer uma analogia da comunicação hoje – e também do processo político-midiático – com um incêndio florestal, apesar ou não do caráter de desastre da comparação. Algo dá origem a ele, alguma faísca dá início ao fogo, mas é quase impossível prever que rumo ou que consequências terá o desastre – a não ser que se aja rápida e eficazmente. A comunicação atual, marcada por mídias de grande participação social, sincronizada e ubíqua, é um fluxo sem barreiras, que poderá se dispersar e se configurar em um infinito de possibilidades, em que a construção simbólica ocorrerá ao sabor das interações que se dão nesse processo. Além disso, as relações entre o midiático e o político, embora cada vez mais intensas, não são de total completude e acoplamento. Há elementos do midiático que escapam ao político, e há elementos do político que escapam ao midiático. Por exemplo, o Twitter é um ambiente que reconstrói constantemente o político (dentre outros), e este, por sua vez, não tem qualquer possibilidade de "controle", nem mesmo de "influência" ou de redirecionamento das ideias ali defendidas ou criticadas. Pelo contrário, todas as tentativas nesse sentido geralmente produzem efeitos contrários e bastante inesperados (basta lembrar certas campanhas publicitárias via Twitter, em que a marca sai com uma imagem muito mais negativa do que entrou). E, por outro lado, há instâncias da vida política – como o planejamento e as negociações intrapartidárias, os anseios mais imediatos da população e suas reivindicações, os jogos de poder internos ao sistema político etc. – em que as mídias não exercem nenhum tipo considerável de "influência". É nessas zonas escuras e insondáveis que – para o desespero de marqueteiros e assessores – grande parte do jogo político-midiático se define. Para ler mais:
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Foto: Diferentes clases de alabardas y armas similares en Suiza / Rama. 2005. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Hallebardes-p1000544.jpg acesso em 22 out. 2010.
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