Perguntaram-me os noviços, dias atrás, acerca do sentido da Bula “Quo elongati” (1230), do Papa Gregório IX, tanto no que diz respeito ao título quanto ao seu conteúdo. As considerações aqui expostas, talvez, sejam de interesse, também para outros franciscanos.
Como sói acontecer com textos emanados do Papa, o título é tirado de seu início (as duas primeiras palavras) que, em nosso caso, soam assim “Quo elongati” isto é, “Quanto mais afastados do mundo, alçar-vos-eis sobre vós mesmos e, quase, revestir-vos-eis com as asas da pomba no recolhimento (eremitério) da contemplação... ”
Quanto ao conteúdo, essa bula, famosa para alguns; famigerada, para outros, queremos ater-nos apenas, e de modo geral, ao seu significado no que diz respeito à busca de nossa espiritualidade e de suas repercussões [1]. A bula nasceu de um pedido da Ordem, mais precisamente dos Provinciais. Queriam que o Papa, como autoridade máxima da Igreja, interviesse acerca desta questão: “Como entender a fidelidade à Regra? O que significa, ou como interpretar, a promessa de ‘observar o santo Evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo?”
O Papa, mui estranhamente, ou até contraditoramente, e sem nenhum constrangimento, até pelo contrário, com muita boa vontade, aceitou e assumiu imediatamente o pedido. Por que dizemos “estranha e contraditoriamente?” Porque, como ele mesmo afirma, tendo sido amigo próximo do santo e tendo-o ajudado na elaboração da Regra, devia saber, muito bem, o que Francisco pensava a respeito desse assunto: que, em vez de interpretações, deve-se ler, estudar e entender nossa vida e nossa regra de modo direto, imediato, corpo a corpo, sine glosas, sine glosas, como ele, Francisco e toda aquela primeira geração de Frades haviam procedido. Assim, em vez de uma interpretação devia ter-lhes devolvido a questão: que buscassem eles mesmos, na Regra, nos Escritos do santo, na memória dos primeiros Frades e das primeiras Clarissas, que ainda estavam viços, etc., a luz que precisavam. Não era ele, Francisco, a “Forma minorum”, o “Espelho da Perfeição”? E não estavam eles, Ministros provinciais, envoltos e movidos pelo vigor e pelo espírito do mesmo toque, do mesmo chamado?
Assim, pode-se e deve-se considerar essa Bula como o divisor de águas na história e na busca de nossa identidade. Falando um tanto simploriamente e para usar uma expressão vulgar, a Ordem acabava de “vender sua alma” ao Papa e à Cúria romana. Se, antes, eram os Papas que iam a Francisco a fim de buscar iluminação para sua missão de pastores e pontífices, agora inverte-se a situação: os Frades é que começam a recorrer aos Papas para que esses se tornem os orientadores, conselheiros e intérpretes da Vida e da Regra deles.
A chave de toda essa mudança passa a ser a “interpretação”, palavra profundamente detestada por Francisco, como se pode ver nessa passagem do seu Testamento: E ordeno firmemente, por obediência, a todos os meus irmãos, clérigos e leigos, que não façam glosas na regra nem nestas palavras, dizendo: Assim devem ser entendidas. (T 38).
Onde está o “X” da questão? Ou, então, por que Francisco tem medo das interpretações? A resposta é muito simples, tão simples que parece não atingir a questão da busca da compreensão do sentido da Vida e da Regra franciscana. Em outras palavras não vê que a interpretação procura entender a Regra e a vida franciscana a partir de fora, isto é, com outras luzes, alheias à inspiração originária.
Assim, com essa Bula começava a introduzir-se na Ordem a renúncia pelo entusiasmo originário, que outrora levara Francisco, Clara e toda aquela plêiade de seguidores do Evangelho a percorrer o duro e exigente caminho da experiência evangélica, recheada de leitura, estudo, reflexão, meditação e contemplação da inspiração originária que envolvia a todos. Começava a morrer, portanto, o espírito da liberdade evangélica, a sede pela busca livre do significado de nossa vocação a partir de dentro, da raiz, da origem, e começava a nascer uma avidez que enquadra, julga, canoniza, define. Começava a nascer o “franciscano”, o “Franciscanismo”.
O grave desse pecado é que se começou a tirar, indevidamente, do Frade o dever, a responsabilidade, a alegria, a glória e a honra de entrar em comunhão direta, imediata, corpo a corpo com a coisa, ela mesma, a inspiração originária, impedindo que bebesse, soubesse, aprendesse e experimentasse, ele mesmo, pessoalmente, da fonte dessa água viva. Seria o mesmo que o jovem namorado viesse a pedir ao amigo que fosse, namorar a namorada dele porque ele não tem tempo ou não saberia fazê-lo.
Nesse caso, isto é, na leitura interpretativa (ler fazendo glosas), esquece-se que a inspiração originária é fenômeno de encontro. No encontro é ofensa grave querer entender o outro, o amigo fora dele mesmo, procurando enquadrá-lo, fixá-lo, imobilizá-lo dentro de uma definição, de um conceito, conhecimento ou doutrina (Franciscanismo). Não diz o Evangelho que o Espírito não pode jamais ser aprisionado, pois não se sabe de onde vem e nem para onde vai?
Por isso, Francisco, em vez de interpretações, procura pôr os Frades na ordem da natureza da própria inspiração originária, assim como ela nasce e se tece: “simpliciter et pure”, isto é, “de modo simples e puro”. Em outras palavras, Francisco está pondo os Frades na ordem precisa, justa, adequada, necessária e correta na busca do sentido de nossa Vida e de nossa Regra. Está como que nos dizendo: “Por favor, não comecem a ´interpretar´, querendo entender nosso gênero de vida a partir de motivações alheias e estranhas à sagrada história de nossa vocação, nascida, pura e diretamente da dinâmica do encontro, da visita, da escolha de Jesus Cristo crucificado”.
É da natureza do encontro não admitir intermediários. Pois, toda a interpretação ou ponto de vista são meios, recursos, intermediações que, em vez de nos aproximar, nos afastam sempre mais Daquele que está vindo ao nosso encontro.
É dentro dessa mesma dinâmica ou razão que se deve entender a aversão de Francisco pelos estudos. Veja bem o leitor, o medo de Francisco é pelos “estudos”, jamais pelo estudo. Ou seja, Francisco receava que o Frade, indo atrás de estudos, se esquecesse de que seu único estudo, no latim “studium” (“empenho” na ou pela busca), era estudar o encontro com o Senhor, Jesus Crucificado, como sendo ou estando aí (o encontro com (do) JC crucificado), sua verdadeira e única identidade, a única “coisa” real e verdadeira que devia estudar, conhecer e amar. Essa “coisa” não é coisa, mas a pessoa de Jesus Cristo crucificado, o novo homem, o novo ser do ser do homem, o novo Adão que deve ser buscado, estudado, pesquisado, meditado, contemplado e sumamente amado e jamais interpretado.
Consequentemente, se, por de trás ou na raiz de tudo o que estudo, busco e faço não está o empenho, o estudo, de melhor conhecer, amar e servir meu Senhor, diz Francisco, não apenas, tudo isso não tem sentido, mas torna-se ocasião para entumecimento do coração que, por sua vez, impede de estar atento ao Espírito do Senhor e seu santo modo de operar. Por isso, dizia, também, ao noviço doido para ter um saltério: “Cuidado! Pois, a ciência incha! Só a caridade edifica”. (CAs 103,26)
Encerramos essas breves e pobres reflexões com a seguinte citação: Tudo isso quer dizer, por sua vez, que todo o seguimento de Jesus Cristo crucificado, vivido corpo a corpo, em todas as dimensões do ser, até a consumação de total identificação com o Crucificado, ou, numa palavra, “a vida de pobreza”, foi para Francisco seu único e grande empenho, isto é, “studium” (De estudo, anotações obsoletas, Frei Hermógenes Harada, IFAN-Vozes, 2009, 191). Ou seja, seguir Jesus Cristo e seu Evangelho é imitá-Lo, “copiá-Lo”, sem mais e nem menos, assim como Ele vem ao meu ou nosso encontro. Essa era a única ciência, ou estudo, que levou Francisco a se tornar “outro Jesus Cristo” e o mais perfeito dos humanos, depois do Mestre e de sua Mãe e, por isso, estimado por todos os homens, eleito um dos 10 homens mais significativos do último milênio.
Fica, hoje e então, uma grande questão: Como retornar ao espírito da busca originária que moveu Francisco e toda aquela primeira geração de Frades, Irmãs e seculares, com o peso de quase oitocentos anos de caminhos alheios e indevidos, iniciados por aquela Bula de Gregório IX? Ou seja, como fazer o êxodo da escravidão das interpretações, das glosas, para uma busca, um “studium”, verdadeiramente livre, acerca do sentido de nossa vida de seguidores de Jesus Cristo pobre e crucificado? Como impor-nos, livremente, obrigações que não vêm de fora, mas de dentro, de nós mesmos, do núcleo mais nobre, mais caro e melhor de nós, da vontade boa, forte e clarividente e generosa de querer buscar e amar de modo absoluto e infinito, sem nenhum por quê, nem para quê, mas tão somente como ato feliz e alegre de pura doação Àquele que, vindo ao nosso encontro, constitui-se o significado único e verdadeiro de toda a nossa existência? Daquele que, como diz o Apóstolo, nos amou por primeiro?
Em louvor de Cristo. Amém!
[1] Lázaro Iriarte resume em quatro os pontos principais dessa Bula:
- O Testamento carece de força obrigatória...;
- Os frades menores só estão obrigados aos conselhos evangélicos...;
- Declara-se estar em conformidade com cm a regra a instituição dos “núncios” como representantes dos benfeitores, como, também, depositar nas mãos dos “amigos espirituais” as esmolas em dinheiro para as necessidades imediatas;
- Os frades menores não possuem nada em particular, nem em comum;não tem nenhum direito sobre os imóveis, e apenas o “simples direito de uso sobre livros e utensílios; não podem dispor deles sem o consentimento do cardeal protetor.
(História Franciscana, Lázaro Iriarte, Vozes 1985, p. 66)
- Ilustração: Pope Gregory IX. from medieval manuscript: Universitätsbibliothek Salzburg, M III 97, 122rb, ca. 1270. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Gregory_IX.jpg acesso em 23 abr. 2011.
- Disponível em http://ofsporciuncula.blogspot.com/2011/04/bula-quo-elongati-e-seu-significado.html acesso em 26 abr. 2011.
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