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domingo, 10 de abril de 2011

A visão ecológica de São Francisco de Assis - 1/2

O mundo contemporâneo se encontra em meio à crise ecológica. Entre os diversos fatores (causas) que contribuem para essa situação destacamos três: o antropocentrismo, a dominação da natureza pelo ser humano e a dessacralização do mundo, isto é, a banalização do mundo criado.

A primeira causa, o antropocentrismo, é algo muito presente no pensamento atual, pois o homem em tudo o que faz coloca-se no centro, como se tudo o que existe deve estar à disposição dele e só para ele, em outras palavras, a natureza deve estar a serviço do próprio homem. A segunda causa apresenta, de certa forma, uma consequência da primeira. Quando o homem coloca-se no centro de tudo aquilo que o circunda, ao estar frente à natureza, ele põe-se em espírito de dominação, ou seja, a natureza é submissa ao homem. Partindo destas duas causas é que se pode compreender que o homem perdeu toda e qualquer reverência para com a natureza, logo, entende-se o sentido da terceira causa geradora da crise ecológica, a dessacralização do mundo, uma banalização de tudo e de todas as coisas criadas, consequentemente, percebe-se que a natureza é despojada do seu caráter simbólico e sacramental.

São Francisco já em sua época (há 800 anos) inaugurava uma nova consciência e uma nova prática de relação com a natureza, uma vez que cada criatura recebe o seu ser de Deus que, movido unicamente por sua vontade, a cria e a mantém na existência pela íntima presença do seu sopro criativo. (cf. Sb 1,7; Is 34,16).

O pobre de Assis não contemplava cada criatura como sendo uma coisa ou um objeto de seu uso-fruto, mas percebia que cada criatura emergia milagrosamente do nada e das mãos do Criador.
Os medievais cristãos asseguravam que o mundo é uma produção voluntária e livre de Deus. Porque se Deus não tivesse o poder de criar, não poderia criar nada. Se tivesse o poder, mas não tivesse a sabedoria, não produziria de forma sábia. E se tivesse o poder e a sabedoria, mas não quisesse, também não teria produzido nada.

Santo Agostinho escreve em seu livro, Confissões, que todas as coisas proclamam que existem pela razão de terem sido criadas, sendo que nenhuma matéria pré-existe e nenhum princípio intermediário deve ser procurado entre Deus e a criatura.

“Existem, pois, o céu e a terra. Em alta voz dizemos que foram criados, porque estão sujeitos a mudanças e vicissitudes. [...] Proclamem todas estas coisas que não se fizeram a si próprias: existimos porque fomos criados. Portanto, não existíamos antes de existir, para que nos pudéssemos criar. [...] Como fizestes, meu Deus, o céu e a terra? Sem dúvida, não fizestes o céu e a terra, no céu e na terra, nem no ar ou nas águas porque também estes pertencem ao céu e a terra. Nem criastes o Universo no Universo, porque antes de o criardes não havia espaço onde pudesse existir. Nem tínheis à mão matéria alguma com que modelásseis o céu e a terra. Nesse caso, donde viria essa matéria que vós não criáreis e com a qual pudéssemos fabricar alguma coisa? Que criatura existe que não exija a Vossa existência?”.

Santo Agostinho assegura que a criação é um ato de amor de Deus e que só é um ato puro de amor, porque é realizado a partir do ato mais nobre da vontade livre. Portanto, a criação, em si, e por si mesma, nos conduz a compreender que é auto-comunicação gratuita de Deus.

Partindo desta concepção é que se pode compreender a visão de Francisco, o qual percebeu que Deus criou todas as coisas não como simples ‘coisas’, mas como símbolos que induzem o ser humano a amar e a louvar o Deus Criador. O pobrezinho de Assis ao intuir isso, entende que Deus está de modo inteiro, indiviso e integral em cada criatura, sem fragmentar-se. Ao que Mestre Eckhart afirma: “Deus está inteiramente em todos os lugares como a alma está inteira, indivisa e integralmente no pé, no olho e em cada membro do corpo”.

O Poverello contempla todo o universo, toda a criação. E, ao contemplar, Francisco resgata, também, a centralidade do sentimento da ternura nas relações humanas, em que todos vivem e pertencem a uma grande Fraternidade. Esta condescendência afável e terna para com toda a criatura é relatada em todas as biografias de São Francisco, entre elas a de Tomás de Celano.

“Enchia-se (Francisco) de inefável gozo todas as vezes que olhava o sol, contemplava a lua e dirigia seu olhar para as estrelas e o firmamento (…). Quem pode imaginar a alegria transbordante do seu espírito ao contemplar a beleza das flores e a variadíssima constituição de sua formosura bem como a percepção da fragrância de seus aromas (…). Quando encontrava flores, pregava-lhes como se fossem dotadas de inteligência e as convidava a louvar ao Senhor. Fazia-o com terníssima e comovedora candura; exortava à gratidão os trigos e os vinhedos, as pedras e as selvas, a planura dos campos e as correntes dos rios, a beleza das hortas, a terra, o fogo, o ar e o vento. Finalmente, dava o doce nome de irmãs e irmãos a todas as criaturas” (1Cel 81-82).

No livro Espelho da Perfeição o autor afirma: “sentia-se arrastado para as criaturas com um singular e entranhado amor” (n.113). “Francisco andava com reverência por sobre as pedras em atenção Àquele que a si mesmo se havia chamado de pedra: dava mel e vinho às abelhas no inverno para que não morressem de frio e de fome” (2Cel 165).

“A fraternidade não é só humana, é cósmica. Por isso amava os animais, os répteis, os pássaros e as outras criaturas sensíveis e insensíveis” (1Cel 77).
“Tinhas tão entranhado amor pelas criaturas que estas o compreendiam e estabeleciam com ele uma relação de simplicidade e fraternidade, uma vez que as criaturas irracionais eram capazes de reconhecer o seu carinho” (1Cel 59).

Numa visão franciscana, todas as coisas estão numa harmonia que compõem uma grandiosa sinfonia cujo maestro é próprio Deus. Francisco por intuição percebeu que todas as coisas criadas fazem parte de uma grande fraternidade, vivendo como irmãos e irmãs, gerados – criados pelo próprio Deus.

“Francisco proibia que os irmãos cortassem as árvores pela raiz na esperança de que elas brotassem de novo. Mandava aos jardineiros que deixassem um cantinho de terra, livre, sem cultivar, para que aí pudessem crescer as ervas todas, pois elas também anunciavam o fortíssimo pai de todos os seres” (2Cel 165).

…CONTINUA

Frei Osvaldo Maffei, OFM


* Este artigo foi escrito a partir das aulas e idéias do Professor Frei João Mannes, OFM, da disciplina História do Pensamento Franciscano, do curso de Filosofia do Instituto de Filosofia São Boaventura / UNIFAE.

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