Fr. Fabiano Aguilar Satler, ofm
Ao fim deste itinerário de visita e de presença nos lugares associados à
vida de Francisco na região da Umbria, do Lascio e da Toscana, uma
certeza resulta clara: Assis não é o meu lugar, a Porciúncula não é o
meu lugar, o Monte Alverne não é o meu lugar. Na verdade, nenhum dos
eremitérios ou igrejinhas visitadas é o meu lugar. Explico-me. Esses
lugares, principalmente os eremitérios no alto dos montes e no meio dos
bosques, gritam o nome de Francisco, de Clara e dos seus primeiros
companheiros. Nesses lugares, as pedras, das grutas ou das igrejinhas,
falam continuamente ao longo de oito séculos: Francisco, Clara, Leão,
Bernardo, Inês, Egídio, Rufino, Filipa, Masseo e tantos outros nomes da
primeira geração do franciscanismo. O silêncio no meio dos eremitérios
grita o nome de Deus. A natureza, no alto das montanhas ou na baixada
dos vales, proclama em alta voz a fonte e a origem de quem ela espelha
tamanha beleza. Diante de tudo isso, a tentação resulta clara: erguer
aqui a nossa palhota e estabelecer nesses santuários a nossa zona de
conforto. Ceder a essa tentação seria um grave erro por dois principais
motivos.
O primeiro deles é que o próprio Francisco não se estabeleceu nesses
lugares. Nesse sentido, ele nada mais fez do que seguir, mais uma vez,
os passos do Filho de Deus, que continuamente se afastava da multidão e
subia ao monte para rezar e para descansar no Pai. O Pai, entretanto,
nao deixava o seu Filho descansar e o impelia, novamente, para o meio da
multidão, para revelar a ela o rosto paterno-materno-compassivo de
Deus. Foi assim com Francisco, que, enquanto a saúde o permitiu,
alternava períodos passados nos eremitérios com períodos de itinerância e
de pregação nos povoados e cidades próximos. Estes espaços sagrados do
franciscanismo, portanto, ao mesmo tempo que são patrimônio espiritual,
teológico, arquitetônico e ecológico da humanidade inteira, não são,
paradoxalmente, o meu espaço.
O segundo motivo é que o tempo de Francisco e de Clara, ao qual todos
esses espaços nos remetem, não são, afinal, o nosso tempo. A essa
constatação óbvia parecemos não dar a importância devida. Profundas
mudanças marcam o nosso tempo em relação ao tempo de Francisco e de
Clara. Por exemplo, há diferenças marcantes entre o primitivo sistema
econômico da nascente burguesia do tempo de Francisco e o intrincado
sistema econômico atual, onde a má gestão pública e econômica de um país
pequeno qualquer repercute imediatamente na economia e na vida política
de grandes países em continentes diversos. Começamos a viver, no nosso
tempo - e estamos experienciando apenas o princípio das dores -, as
consequências de uma crise ecológica inexistente no tempo de Francisco. A
guerra, algo totalmente amador no tempo de Francisco (é quase cômico
notar que, como Francisco, para se tornar um soldado, bastava comprar a
armadura, a espada, o cavalo e, pronto, o hábito fazia o monge, nesse
caso, o guerreiro), tornou-se, hoje, uma indústria bélica com vida
própria e acima dos governos nacionais. E, para citar apenas uma última
diferença, talvez a mais significativa delas para nós, franciscanos e
franciscanas, Deus não ocupa mais, no nosso tempo, o horizonte que ele
ocupava na sociedade feudal do tempo de Francisco. A pós-modernidade é
uma realidade com a qual ainda não aprendemos a lidar ou apreender de
maneira satisfatória.
Diante dessa realidade, nós, franciscanos e franciscanas, temos a tarefa
irrenunciável de discernir os elementos fundamentais do franciscanismo
das origens e de traduzí-los para o nosso tempo e para o espaço social
onde nos inserimos. Renunciar ou executar mal essa tarefa significa
perder a nossa relevância carismática no meio da Igreja e do mundo. Se
isso vier a acontecer, vamos morrer lenta e inexoravelmente e nos
transformaremos em um capítulo, volumoso, certamente, nos anais da
história eclesiástica. Essa não é uma realidade totalmente implausível.
Como na teologia dos textos bíblicos, uma boa hermenêutica se fundamenta
em uma boa exegese. Para ensaiarmos uma tradução significativa para o
nosso tempo do franciscanismo das origens, é necessária uma compreensão
adequada dos elementos fundamentais do fenômeno que foi o movimento de
Francisco e de Clara. Se não fizermos isso, cairemos no erro de, a
exemplo de alguns grupos de cunho pentecostal, que se multiplicam na
Igreja do Brasil, nos fantasiarmos com um hábito franciscano e nos
entregarmos à falta de higiene e de formação a que é submetida a
população de moradores de rua. Esses grupos são sinceros na sua
intenção. E pitorescos e exóticos. Nada mais.
Assim, de uma maneira bem simples e informal, mais rezado no coração
nestes dias de passagem pelos santuários franciscanos, do que refletido
com a ajuda imprescindível das ciências acadêmicas, tento discernir
alguns desses elementos, sobre os quais, acredito, há um certo consenso.
O primeiro desses elementos do fenômeno franciscano é a dimensão da
fraternidade.
Essa dimensão é uma consequência lógica da identificação de Francisco
com o crucificado, que, com a encarnação, se fez nosso irmão e que
sentenciou: todos vocês são irmãos (Mt 23,8). A fraternidade exprimiu-se
de maneiras diversas na vida de Francisco e de Clara: no amor aos
irmãos e às irmãs, nos regulamentos da vida comum, na organização dos
serviços de governo da fraternidade. na sua comunhão com a Igreja, na
sua irmandade com as demais criaturas e no envio missionário. A
fraternidade na vida franciscana manifesta-se no microcosmo das relações
interpessoais dentro da fraternidade local de frades, freiras ou
franciscanos seculares, e no macrocosmo da fraternidade em níveis mais
amplos: outros atores dentro da Igreja, sociedade e o restante da
criação. Na sociedade civil, um termo fala forte: solidariedade. A
fraternidade é o nome cristão para a solidariedade. O franciscanismo
poderia fermentar as estruturas e a hierarquia da Igreja com um pouco
mais de fraternidade. Teríamos, então, estruturas mais fraternas e menos
piramidais, mais inclusivas e menos exclusivas, mais femininas e menos
machistas de discernimento e de tomada de decisões na Igreja. E a Igreja
teria, então, um lastro moral para propor, ao mundo, essa mesma
fraternidade cordial e organizacional que ela vive. Infelizmente, pelo
menos nos três ramos da Ordem dos Frades Menores, essa cultura
organizacional fraterna foi perdida logo a seguir à morte de Francisco.
Desde o generalato de São Boaventura, a Ordem Franciscana encontra-se
dividida e discriminada institucionalmente entre frades clérigos
(padres) e frades leigos (irmãos), sendo proibido a esses últimos o
acesso ao ministério de superiores na Ordem. Essa discriminação fere a
fraternidade querida por Francisco, que se veria, hoje, proibido de
governar a sua fraternidade como ele o fez, até que renunciasse em favor
de outro irmão, Pedro Catani. Por mais grave que essa discriminação
possa parecer para alguns, não o é para a quase totalidade de frades na
Ordem, clérigos e mesmo leigos. Neste sentido, pelo menos para os frades
menores, sobre o tema da fraternidade deveria ser feito,
paradoxalmente, o mais absoluto silêncio, sob o risco de expormos, ainda
mais, a nossa arraigada incoerência institucional a respeito.
O segundo elemento é o primado de Deus e a
centralidade de Jesus como acesso à vida trinitária.
Visitando as igrejas de Roma e das cidades medievais do itinerário de
Francisco, uma constatação foi-se confirmando: das igrejas medievais que
sobreviveram aos terremotos ao longo dos séculos, poucas sobreviveram
ao renascimento e ao barroco. Do lado de fora ficou a fachada medieval
em pedra. No interior, a exuberância do renascimento e do barroco, que
substituiu a construção original. Há algo de carnavalesco nas igrejas
renascentistas. O desfile das escolas de samba no Rio de Janeiro são um
grandioso e bonito espetáculo de cores e de esculturas imensas compondo
carros alegóricos cada ano maiores. Correndo o risco de parecer
grosseiro, a sensação ao entrar em uma igreja renascentista foi essa:
adentrar uma imensa Marquês de Sapucaí, sem samba e silenciosa, sem
corpos nus, mas com pessoas vestidas com decoro, com esculturas feitas
não de isopor para durarem a efemeridade de pouco mais de uma hora, mas
de mármore para a posteridade. Tudo é belo. Entretanto, o olhar e a
atenção se perdem diante de tantas esculturas, pinturas e mosaicos. Onde
está o altar? Onde está o crucificado? Onde está o ressuscitado? Por
ali, no meio daquela profusão de esculturas e de pinturas de santos, de
papas, de anjos e de outras coisas que a criatividade humana foi capaz
de fazer. Uma igreja medieval, como a de Santa Maria Maior, ao lado da
casa do bispo, em Assis, é diferente. Há apenas a parede nua em pedra e o
crucifixo ao fundo, com o altar. Desde a entrada, os nossos olhos se
fixam apenas em um elemento: o ícone do crucificado. Abrimos e fechamos
os nossos olhos na oração e temos sempre à nossa frente a mesma imagem: o
crucificado. A mesma experiência pode ser feita nas igrejinhas dos
eremitérios franciscanos. Talvez se trate apenas de uma experiência e
preferência estética. No Brasil, entretanto, a profusão barroca é mais
do que uma realidade arquitetônica ou estética. É uma forma de
religiosidade que continua a marcar a nossa Igreja. A pessoa de Jesus e
do seu evangelho encontram-se misturados e perdidos em um emaranhado de
santos, de ladainhas, de novenas, de promessas e de outros produtos
religiosos, que o pentecostalismo católico tenta manter vivo por meio de
um marketing de caráter duvidoso. Puebla ressaltou o papel da
religiosidade popular na América Latina. Mas, será isso ainda válido na
geração da internet? A religiosidade barroca dos nossos pais está tendo
alguma incidência na vida dos filhos? Acredito que pouco e, certamente,
menos ainda em um futuro próximo.
Nesse contexto, como propor às novas gerações a experiência salvífica do
crucificado-ressuscitado que guiou o itinerário de Francisco? Como
devolver à nossa Igreja a dimensão mistagógica dos seus ritos e
sacramentos, levando àqueles que neles tomam parte uma transformação
cristificante, a exemplo do que aconteceu com Francisco e Clara? Como
passar do rito à vida e da vida ao rito em uma sociedade tão conflituosa
e violenta como a brasileira? Acredito que esse caminho franciscano
passa a léguas de distância do triste espetáculo de mal-gosto em que tem
se transformado a celebração da eucaristia no Brasil, que tem servido
mais para emoldurar o ego de padres televisivos e cantores, do que para
sinalizar o mistério do crucificado-ressuscitado presente em nosso meio.
Nas nossas passagens pelos grandes santuários franciscanos, pudemos
experimentar um pouco da beleza que o rito e o canto proporcionam ao
orante. Essa milenar tradição orante da Igreja pode ser um ponto de
partida para oferecer alimento saudável às novas gerações.
Finalmente, o terceiro elemento talvez seja a
dimensão ecológica do carisma franciscano.
Assis e os seus arredores são exatamente aquilo que o nosso coração
imagina: uma cidade cercada de oliveiras, de trigais manchados de flores
campestres, onde o vento faz movimentos como nas águas de um oceano,
cheia de canto de pássaros. Os eremitérios franciscanos são um misto de
rocha bruta mesclado com um verde próprio dos bosques daqui. Junte-se a
isso o céu azul, o canto dos pássaros, o sibilar do vento e o silêncio
das montanhas e compreendemos com facilidade a personalidade ecológica
de Francisco. Nele foram reunidas todas as virtudes cardeais ecológicas.
Quando nos deparamos com os vícios e males ambientais da sociedade
brasileira, compreendemos a atualidade de Francisco de Assis. Talvez
esteja no nosso empenho pela integridade ambiental a principal
contribuição da família franciscana do Brasil à diversidade carismática
da Igreja. Há uma séria crise ambiental em curso em relação à qual
estamos fechando os nossos olhos. Estamos nos comportando como os nossos
antepassados do regime colonial e monárquico, que fecharamos os olhos à
grave questão da escravatura negra e encheram os conventos franciscanos
e clarianos no Brasil com mão-de-obra escrava. Vamos perder, mais uma
vez, o bonde da história?
A Amazônia tornou-se uma das principais praças mundiais no que se refere
à crise ambiental. Nela, tudo assume grandes proporções: a extensão
geográfica, a imensidão das matas, o porte das árvores, a extensão dos
rios e a capilariedade da bacia hidrográfica, o volume de água doce, a
biodiversidade, a variedade étnica e linguística dos povos indígenas.
Mas, nela igualmente assumem proporções catastróficas a devastação das
matas, as queimadas, os conflitos relacionados com a invasão de reservas
indígenas, a ambição das mineradoras e os projetos bilionários do
Governo Federal para a região. Para grandes obras, grandes desvios de
dinheiro para o caixa dois do partido no governo e de seus aliados. Um
mapeamento da presença franciscana no Brasil mostrará o quanto estamos
ausentes dessa realidade. Vamos perder, mais uma vez, o bonde da
história?
Apesar da ilusão presente, não acredito que o cristianismo do futuro no
Brasil seja um fenômeno de massas. Menos ainda o será a vida consagrada
e, por extensão, a vida franciscana. Temos uma opção simples a fazer: ou
sermos uma minoria qualitativa que projeta o seu futuro em uma
determinada direção, ou meros administradores de trabalhos e obras
herdadas, instalados comodamente em nossa zona de conforto.
No eremitério de Montecasale, há um simpático e idoso frade capuchinho.
Lá, ele conta com um sorriso no rosto uma história apócrifa relacionada
com São Francisco durante a sua estadia nesse local. Conta-se que, nesse
local, dois jovens procuraram Francisco desejando tornarem-se frades.
Francisco os levou até a horta e pediu aos dois para ajudá-lo a plantar
couves da maneira como ele fazia: com raízes para cima e as folhas
enterradas. Um dos canditados assim o fez. O outro, entretanto,
replicou: mas, não é essa a forma de se plantar o que quer que seja; as
raízes devem ser postas na terra. São Francisco replicou: vejo que és
inteligente; não és, porém, obediente. E dispensou o jovem. O outro
candidato que plantou a couve tal qual fora instruído por São Francisco,
tornou-se, alguns anos depois, o guardião da fraternidade de frades
desse lugar. E, conta-se, também, que a sua couve plantada às avessas
enraizou e produziu belas folhas, enquanto a outra secou e murchou. Essa
pequena história, piedosa, como tantas outras acerca de São Francisco,
carrega uma verdade profunda: quem quiser se colocar na estrada do
seguimento de Cristo, ao modo de Francisco, deve aprender a plantar
couves com raízes para cima, isto é, fazer as coisas e ser de um jeito
diferente do esperado.
A morte de Cristo e o seu retorno à comunhão trinitária tem um motivo
pedagógico: permitir que amadurecêssemos enquanto Igreja, que
aprendêssemos a caminhar com nossas próprias pernas, guiados pela
memória do ensinamento e da prática de Jesus. Também Francisco
sentenciou próximo à sua morte: fiz a minha parte, o Senhor vos ensine a
fazer a vossa. Para discernirmos a parte que nos cabe, é importante
subir os lugares ermos do franciscanismo da Itália e os lugares ermos no
Brasil. Mas, tão importante quanto subir é descer e discernirmos a
presença salvadora de Deus na conflituosa história humana.
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