Era provavelmente a primavera de 1209 quando um estranho grupo que se autodefinia "penitentes de Assis" se apresentou em Roma ao papa Inocêncio III, então no ápice da sua potência. Vestiam as pobres túnicas dos trabalhadores manuais e vestiam calças curtas, como se usava nas viagens. Liderava-os o filho de um mercador, Francisco, que alguns anos antes havia renunciado aos seus bens e abandonado as ambições cavaleirescas alimentadas até então. Queriam pedir ao papa a aprovação de um breve texto que reunia o seu propósito de viver "segundo o modelo do santo Evangelho".
A reportagem é de Giovanni Miccoli, publicada no jornal La Repubblica, 07-04-2009. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Era o ponto de partida de um percurso nada breve, que Francisco havia iniciado sozinho. As etapas essenciais para ele foram evocadas no seu Testamento, uma raridade para aqueles séculos, ditado antes de morrer para deixar aos "irmãos", com as suas últimas vontades, a recordação das características da sua escolha evangélica. Francisco não explica: descreve um caminho colocado totalmente sob o sinal da graça: o Senhor me deu, o Senhor me mostrou. O início continha uma mudança radical. Não por acaso, para dar uma ideia plena disso, ele escolheu o seu encontro de misericórdia com os leprosos: com aquilo de mais horrendo que existia aos olhos dos homens daquele tempo. Para ele naturalmente também foi assim, ao ponto de fugir da sua vista. Mas depois daquele encontro, o que antes lhe parecia "amargo" mudou, como disse, "em doçura de alma e corpo".
São palavras que sugerem o radical revolução nos critérios comuns de juízo e de comportamento, que permanecerá para ele a conotação saliente do modelo evangélico a ser proposto aos homens. Era Cristo mesmo que, com a sua encarnação, havia oferecido os traços desse modelo: "Ele, que sendo rico sobre todas as coisas, quis escolher como sua mãe a pobreza", como Francisco escreve em uma carta aos fiéis.
O propósito de seguir "os passos de Cristo", de propor o modelo oferecido por ele, incluía portanto, para ser crível, a escolha da pobreza, uma pobreza que era concretamente vivida então pelos pobres: no último grau da sociedade, sem garantias nem culturas, humildes e submissos a todos, trabalhando com as próprias mãos ou recorrendo até à mendicância, mas oferecendo em todo encontro a saudação de paz ("O Senhor te dê a paz") que reunia todo o sentido de uma vida de testemunho cristão, cuja única pretensão era a de mostrar "os novos sinais do céu e da terra que são grandes e excelentes aos olhos de Deus e que não são considerados assim por muitos religiosos e por outros homens".
Trataram-se de escolhas e convicções sobre características desse modelo amadurecidas pouco a pouco, mas que Francisco situou no seu momento culminante, ou seja, "depois que o Senhor lhe deu irmãos". Não era uma escolha previsível. Desde sempre, aqueles que pretendiam abraçar a vida religiosa para "seguir a Cristo" renunciavam aos seus próprios bens: os versículos do Evangelho pedem isso explicitamente. Isso implicava a pobreza pessoal, mas não uma vida de pobre entre os pobres. Tradicionalmente, monges e canônicos, habituais autores dessa renúncia, se colocavam na mais alta das hierarquias sociais, protegidos pelos seus privilégios concedidos por Roma. Para Francisco, não era nem devia ser assim. A clausura de um rico convento não era a sede adaptada para dar testemunho de Cristo: ele devia ser oferecido com a própria vida pelas estradas do mundo.
Nesse projeto, isso não era a única dificuldade aos olhos de Roma. Naquelas décadas, de fato, o Evangelho se tornou a marca de movimentos que contestavam a riqueza e o poder. Porém, Francisco não queria nem mesmo isso: explícita é a sua escolha de ortodoxia e de submissão à Roma. Prova disso, dentre outras coisas, é o seu pedido ao papa de aprovar o seu projeto. Toda forma de rebelião teria contradito, aos seus olhos, essa escolha de humildade e submissão, essa renúncia à própria vontade que não fosse a de seguir a Cristo.
Depois de muitas incertezas, o seu pedido foi acolhido: tratava-se, no fundo, de um pequeno grupo sem pretensões. Teve início assim um novo percurso totalmente imprevisto. Em poucos anos, de fato, aquele pequeno grupo cresceu em alguns milhares, configurando aos olhos de Roma um inesperado instrumento para suprir as carências do cuidado pastoral e para fazer frente à crescente ameaça herética.
Nascia uma nova ordem religiosa, que devia se uniformizar aos modelos oferecidos pela tradição. Francisco, mesmo aceitando, viveu esse processo com grande sofrimento. O Testamento o expressa claramente. Segundo um biógrafo seu, ele teria assim se dirigido aos "irmãos" no seu leito de morte: "A minha tarefa, eu a realizei. A de vocês, que Cristo lhes ensine". São palavras que marcam a separação ocorrida, a consciência de que o caminho que ele havia percorrido era diferente daquele que a ordem já havia iniciado.
Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=21296 acesso em 14 ago. 2009.
Imagem: The Confirmation of the Franciscan Rule / Domenico Ghirlandaio. -- Cappella Sassetti, Santa Trinità, Florence, 1482-1485. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cappella_Sassetti_Confirmation_of_the_Franciscan_Rule_2.jpg acesso em 14 ago. 2009.
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