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quarta-feira, 5 de agosto de 2009

O Amor Esponsal de Santa Clara de Assis


Por Frei João Mannes, OFM

No dia 11 de agosto celebrou-se a solenidade de Santa Clara de Assis. Por isso, nesta reflexão colocamos em evidência um dos aspectos mais relevantes de sua espiritualidade, isto é, o seu relacionamento esponsal com Jesus Cristo, que na cruz entregou-se a Si mesmo, voluntária e totalmente, por amor à humanidade.

Santa Clara fez-se esposa do Senhor dos senhores porque se sentiu profundamente afeiçoada pelo Seu irrestrito amor. Por divina inspiração, Clara renunciou a todos os outros amores possíveis para poder entregar-se inteiramente ao único esposo Jesus Cristo. Em outras palavras, com todas as fibras do seu coração, procurou evitar que “toda soberba, vanglória, inveja, avareza, cuidado e solicitude deste mundo”(RSC 10,6) desviassem o seu coração do único necessário: Jesus Cristo. Assim, conservando o seu corpo casto e virginal, sem nada de próprio, acolhe Jesus no claustro de seu seio. Por conseguinte, Clara revive espiritualmente o mistério da mãe do Senhor, que humildemente dispôs-se à ação transformadora do Espírito Santo e tornou-se efetivamente a mãe do Filho do altíssimo Pai.

Clara retrai-se do corre-corre da “cidade” e recolhe-se no santuário de sua alma para ali, na mais pessoal e individual solidão, encontrar-se a sós com o Amado. No tálamo do seu coração, no silêncio dos sentidos e do intelecto deixa-se enlevar tanto pelo amor do Amado, ou melhor, do Amante, que todo o seu afeto, amor, carinho, atenção e serviço às suas Irmãs, aos pobres e doentes são manifestações concretas de sua uniformidade com o Espírito de Cristo. O Ministro geral da OFM, Frei José Rodríguez Carballo, escreveu na Carta para a solenidade de Santa Clara – 2008, que “é vivendo no amor à Palavra que se chega a ser morada da Trindade (cf. Jo 14,23) e se adquire aquele olhar de fé que, graças a ele, nos permite vislumbrar o rosto do Amado no rosto dos irmãos e irmãs”. Enfim, pela caridade igualamo-nos a Deus, que é Amor, de acordo com Santo Agostinho: “O que o homem ama, isto o homem é”.

A Irmã Pobre, à medida que adentra sua mais interior profundidade, que é a morada de Deus, reencontra-se a si mesma e a todas as criaturas, que antes abandonara por amor a Deus. Assim, a clausura material de Clara e de suas Irmãs, também chamadas de Damas pobres, não é fuga nem rejeição do mundo, mas é, antes, expressão de um silêncio e recolhimento interior que possibilita a contemplação de nós mesmos e de todos os seres do universo, à luz da Palavra criadora que jorra do silêncio eterno de Deus. Conforme exorta-nos Francisco, “se a Alma não consegue descobrir o silêncio e o recolhimento interior da sua cela (que é o irmão Corpo), de pouco aproveita ao religioso a outra cela, construída pela mão do homem”(LP 80).

Todavia, Jesus Cristo não é somente o esposo de Clara, mas de todas as Damas pobres. Por isso, Clara louva imensamente a decisão de Santa Inês de Praga que renunciara a todas as benesses de um casamento imperial para unir-se em matrimônio com o Cristo pobre. Exorta-a, porém, de jamais “perder de vista o ponto de partida” de sua história de amor. Na verdade, foi o “espírito do Senhor” que a priori “seqüestrou o seu coração” e acendeu nela um ardentíssimo desejo de unir-se a Jesus Cristo como sua digníssima esposa. Por essa razão, Clara exorta-a a olhar, a considerar e a contemplar sempre o Filho de Deus encarnado, que fixou terna e afetuosamente sobre ela o Seu olhar e suscitou nela uma resposta, consciente e livre, de adesão total a Ele. Afinal, é constante o risco de sermos seduzidos pelos apelos imediatos do ter, do poder e do prazer, que obscurecem o ponto de partida. Mas Inês deu, sim, até o fim, uma resposta de amor Àquele que a amou primeiro, “até o extremo”.

Porém, ter a Jesus Cristo como único esposo não é um privilégio exclusivo das Damas pobres. Lê-se na Carta aos fiéis (segunda recensão), de Francisco, que “são esposos, irmãos e mães (cf. Mt 12, 50) de Nosso Senhor Jesus Cristo” (2Fi 50) aqueles e aquelas que se unem a Ele pelo Espírito Santo e fazem até o fim as obras do Senhor. Assim sendo, esposar-se com Jesus Cristo é comprometer-se com a obra de Sua vida.

E Clara, ao descobrir que Francisco amava e seguia de verdade o Filho de Deus, uniu-se voluntariamente a ele para viver conforme a sua palavra e exemplo. Assim, a Irmã Pobre, na sua fidelidade, garante a continuação do primitivo projeto de vida de Francisco. Em outras palavras, Francisco e Clara têm a mesma Regra e vida: "observar o santo Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo" (RB 1,1; RSC 1,3).

Portanto, Clara e Francisco são duas versões distintas e complementares da mesma Regra e da mesma missão franciscana no mundo. Entre Clara e Francisco existem profundos laços de ternura e uma extraordinária transparência de intenções e convergência no amor de Deus (L. Boff). Clara e suas Irmãs, por divina inspiração, se fizeram filhas e servas do altíssimo e sumo Rei, o Pai celeste, e desposaram o Espírito Santo, escolhendo viver segundo a perfeição do santo Evangelho. Por isso, Francisco quer e promete, por si e por todos os seus irmãos na Ordem, ter sempre por elas um diligente cuidado e uma especial solicitude (cf. RSC 6, 3-4).

Enfim, como irmãos de Francisco, externamos toda a nossa gratidão a Deus pelo dom da vocação de Clara e de suas caríssimas Irmãs, que com solicitude cumprem o que prometeram ao Senhor. Que o Senhor esteja sempre conosco e que nós estejamos sempre com Ele. Amém.

Segue parte da Segunda Carta de Santa Clara a Santa Inês de Praga:

“Clara, serva inútil e indigna das pobres damas, saúda dona Inês, filha do Rei dos reis, serva do Senhor dos senhores (cf. Ap 19,16; 1Tm 6,15), esposa digníssima de Jesus Cristo e por isso rainha nobilíssima, augurando que viva sempre na mais alta pobreza.

Agradeço ao Doador da graça, do qual cremos que procedem toda dádiva boa e todo dom perfeito (Tg 1,17), pois adornou-a com tantos títulos de virtude e a fez brilhar em sinais de tanta perfeição, para que, feita imitadora atenta do Pai perfeito (cf. Mt 5,48), mereça ser tão perfeita que seus olhos não vejam em você nada de imperfeito (cf. Sl 138,16).

É essa perfeição que vai uni-la ao próprio Rei no tálamo celeste, onde se assenta glorioso sobre um trono estrelado. Desprezando o fausto de um reino da terra, dando pouco valor à proposta de um casamento imperial, você se fez seguidora da santíssima pobreza em espírito de grande humildade e do mais ardente amor, juntando-se aos passos daquele com quem mereceu unir-se em matrimônio.

Mas eu sei que você é rica de virtudes e vou ser breve para não a sobrecarregar de palavras supérfluas, mesmo que não lhe pareça demasiado nada que lhe possa dar alguma consolação. Mas, como uma só coisa é necessária (Lc 10,42), é só isso que eu confirmo, exortando-a por amor daquele a quem você se entregou como oferenda santa (cf. Rm 12,1) e agradável. Lembre-se da sua decisão como uma segunda Raquel: não perca de vista seu ponto de partida, conserve o que você tem, faça o que está fazendo e não o deixe (cf. Ct 3,4) mas, em rápida corrida, com passo ligeiro e pé seguro, de modo que seus passos nem recolham a poeira, confiante e alegre, avance com cuidado pelo caminho da bem-aventurança. Não confie em ninguém, não consinta com nada que queira afastá-la desse propósito, que seja tropeço no caminho (cf. Rm 14,13), para não cumprir seus votos ao Altíssimo (Sl 49,14) na perfeição em que o Espírito do Senhor a chamou. (...).

Veja como por você ele (o Cristo pobre) se fez desprezível e siga-o, sendo desprezível por ele neste mundo. Com o desejo de imitá-lo, mui nobre rainha, olhe, considere, contemple o seu esposo, o mais belo entre os filhos dos homens (Sl 44,3), feito por sua salvação o mais vil de todos, desprezado, ferido e tão flagelado em todo o corpo, morrendo no meio das angústias próprias da cruz.

Se você sofrer com ele, com ele vai reinar; se chorar com ele, com ele vai se alegrar; se morrer com ele (cf. 2Tm 2,11.12; Rm 8,17) na cruz da tribulação, vai ter com ele mansão celeste nos esplendores dos santos (Sl 109, 3). E seu nome, glorioso entre os homens, será inscrito no livro da vida (Fl 4,3; Ap 3,5)” (Fontes Franciscanas e Clarianas, Petrópolis: Vozes, 2004, p. 1705-1707).
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/mannes_180808/ acesso em 15 fev. 2009.
Ilustração: Die Heilige Klara speist mit Maria und Christus im Kreis der Heiligen und Engel. Badische Landesbibliothek, Karlsruhe, Codex Tennenbach 4, fol. 134v. Antes de 1492. Extraído de http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Codex_Tennenbach_4_134v.jpg

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