O fato de Francisco ser próximo ao catarismo (1), ou simpatizar com os cátaros, ou até que ele mesmo fosse cátaro são temas que a cada tanto ressurgem em uma literatura que – sem sombra de desprezo – não só é especialística (isto é, não tem nenhuma conotação de especialização científica relativa aos temas que aborda), mas que, em geral, parte de uma tese: a do "mistério", da "palavra perdida", ou simplesmente do "engano" colocado em ação pela Igreja para se apropriar de qualquer um ou de qualquer coisa.
Depois, o fato de que essa literatura também possa incluir entre os seus exemplos casos de livros bem escritos, frutos do cansaço e do compromisso de pessoas apaixonadas e dotadas de um bom nível de cultura geral é muito raro: mas pode acontecer. Só que isso não acrescenta nada ao fato de que se tratam de vozes cientificamente irrelevantes.
A análise é de Franco Cardini, publicada no jornal dos bispos italianos, Avvenire, 02-02-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Diante de um livro de história de um personagem do início do século XII, importante sob o perfil religioso, quem se encontra com um novo livro nas mãos deve principalmente controlar se o autor conhece três coisas: as fontes específicas do assunto, a literatura científica relativa, o contexto histórico para colocar o personagem e a história dos quais se fala.
Tais competências não resultam do exame de "L’albero del Bene", recente livro de Giuseppe A. Spadaro, que arrisca no subtítulo até a definição de "São Francisco, teólogo cátaro" (Ed. Arkeios, 292 páginas).
Na realidade, além da impostação esotérica da apresentação do cristianismo, trata-se de um elenco de observações que extrapolam sem ordem algumas das fontes e da biografia franciscana e reordenadas arbitrariamente de modo a permitir que o autor responda afirmativamente à questão se Francisco era cátaro ou se a sua doutrina tinha pontos de contato com a doutrina cátara (o que, manifestamente, não é a mesma coisa). Tudo sob a luz de um conhecimento erudito genérico e esquemático do catarismo e de pouquíssimos dados sobre Francisco, sua personalidade, seu tempo, o contexto histórico no qual ele se moveu.
Hoje sabemos bem – e sobre isso há uma ampla concordância entre os especialistas – que o catarismo foi o complexo resultado do encontro entre movimentos religiosos de caráter evangélico e seitas cristãs de origem balcânica (os "bogomilos"), herdeiros por sua vez de uma tradição que, por meio do paulicianismo anatômico, se religava ao maniqueísmo.
Os pregadores cátaros, que até a metade do século XII tiveram um grande sucesso em uma ampla área entre a Provença, a Renânia, a Lombardia e a Toscana, se apresentavam como bons cristãos que propunham uma reforma moral da Igreja que chegasse a refundar a pura comunidade das origens.
Mas o catarismo correspondia a uma seita iniciática, fundamentalmente baseada em dois níveis: no primeiro, o dos "crentes", ensinava-se a "pura doutrina cristã", principalmente por meio do Evangelho de João. No segundo, o dos "perfeitos", recebia-se uma espécie de rito de iniciação, o "consolamentum" (um "batismo espiritual").
Os hereges "consolados" ou "perfeitos" eram obrigados a se mostrar em público austeramente vestidos de preto, a não consumir alimentos com carne ou derivados do cruzamento animal (ovos, leite etc.) e – quando consideravam oportuno – se suicidavam, deixando-se morrer de fome ("endura"). Dada a dureza da doutrina na sua fase mais alta, a maior parte dos "crentes" recebia o "consolamentum" só a ponto de morrer.
A teologia cátara, que se tornou conhecida por meio de textos recentemente republicados também na Itália pelo filólogo Francesco Zambon, defendia que o universo assiste a uma espécie de luta eterna entre Bem e Mal, que Deus é substância espiritual puríssima da qual emanam Cristo e os anjos, que a matéria é total domínio do Mal e foi criada por um Demiurgo corrompido que pode ser identificado com o satanás dos cristãos. O homem, em que Espírito e Matéria coabitam, deve libertar em si o primeiro da segunda.
Essa doutrina, de evidente origem maniqueia, tem, de fato, relações muito estreitas com o mazdaísmo persiano e com o próprio budismo, mas não tem nada a ver com o cristianismo.
De outro lado, desde o momento em que os cátaros haviam conquistado a Provença, foi necessária para erradicá-los uma verdadeira cruzada (a "cruzada dos albigenses", 1209-44), que foi um episódio de inaudita violência.
Francisco viveu justamente nesse período e foi peregrino em Santiago de Compostela justamente nos anos em que a cruzada estava em curso, atravessando seus locais. Ele não nos diz nada disso. Ele certamente não era um cátaro "perfeito", já que sabemos que ele comia tudo o que lhe era posto na frente, como a sua regra também recita.
Podia ser cátaro "crente", ou simpatizante pelos cátaros? Não, já que sabemos que um traço comum ao catarismo era a aversão ao sacerdócio e à Igreja "corrompida": Francisco, pelo contrário, recomenda o respeito aos padres, mesmo quando se sabe que são pecadores.
Toda a sua pregação é embasada sobre temas que também parecem ser de propaganda anticátara: não que ele fizesse isso expressamente, mas esse era o seu tempo e esses, os interlocutores que devia combater.
O Cântico das Criaturas é um verdadeiro manifesto anticátaro, em que a potência e a misericórdia de Deus se manifestam na criação, e todas as criaturas tendem a Deus: se para Francisco é insensata a acusação de "panteísmo", ainda mais é a suspeita de "catarismo".
De onde resulta o fato de Francisco considerar a criação um mal e ver em Satanás o criador do universo? Igualmente ridículas as outras argumentações. "Desprezo do corpo", chamado de "irmão burro"? Estamos na mais simples tradição místico-ascética cristã, e, enfim, Francisco desprezava tão pouco o seu corpo que o seu último pensamento, a ponto de morrer, foi de comer doces...
Preferência pela oração do Pater? Mas é a oração mais comum de todos os cristãos.
Predileção pela vida eremítica e pela tradição itinerante: estamos na mais absoluta ortodoxia!
Escolha de não se fazer sacerdote? Um ato de humildade, que, de todos os modos, não o impediu de ser diácono, portanto, inserido na hierarquia eclesiástica.
Absoluta rejeição da riqueza? Estamos ainda na tradição ascético-mística cristã, com o fato novo de que Francisco nunca impediu que aqueles que não pertencessem à sua ordem enriquecessem e nunca falou da riqueza como de um mal absoluto.
E assim por diante. Os pontos de contato, se houver, estão entre o catarismo e cristianismo, não entre catarismo e Francisco.
Também para a imagem "seráfica" do Cristo das estigmas, trazida como prova de adesão à doutrina cátara, para quem Cristo era na realidade um anjo, as fontes principalmente apresentam o episódio de várias formas e, em segundo lugar, a relação entre o cristo e as formas angélicas tem uma longa tradição na angeologia cristã.
E quanto ao uso franciscano dos evangelhos apócrifos, como no episódio do presépio de Greccio, a iconografia cristã da Idade Média é largamente inspirada nos apócrifos, enquanto neste caso são os próprios cátaros que usam só o Evangelho de João.
Últimos e decisivos pontos. Primeiro: o autor ignora quase todos os escritos de Francisco, excluindo o Cântico, e particularmente as suas orações e os pequenos tratados que respeitam a mais rigorosa ortodoxia latina.
Segundo, Francisco nunca desobedeceu a Igreja, e esse é o seu traço decisiva e definitivamente anticátaro. Não basta, enfim, conhecem alguns elementos de teologia e de filosofia para enfrentar um tema como o proposto por esse livro, cujo assunto é inadmissível. Trata-se de um trabalho sem fundamento científico e sem valor.
Nota:
O catarismo (do grego καϑαρός [katharós], "puro") foi uma seita cristã politeísta[1], principal motivo pelo qual foi considerada como heresia, surgida no Languedoc e no norte da península Itálica ao final do século XI. As suas ideias constituiam-se num amálgama de conceitos cristãos, gnósticos e maniqueístas. Alguns historiadores indicam a sua formação a partir do século VII quando heréticos daquelas correntes, oriundos do Oriente Médio e do Norte da África, migraram para aquelas regiões da Europa diante da expansão muçulmana; outros, entretanto, afirmam que seriam fruto da expansão das heresias dos bogomilos (Reino dos Búlgaros) e dos paulicianos (Oriente Médio) (Fonte: Wikipédia - Nota da IHU On-Line).
Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=30327 acesso em 4 mar. 2010.
Ilustração: Cruz cátara sobre o tau franciscano / Eugenio Hansen, OFS. Imagens originais obtidas em 4 mar. 2010 de http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Te_cross.svg e http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Cathar_cross.svg
Velho manda esse kra fica queto e estudar mais sobre a igreja, indico o Livro "Para entender A INQUISIÇÃO" Prof. Felipe Aquino ed. Cléofas, desculpe s fui grosso mas não posso ouvir tamanho absurdo o titulo faz, São Francisco ao invés dos Cataros não deixou a Igreja como fez eles alegando ser os "puros" mas viveu de uma forma radical junto com São Domingos para combater tamanha heresia que provocava os Cataros tbm conhecidos como albigenses no sul da França, não nego os erros dos Filhos da Igreja ouve SIM! mas Cristo falo em Jo 16, 13 que o Esp´rito SAnto ensinaria a Igreja "toda verdade", isto é, ela é infalível quando ensina a "sã doutrina" (Tito 1, 9;2,1; 1Tm 1,10) mas não prometeu a impecabilidade para seus filhos, nem mesmo para o Papa. Infalibilidade não quer dizer impecabilidade. Quando o papa fala em "ex_cathedra" ele não pode errar, mas como homem pode. Como o Concílio de Trosly dissera com toda a razão: " Os maus padres que apodrecem na esterqueira da luxúria contaminam com a sua conduta todos aqueles que são castos, pois os fiéis sentem-se inclinados a dizer: "São assim os Padres da Igreja" (Rops, vol II, p.553. Sou devotíssimo de São Francisco de Assis, tudo que acho sobre ele leio, pra mim ele foi o Segundo Cristo aqui na terra, que com a Senhora Pobreza, o Santo Evangelho e a humilde OBEDIENCIA a Santa Igreja foi totalmente diferente aos principios dos Cataros
ResponderExcluirPaz e bem!
ResponderExcluirCaro "aiaiaiaiai ai":
1 Lestes o artigo
ou só lestes mal o título?
Franco Cardini nem no título
afirma que Francisco de Assis
foi Cátaro.
O autor apresenta esta hipótese,
mas no texto desconstrói a mesma:
"Ele certamente não era um cátaro 'perfeito', já que sabemos que ele comia tudo o que lhe era posto na frente, como a sua regra também recita.
"Podia ser cátaro 'crente', ou simpatizante pelos cátaros? Não, já que sabemos que um traço comum ao catarismo era a aversão ao sacerdócio e à Igreja "corrompida": Francisco, pelo contrário, recomenda o respeito aos padres, mesmo quando se sabe que são pecadores."
[ . . . ]
"O Cântico das Criaturas é um verdadeiro manifesto anticátaro, em que a potência e a misericórdia de Deus se manifestam na criação, e todas as criaturas tendem a Deus: se para Francisco é insensata a acusação de 'panteísmo', ainda mais é a suspeita de 'catarismo'."
2 Quanto à tua indicação de leitura
do livro Engenheiro Felipe Aquino
registro que nesta área
considero os livros dele
rasos, superficiais e arrogantes;
mas esperar o que
de uma pessoa que lamentou
que o Cardeal Paulo Evaristo Arns
ainda estivesse conosco
e não tivesse se juntado
ao Cardeal Aloísio Lorscheider.