Arquivo do blog

terça-feira, 23 de março de 2010

O revolucionário Francisco de Assis e a ''feminilização do cristianismo''

Mesmo submetendo-se à autoridade do Pontífice, Francisco deu vida a uma nova figura: o "leigo religioso" e abriu caminho para a feminilização do cristianismo moderno.

A análise é de Agostino Paravicini Bagliani, professor de história medieval da Universidade de Lausanne, na França, em artigo para o jornal La Repubblica, 22-03-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Francisco de Assis é um daqueles grandes mestres espirituais cuja história sempre fascina e com a qual todas as gerações se confrontam sem nunca poder dela se apropriar completamente. São incontáveis as interpretações, gestos também de natureza política e até manipulações da sua memória.

Às vésperas da segunda guerra do Iraque, o ministro de assuntos exteriores de Saddam Hussein, Tarek el-Aziz, único membro cristão do seu governo, foi ao túmulo de Francisco para rezar pela paz. João Paulo II deu vida ao "Espírito de Assis", organizando reuniões entre representantes de religiões cristãs e não cristãs que não tiveram depois um seguimento com o seu sucessor. A teologia da libertação (Leonardo Boff) havia visto em Francisco o fundador de uma "Igreja dos pobres".

No fim do século XVIII [i.e. século XIX], foi colocada no Índex a primeira biografia moderna de São Francisco, em que o autor, Paul Sabatier, havia apresentado o santo como um espírito livre, amigo dos animais, precursor da Reforma protestante e das revoluções sociais. Iniciava assim a chamada "Questão franciscana", que estudiosos como Ovidio Capitani, Chiara Frugoni, Claudio Leonardi e Giovanni Miccoli renovaram profundamente nestas últimas décadas.

A história de Francisco é, assim, história e memória, para retomar o subtítulo da mais recente e profunda biografia do santo, de André Vauchez ("Francesco d'Assisi tra storia e memoria", editado por Grado Giovanni Merlo, Ed. Einaudi, 378 páginas). História e memória envolvem também a imagem de São Francisco com os estigmas, um elemento que continua envolto em um mistério difícil de ser desfeito.

Para Vauchez, depois de meio século de pesquisas tão intensas, é impossível reduzir o Pobrezinho de Assis a uma leitura linear, porque ele mesmo assumiu posições às vezes contraditórias: a forte consciência de ter sido chamado por Deus para realizar uma missão particular deve ser confrontada com a submissão total a uma Igreja cujas fraquezas ele conhecia. Como conciliar a sua atitude não violenta com o rigor extremo que aflora no seu Testamento com relação aos irmãos desobedientes ou desviantes?

O fato é que, mesmo submetendo-se sem discussão à autoridade da Igreja, Francisco levou até os limites do possível as margens de autonomia, de liberdade e de diferença. Francisco deu uma completa autenticidade sua a uma nova figura de cristão, o "leigo religioso".

A recusa inicial de Francisco de tornar estável a residência dos freis atestava que um novo tipo de relação entre os homens era possível, no seio de uma humanidade "reconciliada e sem fronteiras". Com Francisco, a palavra eleva-se a instrumento de comunicação social não em sentido hierárquico. Quando falou do pecado original, Francisco evocou a culpa de Adão, nunca a de Eva, ultrapassando portanto as tradicionais oposições entre os sexos e abrindo caminho para uma "feminilização do cristianismo" (Jacques Dalarun).

Acima de tudo, a única pessoa à qual a Igreja medieval reconheceu a realidade dos estigmas foi uma mulher leiga, virgem e mística, Santa Catarina de Sena. Francisco de Assis foi, portanto, o protagonista de uma mutação em profundidade da antropologia cultural do Ocidente, além da religiosa, e é por isso que a sua mensagem continua tão profundamente ligada a conceitos como a paz, a natureza, a tolerância, a igualdade.

Francisco foi canonizado menos de dois anos depois da sua morte, no dia 16 de julho de 1230, um caso praticamente único na história das canonizações, diferente porém do coro de vozes que se levantou com a morte do Papa João Paulo II ("Santo já"). A canonização de São Francisco foi rapidíssima porque foi desejada pelo próprio Pontífice, Gregório IX, que havia entendido como a força da mensagem de Francisco era impetuosa e desejava canalizá-la.

Só um Papa do século de Francisco subiu às honras dos altares: Celestino V, o Papa "da grande recusa" que a memória histórica – e os espirituais franciscanos – identificavam como o "Papa angélico". Mas foi uma canonização desejada pelo rei da França, Felipe, o Belo, para contrastar a memória do seu inimigo de sempre, o Papa Bonifácio VIII. Isso nos lembra o quanto foi sempre complexa, tanto hoje quanto no passado (como demonstra o importante livro de Roberto Rusconi, "Santo Padre. La santità del papa da san Pietro a Giovanni Paolo II", Ed. Viella, 700 páginas), a sutil relação que existe entre santidade e poder.

Para ler mais:


Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=30896 acesso em 23 mar. 2010.

Ilustração: La predica agli uccelli / Maestro del san francesco Bardi. Século XV-XVI. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Maestro_del_san_francesco_Bardi,_la_predica_agli_uccelli.jpg acesso em 23 mar. 2010.


2 comentários:

  1. Ola sou de acordo com alguns enigmas colocados no artigo. Confesso que quando li titulo do ponto de vista historico tenho um pouco de dificuldade com o termo "revolucionario", mas vendo o texto original queria questionar o tradutor qual a intençao de acrescentra ao titulo a "feminilizaçao do cristinianismo" visto que o texto somente faz um aceno quando evidencia um comento de J. Dalarun??
    Mas sou de acordo com a leitura muitas vezes ideologica de Francisco de Assis que conduz por uma estrada que te leva ainda mais distante do pobrezinho de Assis

    ResponderExcluir
  2. Paz e bem!

    Brother Emerson:

    É bom que faças tuas observações aqui,
    quiçá desenvolvamos coletivamente
    uma reflexão do tema.

    Contudo acho que o tradutor
    nal sabe que o artigo
    foi reproduzido aqui.
    Assim sugiro que navegues no site de origem:
    http://www.ihu.unisinos.br/index.php
    e lá faças tb teu comentário.

    ResponderExcluir

Firefox