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sexta-feira, 21 de maio de 2010

Teologia franciscana da pobreza

A Teologia franciscana da pobreza em Boaventura de Bagnoregio e Pedro de João Olivi

Introdução

Tendo muito oportunamente refletido, sob a competente condução de Frei Celso Márcio Teixeira, sobre a proposta econômica de Francisco de Assis, vejamos agora, ainda que de forma bastante incompleta, como a questão da pobreza foi sendo abordada ao longo dos primeiros decênios da história franciscana - especialmente por dois dos seus grandes personagens: Boaventura de Bagnoregio e Pedro de João Olivi - a fim de verificarmos qual a relevância desta reflexão para o tema da relação entre economia e cristianismo que estamos tratando.

No entanto, antes de nos referirmos ao pensamento destes autores sobre a questão, precisamos contextualizá-lo historicamente.

Contextualização

Antes de tudo, devemos recordar que o modo de pensar de Francisco era muito concreto, imediato, prático. As necessidades práticas da vida da primitiva fraternidade o absorviam com tanto urgência que tanto ele, quanto seus primeiros companheiros, não viram a necessidade de aprofundar as bases teóricas da doutrina sobre ao pobreza(1).

Contudo, sabemos do rápido e impressionante processo de expansão tanto numérica quanto territorial da Ordem Franciscana, o qual implicou em novas formas de aplicação dos preceitos da Regra, especialmente no que se refere à relação dos frades com os bens e com o dinheiro. Só para citar um exemplo, Tomás de Eccleston, sem deixar de ressaltar a grande pobreza dos frades da Inglaterra que, em Cambridge, por exemplo, não possuíam nem mesmo cobertores, na sua crônica recorda que, para a reforma do convento de Londres, várias pessoas ajudaram com dinheiro - inclusive o rei inglês – o qual era administrado pelos próprios frades, uma vez que não se faz menção a nenhum “procurador” ou “amigo espiritual”(2).

Deste modo, a partir do momento em que a fraternidade se transforma cada vez mais em um Ordem composta de irmãos procedentes das diferentes classes sociais e inseridos nos mais diversos contextos culturais, foram sendo colocadas sempre novas questões a propósito da pobreza que, por sua vez, geravam tensões no interior da Ordem. Por isso, desde muito cedo os frades apelaram para as interpretações papais da Regra que professavam.

Assim, já em 1230 - portanto somente quatro anos depois da morte de Francisco - Gregório ix - que se gloriava de ter sido Cardeal protetor da Ordem e de conhecer a verdadeira intenção de Francisco ao escrever a Regra – declara, a respeito dos capítulos mais polêmicos da Regra – o quarto e o sexto – quanto segue:

  1. Sobre a proibição de receber dinheiro:

“(...) se os frades querem comprar uma coisa necessária ou pagar uma coisa já comprada, possam apresentar o encarregado daquele do qual se compra a coisa ao encarregado daqueles que querem lhes dar esmolas; este, assim apresentado pelos frades, não é encarregado deles, ainda que seja apresentado por eles, antes, é encarregado daquele por ordem de quem fez o depósito”(3).

  1. Sobre a proibição das propriedades em geral:

“Dizemos, portanto, que (os frades) não devem ter propriedade nem em comum, nem comunitariamente, mas, a Ordem tenha o uso dos utensílios, dos livros e dos outros bens móveis que lhe é lícito ter. Os frades, pois, os usem segundo quanto será estabelecido pelo ministro geral o pelos ministros provinciais, permanecendo intacta a propriedade dos lugares e das casas nas mãos daqueles aos quais se sabe que pertencem. Nem devem vender os seus bens móveis, nem trocá-los fora da Ordem, nem aliená-los de qualquer modo, ao menos que o tenha concedido a autoridade (...) da Igreja” (4) .

Percebe-se aqui, portanto, a permissão do uso dinheiro - ainda que de modo indireto - por parte dos frades e uma primeira distinção entre propriedade e uso dos bens (dominium et usus).

Porém, mesmo depois da Quo elongati, permaneceram certas dificuldades concretas não de todo resolvidas como, por exemplo, a de saber a quem se atribui a propriedade de um bem imóvel utilizado pelos frades quando são vários os doadores, ou quem é o proprietário de um imóvel deixado em herança para os frades, sendo que o doador já tenha morrido.

Assim, em 1245, Inocêncio iv, com a bula Ordinem vestrum, declara que os bens da Ordem se encontravam “in ius et proprietatem beati Petri”, ou seja, eram propriedade da Santa Sé - do Papa – que, por sua vez, autorizava os superiores da Ordem a indicar leigos que os administrassem (5).

Mas, ainda que num plano jurídico a pobreza franciscana fosse com uma tal medida assegurada, ainda persistiam dificuldades, sobretudo com relação à críticas por parte do Clero Secular à atuação dos frades, uma vez que, a estes era cada vez mais confiada a cura d’almas, com a conseqüente diminuição das entradas econômicas dos Seculares.

Além disso, decisivo para a discussão teórica sobre a pobreza foi a entrada dos Franciscanos nas Universidades, a partir da qual a disputa entre estes e os Seculares - até então restrita ao âmbito puramente pastoral - assumiu uma conotação de disputa universitária. Esta disputa se deu sobretudo na Universidade de Paris, onde as novas Ordens Mendicantes (Franciscanos e Dominicanos) foram cada vez mais conquistando para si aquelas cátedras antes ocupadas exclusivamente pelos Seculares.

Boaventura

Nesta disputa universitária, Boaventura de Bagnoregio, professor da Universidade de Paris e, mais tarde, Ministro Geral da Ordem Franciscana, exerceu um papel determinante, especialmente ao defender, na sua Apologia pauperum de 1269, a tese da absoluta pobreza de Cristo e dos apóstolos, como bem exprimem essas suas palavras:
“Cristo foi pobre no seu nascimento, pobre durante o tempo da sua vida, pobre no final desta. (...) Porque o Mestre e Senhor Jesus assumiu a pobreza não para si mas para o nosso bem, afim de que pelo Seu exemplo nos fosse mostrada a perfeição, por isso estabeleceu que os santos apóstolos, como imitadores perfeitos da Sua santidade, devessem observar esta forma de extrema pobreza"(6).
Esta foi, sem dúvida, a grande contribuição boaventuriana no que diz respeito à teologia da pobreza que, logo em seguida, foi ratificada pela mais famosa das declarações papais sobre a Regra: a Exiit qui seminat, de Nicolau iii, em 1279, que assim reza:
“Afirmamos que tal renúncia à propriedade de todo bem, seja individual, seja em comum, é por Deus meritória e santa, e foi por Cristo ensinada em palavras e confirmada pelo exemplo, o qual mostrou a via da perfeição, recebida pelos primeiros fundadores da Igreja militante, assim como eles a tinham recolhido daquela fonte, nos rios da doutrina e da vida Dele”(7).

Mas, a contribuição do Doutor Seráfico não parou por aqui.
Deve-se observar que ao longo do seu generalato, que durou bem dezesseis anos, mesmo aceitando e favorecendo o processo de transformação da Ordem, o Mestre de Paris defendeu que isso não devia significar para o frade individualmente uma atenuação do rigor efetivo da Regra. Explicam-se, assim, as suas admoestações aos frades a não armazenarem alimentos e a não recorrerem com facilidade e sem grave necessidade aos procuradores e aos amigos espirituais (8).

De fato, ainda na Apologia pauperum, se por um lado - servindo-se da distinção já presente, como vimos, na Quo elongati, entre posse e uso dos bens - ele justifica o acesso dos frades aos bens necessários à subsistência, por outro, ele se refere a um uso limitado dos mesmos quando diz:

“Com relação à posse das coisas temporais, podem-se considerar dois aspectos: posse e uso. Porque o uso é necessariamente ligado com esta vida, a pobreza evangélica consiste em renunciar à posse dos bens terrenos no que diz respeito ao domínio e à propriedade; porém, no que diz respeito ao uso, consiste não em refutar-lo completamente, mas, em limitar-lo. De fato, diz o apóstolo a Timóteo: “Quando temos do que comer e do que cobrir-nos, acontentemo-nos disso” (1Tm 6,8)(9).

Assim, em virtude da sua atividade como professor, mas, sobretudo da sua decisiva atuação como Ministro Geral da Ordem, o Doutor Seráfico laçou as bases para uma outra teoria relativa à pobreza que teve uma importância fundamental na vida dos Menores sobretudo até o início do século xiv: aquela do usus pauper, ou seja, do uso pobre dos bens.

Pedro de João Olivi

Este conceito de usus pauper foi especialmente tematizado e defendido, entre 1274 e 1283, por um outro Frade Menor, Pedro de João Olivi - nascido no sul da França e ex-aluno de Boaventura em Paris – tanto ao longo das suas questões disputadas sobre a perfeição evangélica, quanto naquele pequeno tratado que tem justamente o seguinte título: De usu paupere: sobre o uso pobre(10).

No entanto, para que se compreenda o significado desta expressão, precisamos recordar que a devoção dos fiéis colocava nas mãos dos frades uma quantidade considerável de bens e de dinheiro. Destes bens, os frades na realidade não tinham a posse que era, como dissemos, atribuída ao Papa. O próprio uso destes bens era exercido por meio de pessoas intermediárias: os chamados procuradores e amigos espirituais. Porém, aqui podiam surgir abusos. Entre estes procuradores e os frades se criava muitas vezes uma tal relação de amizade que levava os tais amigos a se renderem totalmente a qualquer pedido do convento ou de um determinado frade(11).

Assim, o uso pobre consistia fundamentalmente num modo de comportamento, num critério moral e espiritual que, ao mesmo tempo em que dava ao indivíduo a liberdade de decisão, lhe atribuía a total responsabilidade diante da sua consciência e do juízo de Deus. Consistia essencialmente em se usar dos bens de que se podia dispor de modo que o pedido a ser feito aos procuradores fosse o mais pobre possível. Assim, se desejava eliminar pela raiz a possibilidade de abusos(12).

Neste sentido, em seu tratado, Olivi observa que ainda que a propriedade dos bens que a Ordem usava pertencesse à Igreja, isso não dava aos frades o direito de viverem prodigamente, uma vez que o usus pauper os obrigava a um limite mínimo no manuseio do dinheiro e dos bens. Ele defende que o usus pauper pertence à substância e à integridade do voto de pobreza e que o mesmo está para a renúncia à posse como a forma está para a matéria. Afirma também que até mesmo os bispos franciscanos estão obrigados ao uso pobre, chegando quase a considerá-lo como essencial para o ministério episcopal(13). A propósito dos “amigos espirituais”, tolera o recurso a eles só por indulgência e com a condição de que não sejam nomeados diretamente pelos frades(14). Além disso, influenciado pelas doutrinas apocalípticas de Joaquim de Fiore, Olivi chega a declarar que a negação do usus pauper representa a preparação do caminho para a seita do Anti-Cristo, pois, segundo ele, “(...) nada prepara melhor o caminho para a sua seita do que a injúria à altíssima pobreza”(15) .

Como se pode intuir, esta doutrina oliviana vinha muito de encontro aos interesses do partido rigorista surgido por aqueles tempos no seio da Ordem chamado dos espirituais, o qual, sobretudo a partir dos primeiros anos do século xiv, crescia cada vez mais em número e em prestígio por parte de influentes defensores externos da Ordem.

Porém, deve ficar claro que Olivi, na sua firme defesa do uso pobre, diferentemente dos outros representantes do grupo dos espirituais - como Ubertino de Casale, por exemplo -não cai na armadilha do legalismo. Para ele, o usus pauper não se reduz a um conjunto de regras que determinam de ante-mão todas as ações, mas, diz respeito a um modo de viver e de ser, a uma disponibilidade que é, antes de tudo, interior e que se manifesta necessariamente em uma forma de vida pobre(16).

Breve reflexão sobre a relevância atual da questão

Mas, o que todas estas discussões teóricas sobre a pobreza têm a nos dizer sobre o tema da economia que estamos tratando?
Me parece que a grande colaboração destes autores franciscanos citados reside em chamar a nossa atenção para duas grandes questões muito pertinentes ao nosso tema: a propriedade e o uso dos bens.

Quanto à primeira questão, a dificuldade de os franciscanos se considerarem com proprietários dos bens de que faziam uso - o que levou à distinção jurídica entre propriedade e uso dos bens a fim de que, dentro das novas condições em que se encontrava a Ordem se pudesse observar o quanto possível o ideal pobreza - talvez esteja apontando para o fato de que a propriedade dos bens não se constitui em um valor absoluto, mas, que deve estar sempre referida a um valor maior, no caso: o ideal da pobreza. Hoje, talvez este valor poderia ser identificado na própria função e destinação sociais dos bens e, conseqüentemente, de toda propriedade. Não terá sido isso que João Paulo ii quis dizer quando, na Laborem Exercens, afirma que sobre toda propriedade privada pesa uma hipoteca social?(17)

Quanto à segunda questão, ainda que, dentro da mentalidade do tempo, ao uso pobre era conferido sobretudo um caráter ascético - enquanto exigência de uma maior perfeição espiritual - poderíamos talvez traduzi-lo como um uso consciente e responsável dos bens, sobretudo dos recursos naturais, tanto urgente e necessário no contexto hodierno de drásticas mudanças climáticas e de conseqüente escassez, para uma porção cada vez maior da população mundial, dos bens necessários à subsistência.

De fato, não se pode negar que, em grande parte, os problemas de ordem econômico/social são efeitos de um uso irresponsável e imoderado dos bens, a respeito do que - tanto individualmente, quanto como sociedade - todos precisamos refletir seriamente, especialmente nós, herdeiros da grande tradição franciscana.

Frei Fábio Cesar Gomes, ofm.
Instituto Teológico Franciscano – Petrópolis
20 de abril de 2010.

(1) Cfr. M.D. Lambert, Povertà francescana, Ed. Biblioteca Francescana, Milano, 1995, 123.
(2) Cfr. A.L. Pereira, Os franciscanos medievais na contracorrente da economia: os impasses da proibição do dinheiro, in Revista Franciscana, 3 (2003) 66.
(3) Gregorio ix, Quo elongati, n.5, in Fonti Francescani, n.2733, 1723.
(4) Gregorio ix, Quo elongati, n.6, in Fonti Francescani, n.2734, 1724.
(5) Cfr. Inocêncio iv, Ordinem vestrum, in Bullarium Franciscanum, vol.1, 401.
(6) Boaventura, Apologia pauperum, c.7, n.7-9, in Opere di San Bonaventura, vol.14/2,Città Nuova Editrice, Roma, 2005, 230-232.
(7) Nicolau iii, Exiit qui seminat, in Bullarium Franciscanum, vol.3, 407.
(8) Cfr. R. Manselli, I primi cento anni di storia francescana, a cura di Alfonso Marini, Edizioni San Paolo, Milano, 2004, 99.
(9) Boaventura, Apologia pauperum, c.7, n.3, 224.
(10) Cfr. P.J. Olivi, De usu paupere. The quaestio and the tractatus, a cura de D. Burrr, Perth, 1992.
(11) Cfr. R. Manselli, I primi cento anni di storia francescana, 99.
(12) Cfr. R. Manselli, I primi cento anni di storia francescana, 100.
(13) Cfr. Olivi, De usu paupere, 63.
(14) Cfr. Olivi, De usu paupere, 76.
(15) Olivi, De usu paupere, 89 e 148.
(16) Cfr. L.A. De Boni, De Abelardo a Lutero. Estudos sobre filosofia prática na Idade Média, edipucrs, Porto Alegre, 2003, 231.
(17) Cfr. João Paulo ii, Laborem Exercens, n.14, internet (20.04.2010): http://www.vatican.va/edocs/POR0068/__PF.HTM.

Extraído de http://www.franciscanos.org.br/itf/artigos/2010/007.php acesso em 18 maio 2010.

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