O
movimento sugerido pelo Papa João XXIII e confirmado pelo Vaticano II
está nos revelando, cada vez mais, que nós franciscanos constituímos
uma única e mesma Ordem, seguimos uma única e mesma Regra e vivemos uma
única e mesma Vida: a Ordem, a Regra e a Vida da ardente Paixão de
nosso Senhor Jesus Cristo, vivida e testemunhada pelos Apóstolos,
re-aparecida ou ressuscitada em Francisco, re-vivida e testemunhada por
ele e por inúmeros de seus companheiros, séculos afora[1].
O vigor
desse mistério ou Paixão é de tal efervescência, disposição e
fecundidade que explodiu e se multiplicou desde cedo em milhares e
milhares de pessoas que olhavam, procuravam e seguiam Francisco não
apenas de forma individual ou particular, mas também comunitariamente
em pequenas e, às vezes, em grandes grupos ou comunidades. Essa
multiplicação pode ser comparada à Igreja nascente do primeiro século
cristão. Em poucos anos o mistério do mesmo Cristo crucificado, vivo e
ressuscitado, multiplicava-se e difundia-se por quase todas as partes
do mundo. Os fiéis, nascidos e vivificados pela seiva da única e mesma
Boa Nova, eram todos “cristãos”, mas nem todos de igual forma. Uns eram
de Éfeso e formavam a Igreja de Éfeso, outros de Roma e formavam a
Igreja de Roma, de Jerusalém, Corinto, Tessalônica, etc.; uns procediam
do paganismo e outros do judaísmo. Todos, pois, são cristãos, mas nem
todos do mesmo jeito. Assim, também, acontece com nossa Ordem. Todos
somos franciscanos, mas nem todos do mesmo jeito. Por isso, todos os
capuchinhos são franciscanos, mas nem todos os franciscanos são
capuchinhos, vice e versa, etc.
Assim
também aconteceu com o Carisma originário de Francisco que, aos poucos,
passou a chamar-se “franciscano”. “Franciscano” é, pois, a raiz, o
comum de todos quantos se sentem atingidos pelo mesmo mistério da
Paixão de Cristo que atingiu Francisco. Mas, o atingimento e a resposta
não são iguais em ou para todos. Cada um procura recebê-la e
concretizá-la a seu modo. É o fenômeno da multiplicação que outros,
indevidamente, chamam de divisão. Por isso, desde logo nasceram as três
Ordens, cada qual com uma denominação diferenciada e própria: Ordem dos
Frades Menores, Ordem das Irmãs Pobres e Ordem Terceira. E, dentro de
cada uma dessas três Ordens, com o decorrer dos anos e séculos, o
processo continua florescendo e se multiplicando, com o consequente
surgimento de muitas outras ramificações. Na ou da OFM surgiram os
menores, os conventuais e os capuchinhos. Na ou da Ordem de santa
Clara, surgiram as Coletinas, as Capuchinhas, as Concepcionistas, as
Urbanistas, e outras. Na ou da Ordem Terceira, finalmente, nasceram e
continuam nascendo dezenas e mais dezenas de Congregações e Institutos
religiosos, conglomerados na então denominada Terceira Ordem Regular de
são Francisco (TOR).
Todos e
todas, porém, denominam-se “franciscanos/as”. Por isso, assim como o
cristão de Roma não pode ser igual ao cristão de Éfeso, ou o gaúcho ao
catarinense, o mesmo acontece conosco. Nenhum conventual ou capuchinho,
nenhum franciscano secular ou regular gostaria de chamar-se de
“menor”, e vice-versa, nenhum “menor”, gostaria de ser chamado de
conventual ou capuchinho, etc.
Por isso,
não há nenhuma razão que justifique o neologismo “francisclariano”,
inventado para designar todos os franciscanos. As únicas que podem usar
com justiça e propriedade esse nome seriam as clarissas. Quando um
outro franciscano recorre a este termo para se auto-definir está
renunciando e negando o vigor próprio de sua origem e de sua
espiritualidade, o brilho de sua identidade, conduzindo-se,
necessariamente, a um lento, mas irremediável processo de vagueza,
enfraquecimento e diluição do específico de seu espírito, carisma,
vocação e missão[2].
O
importante em tudo isso é não sucumbir à tentação de reduzir o
mistério, a obra, a “coisa” de Deus à subjetividade das pessoas, sejam
indivíduos ou grupos. Em outras palavras, cuidar para que o Carisma
franciscano não vire “coisa” de um Francisco, de uma Clara, de um
Egídio e, no fim, de cada um de nós, seus seguidores. Neste caso,
estaríamos prendendo e reduzindo à mera fragilidade dos limites da
subjetividade das pessoas, dos fatos, das ocorrências passageiras e do
biológico o que não se pode subjetivar ou prender: a floração do
mistério, do amor, da Paixão de Deus que não se limita a nenhuma
pessoa, a nenhum tempo, lugar ou gênero, mas a tudo e a todos, fazendo
surgir um novo Céu e uma nova Terra. Pode-se parafrasear, aqui, o
pensamento de Oscar Wilde acerca da arte[3]:
O Franciscanismo, ou o Carisma franciscano, não pode jamais ser
submetido ao sujeito Francisco e a nenhum outro sujeito. Pois, neste
caso, não seria mais carisma, graça do Senhor. Seria apenas biografia,
mera narrativa de fatos e ocorrências, através da qual a realidade,
isto é o real, que costumamos chamar de “franciscano”, foge e escapa.
Notas:
[1] Portanto, em vez de se falar em “Família Franciscana do Brasil” dever-se-ia falar em “Ordem Franciscana do Brasil”.
[1] Portanto, em vez de se falar em “Família Franciscana do Brasil” dever-se-ia falar em “Ordem Franciscana do Brasil”.
[2] Tudo o que se diz aqui, das pessoas, isto é, dos franciscanos, vale também das assim chamadas Fontes Franciscanas. Não existem Fontes “francisclarianas”. O que existe são Fontes Franciscanas que se desdobram em Fontes ou Escritos de São Francisco, de Santa Clara, de Frei Egídio, de São Boaventura, de Santo Antônio, etc. Assim, ao se dizer “Fontes Franciscanas” está-se pensando e incluindo todas. Por isso, se disser uma, não estarei, necessariamente, incluindo as demais. Se disser “Fontes fancisclarianas” estarei falando apenas dos Escritos de São Francisco e de Santa Clara. Não estarão, necessariamente, incluídos, por exemplo, os Escritos de Frei Egídio, de Junípero, Tomás de Celano, São Boaventura, etc. Mas, ao contrário, se disser Fontes Franciscanas incluo todos os escritos que de uma ou outra forma estão sob a inspiração originária desse Carisma que moveu Francisco, Clara e seus primeiros companheiros.
- Texto extraído de http://ofsporciuncula.blogspot.com.br/2012/08/franciscano-e-franciscanos.html acesso em 26 ago. 2012.
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