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sexta-feira, 31 de outubro de 2008

O encontro e o beijo no irmão leproso

Fr. Sílvio João Santos do Carmo, OFMcap
freisilviocarmo@hotmail.com
Uns dos momentos mais profundos, no processo de conversão de Francisco, foi, sem sombra dúvida, o encontro com um leproso. Seu primeiro impacto com uma pessoa totalmente desprezada na sociedade de seu tempo por ser doente (1). Sua primeira realidade vivida “nua e crua”. Porém, um encontro que mudaria para sempre sua maneira de vê o outro. Quem foi este leproso? Nós não sabemos e nunca vamos sabe. O que sabemos é que antes Francisco sentia uma repugnância profunda pelos leprosos. Depois, a repulsa ser torno doçura (2). Totalmente envolvido com o mistério de sua mudança interior, onde o Mistério Redentor o subjuga e o fere com o dardo de seu Amor Eterno, se submete a uma prova maior. Antes vivida de maneira natural, agora no rosto desfigurado de um leproso a prova de sua mudança; antes vivida no pecado, agora no amor divino, encontra a imagem do Cristo sangrando na cruz que o deteve e o impeliu na direção daquele leproso, e, este o conduz novamente à essência de sua vida. Certo de que o amor é a única força, a única realidade que une aquilo que está separado (3), no seu caso, o Verdadeiro Amor que dá coragem de transgredir as leis e as normas humanas. O Amor que dá a coragem de morrer para o outro viver. A partir daí, Francisco torna agradável todas as coisas que antes lhe pareciam amargas e amargas todas aquelas que lhe pareciam doces (4).

Para Francisco este encontro selava sua última fronteira. Não tinha mais dúvida de que Deus tinha-lhe colocando no caminho certo. O irmão leproso não lhe era mais obstáculo para viver sua ardente felicidade. Estava completamente livre para amor Deus e seus irmãos, sem medo, sem preconceito. Sem especular no que os outros iriam pensar ou falar. Isso não importava. O mais importante agora era está com o irmão desprezado, o problemático, aquele que ninguém quer falar ou conviver. Agora sua companhia tornava-se-lhe agradável e completava sua alegria interior.

É certo que o desejo mais profundo do ser humano é amar e ser amado. A busca deste desejo está na sede de amar sempre, mas só um amor verdadeiro torna a pessoa verdadeiramente feliz. Também é certo de que o maior ato de amor de Deus para com sua criatura foi o de tê-lo feito capaz de amar (5). Daí, concluímos que o único e mais importante dever do ser humano é aprender a amar (6). Sendo assim, amar é uma arte divina, que só adquirimos depois de percorremos um longo caminho. Em outras palavras, quando estamos verdadeiramente maduros interiormente, isto é, quando deixamo-nos abrir totalmente à Vontade de Deus. Vale lembrar que, “amar nos torna livres” e livres podemos amor sempre. Na verdade foi isso o que aconteceu com Francisco. Antes do encontra com o leproso percorreu este caminho. “Mas como por graça e força do Altíssimo já tinha começado a pensar nas coisas santas e úteis, quando ainda vivia como secular, encontrou-se com um leproso e, superando a si mesmo, aproximou-se e o beijou. A partir de então foi ficando cada vez mais humilde até conseguir vencer a si mesmo, por misericórdia do Redentor” (7).

Como falei acima, nós nunca saberemos quem foi o leproso que se encontrou com Francisco. Também podemos afirma com toda certeza que nem Francisco teve o privilegiou de conhece está pessoa antes de sua doença, porém, podemos traçar sua aparência física: ‘monstruosamente mais infeliz deste mundo’, ‘pedaços de carne podre’, ‘corpo coberto de chagas purulentas’, ‘em suas mãos, pés e face, muitas feridas’. Foi com este leproso horrível que Francisco ser aproximou e beijou-o na boca. Sim, Francisco beijou-o na boca (8). Mais não só a boca, mas a mão (9), a face (10) e até as chagas purulentas (11). E aqui, vem uma pergunta: O que significa este basium? (12). Significa nas fontes franciscanas o beijo da paz (13), isto é, o beijo da caridade e da união. O Sopro da vida, o hálito que alenta, o toque que refaz. Francisco ao beijar o leproso, recebe também o toque de quem tem o último sopro de vida e da esperança, o último fio de confiança (14).

Depois deste encontro, Francisco entendeu que não “bastava contemplar Deus na cruz ou fazer uma meditação diante dele preso numa cruz e suspenso sobre o altar. Não, ele estava ali, no chão, no corpo do leproso. Desta forma consegue descobrir-lo, servi-lo e ama-lo” (15). Chamava-os de irmãos cristãos porque encontrava neles de modo mais eloqüente a imagem e semelhança com Cristo (16). E não aceitava que ninguém tratasse mal nenhum deles (17). Certa vez, Francisco respondeu com tom repreensivo há um frade que ao vê um irmão cristão chegar com convento, tratou-o com certa ingenuidade, apesar de ter recebido ordens do próprio Francisco para que o tratasse bem. “Não deves agir dessa maneira com o nosso irmão cristão, porque não é bom, nem para ti nem para ele” (18). Porém, o que Francisco pedia sempre aos seus frades era que eles dedicassem seu tempo e serviço, com respeito e caridade a todos os irmãos cristãos por amor de Deus (19).

O encontro e o beijo com o irmão leproso na vida de Francisco no início de sua conversão, ajuda-nos a refletir sobre a repugnância vencida (20), muitas vezes presente ao longo de nossa caminhada fraterna. Lembra-nos que podemos vencer todas as barreiras que nos afasta de nossos irmãos, sejam eles leprosos ou não. Lembra-nos também que a conversão pessoal, o Amor Eterno presente no meio de nós e o dialogo fraterno serão tanto mais vivos quanto mais intensos forem nossos encontros, superando diferenças e quebrando mitos. Que o exemplo do Seráfico Pai São Francisco nos ajude a vivermos como verdadeiros irmãos e principalmente verdadeiros cristãos. Amém!

Notas de Rodapé

1. Cf. LE GOFF, Jacques. As doenças têm História. Lisboa, Terramar, 1996.
2. Cf. Testamento 1-3
3. Cf. SPIDLIK, Omas. Nós na Trindade, São Paulo, Paulinas, 2004, p.84
4. Cf. STICCO, Maria, São Francisco de Assis, Petrópolis, Vozes, 2001, p.58.
5. Cf. IMODA, Franco, Olho para ele com amor, São Paulo, Paulinas, 2002, pp. 127-130
6. Cf. João, 15; Mt 25.
7. Cf. 1Cel 17
8. Cf. 2C 9
9. Cf. 3S 11
10. Cf. LM 6
11. Cf. Idem.
12. Do latim basiare. Tendo três palavras distintas:
1. osculum: beijo na face.
2. basium: beijo na boca.
3. saeuim: beijo leve e com ternura
13. Cf. 3S ll
14. Cf. Artigo de Frei Vitório Mazzuco Filho, OFM, site: www.franciscanos.org.br
15. Cf. Dicionário Franciscano. Verbete: leproso, leprosário, p. 377.
16. Cf. idem, p. 378.
17. Cf. EP, 58
18. Cf. LP, 22
19. Cf. 1C, 103; Fior, 25; LP 102
20. Cf. LE GOFF, Jacques. São Francisco de Assis, Record, 2005, p. 67.
Extraído de http://www.promapa.org.br/2006/index.php?pag=artigos&exibartigo=45 acesso em 31 out. 2008.

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