O atual cenário religioso brasileiro não inspira nenhuma renovação, na visão do padre e filósofo Luiz Roberto Benedetti. Mas, esclarece ele, “talvez ajude a Igreja a tomar consciência de que sua palavra perde a aura de sacralidade e de autoridade impositiva de que gozava, uma vez que – e aqui lembro a Evangelii Nuntiandi de Paulo VI – este mundo aceita as testemunhas mais do que os mestres. Estes são vistos como necessários, pois ‘delimitam’ um campo de verdade e moralidade (psicologicamente saudável), mas isso não significa que as pessoas se guiem por eles”. Benedetti concedeu a entrevista a seguir, por e-mail, para a IHU On-Line, onde afirma que “o catolicismo, no Brasil, sofre as consequências da mudança social acelerada. Mudança caracterizada, no caso religioso, pelo pluralismo religioso”. E assim descreve o panorama atual do catolicismo: “a incapacidade de compreender as mudanças sociais cada vez mais rápidas e profundas leva a Igreja a propor-se como única tábua de salvação. Só ela tem o remédio para todos os males. Os fora dela estão inseguros, perdidos, desenraizados. Esta visão impede de ver os problemas reais experimentados pela grande massa. Por outro lado, pode-se visar no pontificado de Bento XVI uma espécie de catolicismo de minoria; simplificando: poucos, mas bons. Não significa buscar um catolicismo de elite, mas sim cristãos conscientes da própria fé, capazes de lutar por seus direitos de participação na vida da Igreja, co-responsáveis, presentes nos embates sociais e políticos. Não acredito na volta de um catolicismo fundado em manifestações massivas, que se esgotam em si mesmas. São psicologicamente reconfortantes, mas não representam um caminho para uma presença expressiva da Igreja no mundo”.
Benedetti possui graduação em Filosofia pelo Instituto Camiliano Pio XII, graduação em Filosofia pela Universidade de São Paulo, graduação em Teologia pela Conferência Nacional dos Religiosos, mestrado em Sociologia pela Universidade de São Paulo e doutorado em Ciências Humanas pela mesma instituição. Atualmente, é professor na Faculdade de Teologia e Ciências Religiosas da Pontifícia Universidade Católica de Campinas. É autor de, entre outros, Os santos nômades e o Deus Estabelecido (São Paulo: Paulinas, 1983) e Templo, praça, coração - A articulação do campo religioso católico (São Paulo: Humanitas / USP / FAPESP, 2000).
Confira a entrevista.
IHU On-Line - Como entender a renovação e a ebulição atual do catolicismo? Quais as causas que originaram o panorama católico atual?
Luiz Roberto Benedetti - A Igreja Católica vive, sim, um momento de ebulição. Nos anos 1980, o teólogo José Comblin dizia, contrariando o então Cardeal Ratzinger, que falava de frutos amargos do Concílio, que se não tivesse acontecido o Vaticano II a Igreja talvez já tivesse desaparecido. Não foi uma frase de efeito. Na realidade, o que acontece é que tudo o que houve durante e depois do Concílio preparou a Igreja, até certo ponto, para enfrentar as mudanças que se aceleravam cada vez mais. Independentemente de se aceitar ou não a pós-modernidade como etapa ou crítica da modernidade, o fato é que esta atinge todas as esferas da vida social. Literalmente põe em questão a forma de estar no mundo por parte das igrejas, não apenas a católica. Todas. Mesmo as oriundas historicamente da Reforma – que pode ser vista como a primeira “etapa” da Revolução Burguesa – não escapam ao desafio de recolocar-se no mundo atual. Sem o Concílio não estaríamos minimamente preparados para enfrentar os desafios éticos que as mudanças sociais colocam ao pensamento e ação dos cristãos. O clima de liberdade nos tempos de João XXIII e Paulo VI “prepararam”, até certo ponto, a Igreja Católica para enfrentar os desafios da realidade atual. Há muito de ingenuidade e, sobretudo, de má fé atribuir a eles os problemas vividos pela Igreja. Agora, não sei se é possível falar de renovação. O papado altamente centralizador de João Paulo II combinou um forte apelo emocional-midiático com rigidez e controle exacerbado sobre a liberdade que o teólogo precisa para “pensar” a fé à luz da mudança histórica, restabeleceu a ligação direta bispos-burocracia romana (deixando em segundo plano, quando não ignorando, as conferências episcopais); na nomeação destes pensou mais na docilidade que na lucidez, inteligência e sabedoria (capacidade de discernimento). A impressão que se tem é que Bento XVI tem consciência da situação que herdou e busca remédios. Mas, mesmo em seus momentos mais felizes, carrega o fardo de inquisidor.
IHU On-Line - Em que sentido as religiões emergentes servem de inspiração para o catolicismo na atual disputa por espaço e prestígio social no cenário religioso brasileiro?
Luiz Roberto Benedetti - Não sei se há religiões emergentes, no sentido clássico atribuído à palavra religião como sistema articulado de ideias, ritos e normas morais, capaz de dar um sentido ao mundo como realidade construída. Há mais um estado de espírito, de cor religiosa, difuso, altamente subjetivo. A subjetividade, exacerbada pelo fluxo de imagens e informações, combina elementos de tradições opostas e o faz seguindo modas, ou seja, o mix religioso psicológico tem duração efêmera. Poucos falam hoje da Nova Era, por exemplo. Mais ainda, se olharmos o “prestígio” da auto-ajuda, salpicada de conselhos edificantes tirados das religiões e totalmente fora de contexto, os romances de cunho religioso vendendo aos montes (A Cabana, por exemplo), fica evidente que podemos falar mais de religiosidade fluida, dispersa, do que de religiões. E mais: quando a religião se torna questão de defesa do consumidor (vai parar no PROCON), levada para os bancos dos réus, tudo isso é sintoma de uma mudança radical. Claro que a situação sumariamente esboçada não inspira nenhuma renovação. Mas talvez ajude a Igreja a tomar consciência de que sua palavra perde a aura de sacralidade e de autoridade impositiva de que gozava, uma vez que – e aqui lembro a Evangelii Nuntiandi de Paulo VI – este mundo aceita as testemunhas mais do que os mestres. Estes são vistos como necessários, pois “delimitam” um campo de verdade e moralidade (psicologicamente saudável), mas isso não significa que as pessoas se guiem por eles.
IHU On-Line - Como o senhor caracteriza, de modo geral, o catolicismo no Brasil? Em que consiste o dilema entre “apelo à massa” e comportamento reservado; ou “cristianismo de massa” e de minoria?
Luiz Roberto Benedetti - Há que olhar, primeiramente, os números do Censo. Numericamente há uma queda expressiva e crescente. Fato normal, uma vez que qualquer situação de pluralismo e diversidade religiosas, como a que vivemos, sempre provoca evasão da religião dominante ou hegemônica. O catolicismo, no Brasil, sofre as consequências da mudança social acelerada. Mudança caracterizada, no caso religioso, pelo pluralismo religioso. O aumento crescente de grupos religiosos que oferecem toda sorte de soluções para problemas da desigualdade social violenta pode levar a Igreja a cair na mesma tentação. Mais a tentação de embarcar no catolicismo midiático, um meio de atuar que atinge os que já são fiéis, altamente oneroso do ponto de vista financeiro. Ao invés de concentrar esforços numa emissora de qualidade, que tenha credibilidade, investem-se recursos em canais que acabam disputando, entre si, na transmissão de uma mensagem que, no limite, pouco contribui para dar solidez ao testemunho da fé no mundo urbano. A tentação de cair numa religiosidade intimista, de cunho emocional, somada à rigidez moral e ao devocionismo. A geração do Vaticano II sai de cena. Enfrentamos o problema de nomeações episcopais e a falta de abertura a novas formas de exercício dos ministérios ordenados. A incapacidade de compreender as mudanças sociais cada vez mais rápidas e profundas leva a Igreja a propor-se como única tábua de salvação. Só ela tem o remédio para todos os males. Os fora dela estão inseguros, perdidos, desenraizados. Esta visão impede de ver os problemas reais experimentados pela grande massa. Por outro lado, pode-se visar no pontificado de Bento XVI uma espécie de catolicismo de minoria; simplificando: poucos, mas bons. Não significa buscar um catolicismo de elite, mas sim cristãos conscientes da própria fé, capazes de lutar por seus direitos de participação na vida da Igreja, co-responsáveis, presentes nos embates sociais e políticos. Não acredito na volta de um catolicismo fundado em manifestações massivas, que se esgotam em si mesmas. São psicologicamente reconfortantes, mas não representam um caminho para uma presença expressiva da Igreja no mundo.
IHU On-Line - Qual a importância das comunidades católicas para manter viva a chama do catolicismo e para fortalecer a capacidade profética da Igreja?
Luiz Roberto Benedetti - As comunidades de vida não são um fenômeno novo na História. As ordens e congregações religiosas, surgindo quase sempre às margens da instituição, representaram papel semelhante. Guiadas pelo carisma do fundador, passaram do entusiasmo inicial, renovador, assumindo tarefas sociais relevantes do momento, a uma acomodação e burocratização institucional que domesticou a energia fundante e a pôs a serviço da instituição. A visão de Weber cabe aqui: a domesticação do carisma. De movimento a instituição. O movimento carismático já está incorporado à vida da instituição. Burocratizado e tem sua “continuidade” nas comunidades de vida. Se elas podem fortalecer a missão profética da Igreja? Bem, não dá para responder em cima dos fatos, no calor da hora. É cedo. Se tem um papel “profético” é o de abrir a instituição para levar mais a sério a subjetividade e a liberdade de escolha do homem moderno. Ele não tolera ser um a mais. Gosta do anonimato, mas anonimato “escolhido”. As relações significativas ele as escolhe. Serem proféticas as comunidades no sentido de renovar a vida da Igreja, a sua forma de presença na sociedade, não vejo que possam a vir desempenhar esse papel. Mesmo porque há várias formas de comunidade: as que valorizam a emoção, aquelas que somam devocionismo, emoção, rigidez moral e atendimento aos sofredores (o caso exemplar é o da Toca de Assis). Na sua diversidade têm um ponto em comum: uma leitura fundamentalista da Palavra de Deus e do magistério, sobretudo nas normas morais referentes à sexualidade. Talvez possam ser “proféticas” no sentido de não aderir ao relativismo reinante.
IHU On-Line - Os novos grupos e comunidades católicas buscam uma renovação dentro da Igreja ou continuam reiterando as mesmas verdades proferidas ao longo de vinte séculos? Manter-se “copiando” o passado pode ser um atrativo inclusive para os jovens?
Luiz Roberto Benedetti - Sim, buscam a renovação, mas à sua maneira. Representam a cultura moderna na valorização da performance, da emoção; outras questionam, mas caem no descrédito: por exemplo, ser franciscano não significa vestir-se como São Francisco, andar descalço ou cortar o cabelo como na Idade Média. Será que isso renova a Igreja, atrai os jovens? Ou não serão outras razões mais ligadas à situação cultural e socioeconômica que explicam a atração que exercem?
IHU On-Line - O que o senhor entende pelo “diálogo de surdos” entre a Igreja e seus membros? As novas comunidades católicas podem contribuir para a melhora deste diálogo?
Luiz Roberto Benedetti - Há uma distância crescente entre as aspirações e os problemas vividos pelos homens e mulheres contemporâneos e a postura da Igreja. Ao propor-se como tábua de salvação para todos os males e considerar erro e desvio tudo o que não se coloca na sua perspectiva impede um diálogo, adulto, livre e responsável com o mundo. Mesmo dentro da Igreja, as aspirações dos fiéis não são levadas em conta. Não se trata de mudar sua verdade, mas de criar sensibilidade às dores e alegrias humanas que não se resolvem com condenações aos que tentam interpretá-las à luz do Evangelho (refiro-me especificamente aos teólogos). Mais: a distância entre o pensamento científico e o teológico. O biólogo, o físico, o matemático explicam o universo. O teólogo pode dialogar com eles ficando restrito ao que a instituição diz e o “obriga” a crer. E os problemas sociais: a encíclica de Bento XVI foi relativamente bem recebida. Mas fica a interrogação: porque foi esquecida a “Pacem in Terris” de João XXIII, num dos seus pontos altos: as relações internacionais? Não vejo como as novas comunidades possam abrir os ouvidos de uns e outros nesse diálogo. Mesmo porque professam uma fé cega à palavra do magistério, que, aliás, constitui sua segurança num mundo marcado pelo relativismo, como já disse.
IHU On-Line - Quais as influências do Concílio Vaticano II para o fortalecimento das novas comunidades católicas?
Luiz Roberto Benedetti - As novas comunidades não constituem meu campo de pesquisa. Procuro acompanhar a literatura sobre o assunto. Digo isso porque vejo nelas a “tradução” mais visível da influência das mudanças sociais sobre a religião. Sua uniformidade – adesão incondicional à letra da Bíblia e do magistério eclesiástico – e a diversidade interna são aspectos de uma realidade social que afeta diretamente vida religiosa. De um lado, o pluralismo ético e religioso e o individualismo levam pessoas a buscarem grupos que lhe dêem segurança. A comunidade representa segurança e a leitura da vida da fé em termos de verdade pronta garante identidade. Não há contradição entre o vale-tudo religioso e o fundamentalismo. O segundo aparece como forma de reação pessoal e institucional a uma situação que um sociólogo do porte de Berger define como caos (Durkheim diria anomia). Não vejo como o Vaticano II possa ter influenciado as novas comunidades. Elas brotam de movimentos religiosos, do tipo renovação carismática, e sua raiz está sempre na mudança social.
IHU On-Line - Em que medida as novas comunidades católicas contribuem para que a Igreja possa se pensar na própria história?
Luiz Roberto Benedetti - A meu ver sua adesão incondicional a uma instituição – no caso a Igreja – permite entender as contradições e impasses que ela enfrenta. Permite compreender os limites das imposições eclesiásticas de caráter burocrático. Pode levar à descoberta de que no mundo de hoje “se flutua”, se navega e a Igreja descobre que não tem mais o controle sobre seu próprio discurso. Ele é apropriado por todas as instâncias sociais, de modo especial a mídia, que o interpreta num paradigma antropo-político. Dizer, por exemplo, que não se deve ordenar mulheres é norma da Igreja e aceita quem quer (liberdade de escolha). Isso pode dizer a instituição eclesiástica. Mas a “verdade” do mundo está em outro lugar. Objetivamente essa norma não é vista como desígnio de Deus para sua comunidade. É, sim, fruto de uma discriminação da mulher, herança da tradição patriarcal-machista. Mais ainda, vista como atitude preconceituosa fere os direitos humanos básicos. Bem, então se alega liberdade religiosa. O lugar social da Igreja e da religião mudou.Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=25455 acesso em 06 set. 2009.
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