Paul Wess
Professor de Teologia Pastoral na Universidade de Innsbruck
Adital
Como se pode perceber ao longo deste livro, o conflito na Teologia da Libertação baseia-se num pressuposto fundamental que ambas as partes reconhecem, mas do qual tiram conclusões contrárias. Se o um e o mesmo Jesus Cristo é verdadeiramente ser humano e verdadeiramente Deus, há duas possibilidades. Ou ele é visto prioritariamente como o Deus que permaneceu transcendente e que salva (assim Clodovis Boff), ou ele é visto como aquele ser humano em que Deus se tornou o irmão de todos, especialmente dos pobres, passou a ser igual a eles e assim os salvou (assim os teólogos da libertação criticados por Clodovis Boff).
Segundo essa doutrina tradicional, mas não bíblica, Deus tornou-se ser humano para que o ser humano se tornasse Deus. Isso impossibilita explicar a transcendência de Deus e a importância que a fé nesse Deus maior possui para a esperança na salvação e para a moldagem de uma prática social libertadora. A teologia pode ser substituída por uma antropologia "platonizante” idealista, na qual Deus ainda é sinônimo para o futuro do ser humano, mas já não é o fundamento maior permanente e o Senhor dele. Por isso, em sua crítica a essa "virada antropológica” na teologia moderna (C. Boff 2007, 1009), Clodovis Boff percebe algo que é correto, mas não vai suficientemente longe. Ele assume os mesmos pressupostos dogmáticos em vez de questioná-los e corrigi-los numa releitura da cristologia bíblica. É sintomático que ele se refira somente a uma "transcendência da fé” ou mais generalizadamente à "transcendência” que é a "parte menor e menos relevante” na Teologia da Libertação (ibidem, 1005), mas não da transcendência de Deus acima da criação e dos seres humanos.
O Deus transcendente e o ser humano a ser salvo não podem se tornar iguais, nem mesmo por graça. Isto se aplica também a Jesus Cristo. Por isso, Jon Sobrino enveredou em sua cristologia e soteriologia pelo caminho certo, na medida em que rejeitou a transferência de atributos divinos ao ser humano Jesus Cristo. Ele permaneceu contraditório, porém, na medida em que supôs ao lado desse Cristo humano um Cristo divino, segundo o dogma de Niceia (cf. Cap. 5). Uma reorientação do pensamento nesse ponto permitiria também uma melhor consideração das possibilidades humanas limitadas e da inevitabilidade do sofrimento numa criação que é limitada e ainda está passando pelas dores do parto. Uma volta para a visão bíblica da transcendência inabolível de Deus também acima de Jesus Cristo, bem como da salvação através da reconciliação com a finitude da existência a caminho para a plenificação esperada de Deus poderia provavelmente ajudar a solucionar a "contenda entre irmãos” na Teologia da Libertação. Além disso, seria um grande desafio para o magistério que também precisaria mudar seu pensamento nessas questões. Essa volta para a fé bíblica e sua releitura seria pelo bem da teologia e da igreja, e assim também e principalmente pelo bem das pessoas pobres. A libertação delas é a preocupação compartilhada por ambas as partes do conflito e oxalá as unirá em breve.
Afinal, a opção pelos pobres não é apenas o tema de uma "teologia de segunda ordem”, separada como um campo parcial secundário ou uma mera aplicação de uma "teologia de primeira ordem” que iniciaria com Deus e a partir da qual todo o resto poderia ser deduzido. Esta é a posição de Clodovis Boff criticada por Weckel e Aquino Júnior (Weckel, 13-16; Aquino Júnior, 82-104). Deus é e permanece transcendente para o ser humano – também para Jesus Cristo – e nesse sentido precisa ser o "tema” mais importante dentro da teologia que é uma. Por isso, podemos falar dele somente quando partimos do ser humano e interpretamos, retroativamente e no modo de busca, nossas experiências em relação a Deus como o fundamento de nossa existência. Se passarmos ao largo dos seres humanos concretos e da história da salvação, não teremos acesso a Deus. Emprestando as palavras de Júnior: "O Deus bíblico revela-se como Deus dos pobres e dos oprimidos (embora ele seja mais do que isto)” (Aquino Júnior, 99s). Por isso não existe, no sentido bíblico-cristão, uma "teologia de primeira ordem” ou uma "teologia da fé” (cf. C. Boff 2007, 1006) antes ou acima da Teologia da Libertação como uma "teologia de segunda ordem” que tratasse dos seres humanos e preferencialmente dos pobres. Existe apenas uma única teologia, e esta sabe da transcendência de Deus e parte por isso de modo histórico-concreto das experiências humanas, especialmente aquelas que se tornaram possíveis graças à vida e obra de Jesus e que devem ser testemunhadas numa prática adequada – numa prática libertadora.
[in Wess, Paul: DEUS, Cristo e os Pobres. Libertação e Salvação na Fé à Luz da Bíblia. Apresentação: João Batista Libanio. Tradução do alemão: Monika Ottermann. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2011. www.nhanduti.com, p. 196-198].
Sobre o autor:
Paul Wess, nascido em 1936 em Viena (Áustria), estudou filosofia e teologia em Innsbruck (inclusive com Karl Rahner), onde obteve em 1961 seu doutorado em filosofia. Ordenou-se presbítero em 1962 e trabalhou em Viena como vigário paroquial e professor de ensino religioso. Após um tempo de reorientação e novos estudos (1965/1966), assumiu –inicialmente numa equipe de padres– o trabalho numa paróquia recém-fundada em Viena (Machstrasse - Rua Mach), com o objetivo de formar comunidades de base e fazer experiências concretas de uma igreja communio.
Em 1968, obteve o doutorado em teologia pela Universidade de Innsbruck com a tese "Como falar de Deus? Um debate com Karl Rahner” (Graz, 1970), e em 1989 a habilitação para o ensino universitário da teologia pastoral com a tese "Igreja de Comunidades – Lugar de fé. A prática como fundamento e consequência da teologia” (Graz, 1989). Liberado para o ensino universitário em 1996, foi o primeiro professor convidado em Graz (Áustria) e em Würzburg (Alemanha) e, desde 2000, é professor de Teologia Pastoral na Universidade de Innsbruck. Em 1992 participou como membro da delegacia austríaca do 8º Intereclesial das CEBs, em Santa Maria.
Nos países de fala alemã, Paul Wess é um dos principais defensores das comunidades de base, da revisão dos conteúdos da fé e da reestruturação da Igreja Católica segundo os princípios bíblicos de fraternidade e sororidade ("Geschwisterliche Kirche”). Seus numerosos ensaios e artigos deram origem a vários livros e coletâneas, alguns deles já "verificados” pelo Vaticano; mas, por enquanto, ainda não objetos de notificações.
Wess Paul: DEUS, Cristo e os Pobres. Libertação e Salvação na Fé à Luz da Bíblia. Apresentação: João Batista Libanio. Tradução do alemão: Monika Ottermann. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2011. www.nhanduti.com. 23x16 cm, 208p. ISBN 978-85-60990-12-2.
Segundo essa doutrina tradicional, mas não bíblica, Deus tornou-se ser humano para que o ser humano se tornasse Deus. Isso impossibilita explicar a transcendência de Deus e a importância que a fé nesse Deus maior possui para a esperança na salvação e para a moldagem de uma prática social libertadora. A teologia pode ser substituída por uma antropologia "platonizante” idealista, na qual Deus ainda é sinônimo para o futuro do ser humano, mas já não é o fundamento maior permanente e o Senhor dele. Por isso, em sua crítica a essa "virada antropológica” na teologia moderna (C. Boff 2007, 1009), Clodovis Boff percebe algo que é correto, mas não vai suficientemente longe. Ele assume os mesmos pressupostos dogmáticos em vez de questioná-los e corrigi-los numa releitura da cristologia bíblica. É sintomático que ele se refira somente a uma "transcendência da fé” ou mais generalizadamente à "transcendência” que é a "parte menor e menos relevante” na Teologia da Libertação (ibidem, 1005), mas não da transcendência de Deus acima da criação e dos seres humanos.
O Deus transcendente e o ser humano a ser salvo não podem se tornar iguais, nem mesmo por graça. Isto se aplica também a Jesus Cristo. Por isso, Jon Sobrino enveredou em sua cristologia e soteriologia pelo caminho certo, na medida em que rejeitou a transferência de atributos divinos ao ser humano Jesus Cristo. Ele permaneceu contraditório, porém, na medida em que supôs ao lado desse Cristo humano um Cristo divino, segundo o dogma de Niceia (cf. Cap. 5). Uma reorientação do pensamento nesse ponto permitiria também uma melhor consideração das possibilidades humanas limitadas e da inevitabilidade do sofrimento numa criação que é limitada e ainda está passando pelas dores do parto. Uma volta para a visão bíblica da transcendência inabolível de Deus também acima de Jesus Cristo, bem como da salvação através da reconciliação com a finitude da existência a caminho para a plenificação esperada de Deus poderia provavelmente ajudar a solucionar a "contenda entre irmãos” na Teologia da Libertação. Além disso, seria um grande desafio para o magistério que também precisaria mudar seu pensamento nessas questões. Essa volta para a fé bíblica e sua releitura seria pelo bem da teologia e da igreja, e assim também e principalmente pelo bem das pessoas pobres. A libertação delas é a preocupação compartilhada por ambas as partes do conflito e oxalá as unirá em breve.
Afinal, a opção pelos pobres não é apenas o tema de uma "teologia de segunda ordem”, separada como um campo parcial secundário ou uma mera aplicação de uma "teologia de primeira ordem” que iniciaria com Deus e a partir da qual todo o resto poderia ser deduzido. Esta é a posição de Clodovis Boff criticada por Weckel e Aquino Júnior (Weckel, 13-16; Aquino Júnior, 82-104). Deus é e permanece transcendente para o ser humano – também para Jesus Cristo – e nesse sentido precisa ser o "tema” mais importante dentro da teologia que é uma. Por isso, podemos falar dele somente quando partimos do ser humano e interpretamos, retroativamente e no modo de busca, nossas experiências em relação a Deus como o fundamento de nossa existência. Se passarmos ao largo dos seres humanos concretos e da história da salvação, não teremos acesso a Deus. Emprestando as palavras de Júnior: "O Deus bíblico revela-se como Deus dos pobres e dos oprimidos (embora ele seja mais do que isto)” (Aquino Júnior, 99s). Por isso não existe, no sentido bíblico-cristão, uma "teologia de primeira ordem” ou uma "teologia da fé” (cf. C. Boff 2007, 1006) antes ou acima da Teologia da Libertação como uma "teologia de segunda ordem” que tratasse dos seres humanos e preferencialmente dos pobres. Existe apenas uma única teologia, e esta sabe da transcendência de Deus e parte por isso de modo histórico-concreto das experiências humanas, especialmente aquelas que se tornaram possíveis graças à vida e obra de Jesus e que devem ser testemunhadas numa prática adequada – numa prática libertadora.
[in Wess, Paul: DEUS, Cristo e os Pobres. Libertação e Salvação na Fé à Luz da Bíblia. Apresentação: João Batista Libanio. Tradução do alemão: Monika Ottermann. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2011. www.nhanduti.com, p. 196-198].
Sobre o autor:
Paul Wess, nascido em 1936 em Viena (Áustria), estudou filosofia e teologia em Innsbruck (inclusive com Karl Rahner), onde obteve em 1961 seu doutorado em filosofia. Ordenou-se presbítero em 1962 e trabalhou em Viena como vigário paroquial e professor de ensino religioso. Após um tempo de reorientação e novos estudos (1965/1966), assumiu –inicialmente numa equipe de padres– o trabalho numa paróquia recém-fundada em Viena (Machstrasse - Rua Mach), com o objetivo de formar comunidades de base e fazer experiências concretas de uma igreja communio.
Em 1968, obteve o doutorado em teologia pela Universidade de Innsbruck com a tese "Como falar de Deus? Um debate com Karl Rahner” (Graz, 1970), e em 1989 a habilitação para o ensino universitário da teologia pastoral com a tese "Igreja de Comunidades – Lugar de fé. A prática como fundamento e consequência da teologia” (Graz, 1989). Liberado para o ensino universitário em 1996, foi o primeiro professor convidado em Graz (Áustria) e em Würzburg (Alemanha) e, desde 2000, é professor de Teologia Pastoral na Universidade de Innsbruck. Em 1992 participou como membro da delegacia austríaca do 8º Intereclesial das CEBs, em Santa Maria.
Nos países de fala alemã, Paul Wess é um dos principais defensores das comunidades de base, da revisão dos conteúdos da fé e da reestruturação da Igreja Católica segundo os princípios bíblicos de fraternidade e sororidade ("Geschwisterliche Kirche”). Seus numerosos ensaios e artigos deram origem a vários livros e coletâneas, alguns deles já "verificados” pelo Vaticano; mas, por enquanto, ainda não objetos de notificações.
- Extraído de http://www.adital.com.br/?n=b3a5 acesso em 19 jul. 2011.
Wess Paul: DEUS, Cristo e os Pobres. Libertação e Salvação na Fé à Luz da Bíblia. Apresentação: João Batista Libanio. Tradução do alemão: Monika Ottermann. São Bernardo do Campo: Nhanduti Editora, 2011. www.nhanduti.com. 23x16 cm, 208p. ISBN 978-85-60990-12-2.
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