O domingo passado [18 de março] marcou o 800º aniversário da fundação das Clarissas, a segunda das ordens franciscanas. Oitocentos anos atrás, nesse mesmo dia, Chiara Favarone, aos 18 anos, aquela que hoje conhecemos como Clara de Assis, foi à igreja com a sua família. Era um domingo, mas não apenas qualquer domingo.
- Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/noticias/507832-o-dia-em-que-chiara-favarone-saiu-para-qfora-do-acampamentoq acesso em 25 mar. 2012.
Clara e Francisco queriam viver como eles acreditavam que Jesus pretendia que as pessoas vivessem, com vidas transformadas por uma reordenação do que significa ser família.
A análise é do teólogo católico leigo Jon M. Sweeney, autor de Light in the Dark Ages: The Friendship of Francis and Clare of Assisi [Luz na Idade das Trevas: A amizade de Francisco e Clara de Assis] e de The St. Clare Prayer Book: Listening for God’s Leading [O livro de orações de Santa Clara: Ouvindo a orientação de Deus].
O artigo foi publicado no sítio National Catholic Reporter, 20-03-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Esse era o Domingo de Ramos, e os eventos do dia envolviam todos os cidadãos de Assis. No início da manhã, as pessoas se reuniam fora dos muros da cidade com ramos e flores nas mãos, esperando que a procissão começasse. Havia um drama intensificado dada a leitura da Paixão. Um barítono melodioso recitava as palavras de Cristo, enquanto uma voz masculina deliberadamente dissonante iniciaria os cânticos a partir da multidão, assim como as palavras de Judas. Era esse tipo de interpretação dramática que permitia que todos pudessem compreender o que estava acontecendo, apesar do uso de um texto em latim.
No fim da missa, era então costume que cada menina em idade de casar saudasse pessoalmente o bispo, apresentando-se a ele de uma forma condizente com uma dama. Para a maioria das meninas do vilarejo, isso representava um ponto alto no ano, e todas ficavam preocupadas a respeito e se preparavam por semanas. Era um prelúdio às suas cerimônia de casamento, quando todos os olhos se voltavam para a glamurosa e alegre procissão da noiva pelo corredor da igreja, assim como agora.
Mas com Clara seria diferente. Ela se recusou a se apresentar como uma mulher disponível naquele dia. Como todos os refinados habitantes de Assis puderam assistir, Clara não se apresentou para saudar o bispo quando chegou a sua vez. Seu biógrafo mais antigo nos conta que Francisco havia instruído Clara sobre como atuar juntamente com o drama rotineiro do Domingo de Ramos. Ele lhe disse para se vestir com roupas finas e ir à frente com as outras meninas para receber a palma da mão do bispo. Mas Clara decidiu não ir.
A sua conversão à vida religiosa culminou naquela noite, enquanto ela fugia às escondidas da casa de seus pais no extremo leste da cidade e se juntava a Francisco e aos freis na Porciúncula, uma pequena capela no vale. Imagine uma jovem mulher correndo no meio da noite para se juntar a um bando de seguidores de Francisco, hippies e amantes da pobreza, do lado de fora da cidade. Era escandaloso! Os membros homens da sua família a seguiram e tentaram afastá-la fisicamente, mas ela resistiu.
Depois de 800 anos, as pessoas têm sido atraídas com curiosidade pela vida de Francisco e Clara. Nós observamos as personalidades e as intenções dos primeiros franciscanos como um daqueles momentos na história da Igreja quando a religião era jovial e vibrante. No entanto, a rejeição das suas famílias tornou possíveis as suas vidas religiosas. Seria isso algo para se imitar?
É preciso levar em consideração a compreensão monástica de conversão. No século VI, São Bento escreveu em sua Regra sobre a importância de passar por aquilo que se chama de conversão de vida, uma renúncia ao passado a fim de se concentrar somente no que é de Deus. Isso inclui se afastar de todos aqueles que anteriormente consolaram ou obstruíram o candidato. Seu velho "eu" está agora morto, e o seu "eu" convertido já começou. Ao se converter, Clara estava se afastando do cativeiro do mundo, no qual ela acreditava incluir a sua família. Sua mãe, seus tios, seu antigo modo de vida, tudo estava no meio do caminho da sua conversão.
Às vezes, a linguagem das conversões monásticas pode ser exagerada. Tomás de Celano descreve o mundo que Clara deixou para trás como "a sordidez da Babilônia", uma descrição que seria absurda se aplicada ao seu confortável lar e à sua família aparentemente amorosa. Mas Tomás utiliza outra frase para descrever Clara fugindo às pressas no meio da noite, a partir de Hebreus 13: ela saiu para "fora do acampamento", escreveu ele, descrevendo Clara ao deixar o ambiente seguro e familiar pelo desconhecido. Ao longo das narrativas da conversão de Francisco e de Clara, quando os santos deixaram suas famílias para trás, eles são retratados como soldados indo lutar contra o desconhecido.
Imaginem, irmãos, se a sua irmã, ou imaginem, mães, se sua filha fugiu de casa e foi morar com um grupo de homens considerados pela maioria das pessoas como lunáticos. O que vocês fariam? Olhariam para a sua irmã ou filha fugitiva como bem encaminhada no seu caminho à santidade? É claro que não! Quando os homens da família de Clara foram ao encontro dela, ela se recusou a ouvir e não lhes permitiu que a retirassem. Virar as costas para seus pais terrenos era visto como necessário, se isso significava que sua identidade poderia ser plenamente realizada em Deus. Quando Clara chegou à Porciúncula naquela primeira noite, nas palavras de um biógrafo, ela "apresentou ao mundo a sua carta de divórcio", pois ela adotou o corte de cabelo, as roupas e os votos de uma mulher casada com Cristo.
Geralmente, imaginamos Clara e Francisco com pássaros, flores e coelhos ao seu redor, mas poderíamos muito bem ouvi-los como profetas que procuravam uma forma inteiramente diferente de viver. Eles acreditavam que a verdadeira liberdade que vem de uma falta de acessórios supera facilmente os efeitos negativos da conversão, como o fato de deixar a família para trás. Clara e Francisco queriam viver como eles acreditavam que Jesus pretendia que as pessoas vivessem, com vidas transformadas por uma reordenação do que significa ser família.
Imagine um grupo de pessoas que verdadeiramente seguem os ensinamentos de Jesus e você verá como os primeiros franciscanos viviam uns com os outros. As reivindicações das famílias biológicas – por casamentos, filhos, propriedades, heranças – não se aplicam mais. O pai e a mãe de cada um podem não ser escolhidos biologicamente, mas sim espiritualmente.
Nossa "supersentimentalização" das crianças e da infância hoje provavelmente obscurece a nossa capacidade de ver claramente a cena, mas, em março de 1212, aqueles que observavam Clara sabiam que ela estava dando um passo radical, mas necessário, escolhendo quem a sua família passaria a ser. Seríamos capazes de ver isso dessa forma hoje?
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