Estamos às portas de mais um grande evento de massa
da ICAR: as Missões Populares. Para algumas pessoas, é o momento de conquistar
almas para Cristo. Já, outras acreditam em uma grande cruzada contra o avanço
dos heréticos evangélicos. Mas há quem deseje, do fundo do coração, que essas
missões sejam populares de fato. Para essas pessoas, é momento de ir ao
encontro das irmãs e irmãos, independente de sua profissão de fé.
O discurso oficial da Igreja fala em conhecimento
das diversas realidades. Desculpem o meu ceticismo, mas isso cheira a censo.
Primeiro, porque a ICAR se organiza, ainda, de forma territorial. Ou seja, os
limites geográficos de uma determinada região fazem parte de (leia-se: “pertencem
a”?) uma certa comunidade/paróquia. Segundo, porque esse é o mesmo discurso do
governo para justificar a atuação do IBGE. E sabemos (não sabemos?) que essas
pesquisas têm a finalidade de mapear a população para, depois, entre outras
coisas, cobrar impostos.
A Bíblia diz que o censo é pecado. Mas ela não se
limita à pura e simples constatação. Sua preocupação é denunciar o mal por trás
da ação. Em 2Sm 24, a crítica a Davi é velada e faz com que o próprio Javé
incite o rei contra o povo (v. 1), fazendo-o arrepender-se depois (v. 10). Mas
Salomão não é poupado. Em 2Cr 2,16-17, diz-se abertamente que foram contados os
homens disponíveis para a guerra e a corveia (trabalho forçado para o rei).
Logo, o censo deveria ser uma vergonha para nós, cristãs e cristãos.
Quanto às cruzadas, basta-nos a História. Há quem
ainda defenda as “boas intenções” da Igreja. Mas qualquer uma, qualquer uma que
tenha o mínimo conhecimento dos Evangelhos sabe que a Boa nova de Jesus não
estava na ponta de uma espada. Aliás, quando um de seus discípulos resolveu utilizar
esse recurso, Jesus o repreendeu: “Quem
usa da espada, pela espada morrerá” (Mt 26,52). Óbvio que não veremos
espadas nas missões-cruzadas, mas o princípio ainda é o mesmo: destruir o
oponente.
Se querem ser populares, então que as missões
estejam mais de acordo com a Bíblia na ótica do pobre. Mostrar um Deus cujo
único objetivo é se dar a conhecer parece atitude de quem quer impor sua
religião, sua verdade. Javé quer mais! Ele se interessa, conhece a
realidade de seu povo (Ex 3,7) e desce para libertá-lo (Ex 3,8
– entenda-se: “vai ao seu encontro”,
“caminha com ele”). No Primeiro
Testamento, envia Moisés e os profetas. No Segundo, Ele mesmo encarna a
condição humana na Pessoa de Jesus. O chamado, isto é, a Missão não é
privilégio, não busca benefício próprio; antes, é a resposta divina ao clamor
de um povo.
Tal resposta não se dá de cima para baixo. Ir ao
encontro não é sinal de superioridade, mas igualdade. Ao ser questionado por um
especialista em leis sobre quem era o seu próximo, Jesus contou a história do
homem assaltado e resgatado por um samaritano (Lc 10,25-37). Ao final, Ele
inverteu a pergunta: “Quem foi o próximo da vítima?” O escriba não conseguia dizer
“samaritano” (havia, de fato, uma rixa entre estes e os judeus), mas reconheceu
que era aquele que havia praticado misericórdia (v.37). O superior escolhe quem
deve se aproximar dele, mas Cristo nos envia a sermos as próximas, a estarmos
próximos de quem realmente necessita, independente de religião, cor, sexo,
idade ou condição social.
E quem necessita de nós? De quem estamos mais próximos?
Nas missões populares, iremos às casas de nossos vizinhos. Alguns seguidores de
João Batista, quando convidados a seguir Jesus, quiseram saber onde Ele morava
(Jo 1,38). Exigência boba? Não! Prudência! Seguir um sonhador, que não vive a
realidade concreta de sua própria casa, é loucura. Jesus se mostrou uma pessoa
concreta, que vivia em uma casa concreta e passava o dia-a-dia no meio do povo.
Com certeza, Ele se interessava pela vida de seus vizinhos (de forma positiva,
construtiva, é claro), e isso bastou para que os discípulos de João acreditassem
n’Ele e o seguissem (v.39).
E, já que a ideia não é converter as pessoas, o que
devemos fazer nas casas? Bom, quem disse que a intenção não é converter? O
problema é que nós pensamos, hoje, o processo de conversão como uma adesão de
fé. Ora, é isso também... Mas não é só isso! Aliás, essa deve ser
a nossa última preocupação. Quando enviou seus discípulos, dois a dois (Lc
10,1-12), Jesus recomendou que levassem
somente o necessário, anunciassem a paz, permanecessem nas casas, comessem, bebessem,
curassem os doentes e anunciassem que o Reino está próximo. Pelo que vemos, não
disse nada sobre adesões ao cristianismo. Então, que raio de conversão é essa? É
a conversão dos costumes, dos gestos, de uma cultura enfim.
Mudar uma cultura não é fácil. Quando os discípulos
pediram que Jesus despedisse a multidão faminta, Ele os repreendeu: “Alimentem vocês mesmos o povo” (Mc
6,35-37a). E eles ficaram bravos: “Como
conseguiremos fazer isso sozinhos?” (v.37b – interpretação livre). Jesus,
então, ensinou o grande segredo: “Não
façam pelo povo; façam com o
povo. Organizem-nos. Façam-nos sentar (entenda-se: “que estejam em
condições de igualdade”), formando grupos
de 50 e de 100 (isto é, grupos pequenos).
Que cada grupo tenha autonomia, mas que ajam em rede, conectados, em verdadeira
comunhão.” (vv. 38-44 – novamente, versão livre). Moisés já havia tentado
isso, quando nomeou os juízes (Ex 18,13-27). Mas esse projeto igualitário foi
suplantado pela instituição da monarquia (1Sm 8). 300 anos depois da morte de Jesus,
o cristianismo também ficou submisso ao poder do império romano. O projeto de
vida em abundância para todas e para todos (Jo 10,10) é a utopia, a realização
plena do Reino, o projeto sonhado por Deus, mas o caminho para chegar até lá
depende de nós – e é longo, árduo e perigoso.
Mas não devemos desanimar. As missões populares,
portanto, devem ser o grande momento de reunir o povo, ser fermento na massa. Isto
é, que entendamos o ser missionária, ser missionário como ser agentes de
transformação, ajudando o povo a ser organizar em busca da terra prometida, ou
seja, da realização da vida plena, o grande sonho de Deus.
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