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sábado, 13 de dezembro de 2008

Francisco de Assis - visão em perspectiva


Márcio Toledo

Em certo sentido Francisco de Assis é um Santo muito atual, que penetrou na história do Ocidente e continua lançando desafios ao nosso tempo, apesar de ter vivido no século XIII. Suas idéias e atitudes são provocativas e renovam o espírito de inquietação na medida em que travamos um diálogo com o Poverello, através das fontes disponíveis. O seu carisma exerce um enorme fascínio e penetra nos mais variados meios, de tal forma que impressionam até o mais cético dos homens. Muitos o admiraram e o seguiram, superando as barreiras e os obstáculos do preconceito. Foi nesse espírito que, quando na primeira década do século XVII freqüentava a Universidade de Coimbra, Lucas Wading viu-se assediado por inúmeras cartas de condiscípulos que lhe manifestavam a sua estranheza e perguntavam porque sendo ele um homem de tanta capacidade, se sacrificava mantendo-se numa Ordem de ignorantes, fundada por um ignorante e impenetrável a tudo o que hoje se chama valor de cultura. Semelhantes insinuações, em vez de lhe quebrarem o ânimo ou diminuírem o entusiasmo pela vocação franciscana, criaram nele um novo ímpeto que o levou a mostrar aos homens do século, que conheceu e amou Francisco, acima destes julgamentos.
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Francisco nasceu num período de grande progresso no Ocidente Medieval, caracterizado por transformações demográficas e econômicas de um lado e, do outro, por inúmeras hesitações, contradições e ambiguidades. Os centros urbanos ganharam um novo impulso, uma renovada dinâmica e as Comunas se solidificaram como Instituição. As mudanças afetaram a vida das pessoas e também promoveram alterações na esfera religiosa. Como conseqüência, os leigos se destacaram pela crescente participação na vida religiosa, aumentando seu papel e sua presença nos domínios da igreja.
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A Igreja, por seu lado, procurou corresponder a estas inovações, através da Reforma Gregoriana. Com ela, procurou empreender uma forte "cruzada" para combater as distorções e restaurar as origens. Entretanto, os ajustes estipulados não promoveram o resultado desejado e a Igreja permaneceu descompassada em relação ao seu tempo, fracassando em algumas de suas metas.
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Francisco se sentiu tocado pelo Evangelho e teve sua vida transformada. A menoridade e o despojamento se constituíram elementos fundamentais no seu seguimento a Jesus. A experiência de fraternidade foi um dos pontos centrais da sua mística religiosa e da dos seus primeiros irmãos. Por isso, o Santo tinha toda a legitimidade para temer alguns perigos, que podiam não só desviá-los da própria vocação, mas também resfriar-lhes o coração.
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Contudo, estas barreiras que se levantaram contra Francisco não o impediram de tomar conhecimento dos textos decisivos para a sua vida evangélica. Ele tinha o sentimento de ser capaz de chegar diretamente ao evangelho. Sua cultura, diferente da dos clérigos ou dos monges, estava bem distante das sutilezas alegóricas. Francisco, diferentemente dos teólogos de seu tempo, não queria interpretar o texto sagrado, nem cometer heresia, almejava essencialmente uma apreensão direta, literal e realista do que estava contido nas Sagradas Escrituras.
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A carta é breve, mas importante. O texto conciso é típico do Santo. Sem dúvida, foi ele quem tomou a decisão. Apesar de não tratar das particularidades técnicas, pois isto ele deixou ao encargo de Antônio, traçou uma importante linha diretriz de espiritualidade, atestando que ele não rejeitava a teologia, ainda que isso tenha sido afirmado por alguns autores e continue sendo afirmado. A carta fala claramente o oposto a isto. Entretanto, ela alerta sobre um ponto que aliás se destaca nos escritos do Poverello: ele rejeita o saber como fim em si mesmo e não deseja que seus irmãos adquirem honra e fama perante os homens por meio do saber.
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Com relação a vida de pobreza, a sua opção resultou do desejo de ser livre para seguir (diferente de imitar) o Mestre. Como produto desta escolha, desse casamento, brotou o propósito de preparar os pobres para receber a Boa-Nova, cuja revelação é reservada aos humildes, que são os herdeiros privilegiados. O Poverello de Assis identificou no pobre o próprio Jesus Cristo, de quem é a imagem, inteiramente fundamentado na atenção de Cristo pelos pobres. A pobreza foi dignificada e entendida como um estado de mérito, oferecida aos pobres e a seus benfeitores. Entretanto, nos parece que, neste ponto, Francisco não podia ser tão inovador, tendo permanecido, deste modo, inserido dentro dos modelos antigos de assistência aos pobres na concepção tradicional. A inovação de Francisco foi se unir aos pobres, se tornando ele próprio um, afirmando a dignidade da pobreza, sem romper os laços com a estrutura da Igreja.
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O desejo de martírio e a viagem ao Oriente também acarretaram mudanças na trajetória de Francisco. A viagem teve uma conotação extremamente importante e inovadora: foi um misto de martírio, enquanto vontade de alcançá-lo, e uma prática missionária renovada. Francisco não tratou o Sultão como seu inimigo e, ao contrário, procurou com ele dialogar e divulgar a sua fé. Dialogando com o Sultão, o Poverello assinalou novos caminhos para a vida missionária da Igreja e, provavelmente, reformulou o seu próprio conjunto doutrinário: uma prática não hostil e cheia de firmeza e convicção de fé.

Assim sendo, podemos dizer que o Santo foi um homem de seu tempo: ele sofreu a influência da cultura cavalheiresca e sua devoção a pobreza teve coLinkntornos corteses. Por outro lado, Francisco se distanciou de seu tempo a medida que dava um tratamento diferenciado aos rejeitados pelos membros da Comuna e pela Igreja. Enquanto estes, apoiados na nova legislação canônica, excluíam leprosos, homossexuais e hereges (muçulmanos), Francisco proclamou a presença de Deus em todas as criaturas e se transformou no trovador de uma nova alegria.

Leiam na íntegra em http://www.ifcs.ufrj.br/~frazao/marcio.htm
Ilustração:
PORTINARI. São Francisco Pregando aos Pássaros. [1940].
Pintura mural a afresco
137 x 227cm

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