O CONTEXTO HISTÓRICO - FILOSÓFICO ONDE NASCE O PENSAMENTO
FRANCISCANO
Por Frei Marcelo Veronez, OFMConv
O pensamento franciscano de S. Boaventura teve repercussão forte em toda a alta Idade Média. Foi um dos pontos de referências para todos os grandes estudiosos da época. Quando Boaventura estudava e já começava a lecionar, o neoplatonismo ainda triunfava e daí se explica a sua posição entre os grandes mestres da escolástica. Ele também conheceu a nova corrente aristotélica, seguida por São Tomás de Aquino. Todavia, preferiu o caminho traçado por Platão e Agostinho. A busca de uma vida em união com Deus é uma constante no pensamento medieval franciscano. Neste intuito, muitos frades trilharam e ensinaram vias que nos levam ao Sumo Bem. O caminho que leva a Deus é traçado pelo próprio Deus, e revelado àqueles que batem a sua porta com a oração. Quem lho revela é sempre o mesmo Espírito Santo, por isso podemos observar muitas semelhanças entre as várias trilhas apresentadas. Uma delas a que seguiu S. Boaventura.
Para falarmos sobre a linha de pensamento do Santo faz-se necessário ir ao encontro dos fatores da história e da filosofia do século XII e XIII. Foi um dos tempos mais fortes de toda a história universal, foi o tempo das luzes e não das trevas como infelizmente afirmam alguns ignorantes historiadores. Tanto é prova disto que a Idade Média foi uma das fases mais ricas da cultura, artes e de toda a área acadêmica, os medievais juntaram um patrimônio cultural valorosíssimo para toda a humanidade. Poderíamos perguntar, o que seria de nosso tempo se não tivéssemos passado pela Idade Média? O que seria de todos os empreendimentos do tempo moderno? É de se pensar e de destruir os pré-conceitos construídos nas nossas poucas informações, para se defender uma idéia destas deve-se firmar em fortes argumentos, o que na maioria das vezes não passa de falácias ser argumentos e de falta de informação. Basta tomarmos as obras literárias deste tempo e descobriremos o valor de toda a Idade Média.1 Este valor é sem dúvida tudo aquilo que a Idade Média tirou da antigüidade clássica, isto é, a tradição bíblica e patrística. É o tempo dos grandes místicos, pais de todo patrimônio espiritual da Idade Média. É o tempo do valor estético, pois "os medievais falam continuamente da beleza de todos os seres. Se a história dessa época é cheia de sombras e contradições, a imagem do universo que transparece pelos escritos de seus teóricos é cheia de luz e otimismo".2 É dentro deste contexto que nos lançaremos agora a conhecer os caminhos por onde desabrochou a filosofia de São Boaventura.
2.1. Contexto histórico-filosófico do séculos XII e XIII
Este período como já ficou dito acima é o período designado por Idade Média. Estavam em auge as escolas e as traduções das obras do Corpus Aristotélicos e de tantas outras como Platão e alguns dos filósofos orientais. Faziam parte dessas escolas as catedrais, pois como sabemos as primeiras escolas nasceram ao lado das grandes catedrais como é o caso da Catedral de Notre Dame em Paris. Estas pequenas escolas iniciaram-se com estudos do quadrivio e de outros e depois tornaram-se grandes centros tradutores das obras gregas. Faziam parte também desses centros de estudos os monastérios, eles eram como grandes cidades feudais que moviam em torno de si tudo o que se refere a cultura, artes, musicas e muito mais pelos estudos. Foi o tempo do grande impulso da espiritualidade cisterciense sob o abadiado de Estevão Harding (1109- 1113) e depois por Bernardo de Claraval (1114) na Abadia de Claraval que foi a primeira abadia a ter contato com os textos hebraicos trazidos pelos rabinos, via Espanha. Entre estas abadia sobressai a Abadia de Cluny do beneditinos, grande centro místico do século XII. Neste mesmo período nascem os grupos eremitas organizados, como os Cartuxos e os Camaldulenses e outros bem mais livres chamados de Ordem de Grandmont. Era o nascimento dos grupos tipos por pauperísticos do século XII, onde se assemelharam os franciscanos.3 O século XII especificamente foi o período em que a Igreja passava por séria crise, os feudos invadiam o patrimônio espiritual da Igreja. Diante dessa densa massa surgiu grupos tipos como movimentos pauperísticos que na sua maioria defendiam a pobreza de Cristo e faziam a exemplo dele, a vida de intensa pobreza e peregrinação, estas opções geraram na Igreja muitos outro grupos, uns considerados heréticos outros pequenas ordens, como foi o caso da Ordem Franciscana.
Entre estes destacam-se os Valdenses e os Humilhados, pequenos grupos que logo no início se separam da Igreja devido a pratica intensa da pobreza, que era um escândalo para a época. Estes movimentos buscavam o abandono dos bens, andavam a pés descalços, usavam uma só túnica e faziam pregações itinerantes. Os Humilhados eram ainda mais sedentários, trabalhavam com suas próprias mãos, coisa que os Valdenses não faziam, pois viviam somente para pregação. Logo entraram em conflito com o clero, sendo considerados grupos heréticos.4 Se presume que na Idade Média havia uma psicose de heresia, é o caso de que muito desses movimentos eram autenticamente cristãos e devido esta psicose provocada pelo temor da perda de poder acabaram sendo considerados heréticos.
Nesta mesma época na cidade de Troyes é criada a escola do rabino Rashi, nas terras de Hugh de Champanha, esta escola tinha contatos com textos hebraicos, Talmud e Kabala, que provavelmente entraram na Europa via Espanha, com a vinda dos árabes. Mais tarde surge nesta mesma cidade os Cavaleiros Templários, ou pobres cavaleiros de Cristo, chamados posteriormente, cavaleiros do templo, ou de Jerusalém. Os Templários eram uma Ordem que nasceu na França em 1118. Sua aprovação definitiva pela Sé Apostólica se dá no Concílio de Troyes, em 1128. O estabelecimento desta Ordem na Europa acontece devido a grande influência de Bernardo de Claraval, principalmente auxiliando na aprovação da regra Teve como primeiro líder Hugh de Pauyens. Era uma ordem que tinha grande ligação com os cistercienses, especialmente S. Bernardo, que até chegou a escrever em 1132 um louvor aos cavaleiros, obra realmente digna de tanta excelência.5 Essa excelência é descrita por Bernardo por uma grande admiração que teve pelos cavaleiros, ou seja o voto que fizeram para a defesa dos cristãos.
"Conquistada pelos cristãos na primeira cruzada, em 1098, Jerusalém estava de novo cercada pelos árabes em 1116. Foi quando os nobres franceses Hugo de Payens e Geoffroi de Saint -Omer juraram, na Igreja do Santo Sepulcro viver em perpétua pobreza e defender os peregrinos que vinham a terra santa. Nascia a Ordem dos cavaleiros pobres de Cristo, renomeada em 1118, como ordem dos Templários"6
Esta ordem por muitos anos foi alvo de um profundo comércio de informações e também das possíveis entradas de livros orientais para as famosas escolas tradutoras, entre elas a escola do rabino que era da mesma cidade onde os Templários foram fundados.
"Os templários "... combatiam somente pelo interesse do Senhor, sem temor de incorrer em algum pecado pela morte de seus inimigos nem em perigo nenhum pela sua própria. Porque a morte que se dá ou recebe por amor de Jesus Cristo, muito mais de ser criminal, é digna de muita glória. Porque uma parte fomenta a ganância para com Jesus Cristo, e por outra é Jesus Cristo mesmo que adquire: porque este recebe com prazer a morte de seus inimigos em desagravo da sua e lhe é mais agradável, todavia, a de seu fiel soldado para com seu Senhor. Assim o soldado de Jesus Cristo mata seguro a seu inimigo e morre com maior seguridade". 7
A escola dos Tradutores de Toledo (1085) surgiu a partir da tomada da cidade de Toledo, os cristãos começaram aí um lento trabalho que rendeu frutos por todas as gerações futuras. Na Segunda metade do século XII o encontro entre uma vontade política, a do arcebispo francês de Toledo, Raimundo de Sauvetat, e várias gerações de tradutores excepcionais permitiram que os cristãos espanhóis assegurassem e rendessem os muçulmanos longe dos meios cristãos, gerando assim, uma vasto material traduzido do grego - árabe para o latim, especialmente do corpus filosófico grego - arábico. Os tradutores de Toledo exerciam sérios e valiosos estudos, tinham uma importante bibliotecas, daí resultaram as grandes traduções.
De todas estas influências árabes, muitas outras se estenderam por dentro da Europa, muitos pagãos que conseguiam entrar na França, traziam consigo toda a cultura e filosofia oriental, árabe ou judia. Em sua maioria com receios de serem massacrados pelos cristãos viviam numa vida de total clausura, e totalmente escondidos formando sociedades secretas. Passando as gerações muitos deles traziam consigo um cristianismo dos livros apócrifos e também das fontes primitivas, formando assim os grupos ou movimentos religiosos leigos que desejavam viver mais perfeitamente as origens e as tradições. Entre este sobressaíram-se os cátaros,8 que eram provenientes do grupo dos bogomilos, que impregnaram fortemente a sociedade medieval, mais especificamente da região que hoje é o sul da França, onde se falava a língua d'oc, (Terra d'oc). Os cátaros trabalhavam pelo advento de uma sociedade justa, guiados pelo amor ao próximo e à caridade. Desde a mais remota antiguidade a região do Languedoc era uma terra de passagem e de comércio; estava ligada a todos os países da bacia mediterrânea, gerando antes de tudo o comércio, que trazia riquezas e também cultura. No século XI esta região mantilha estreita relação com Toledo, sede da brilhante universidade dos tradutores que recebiam através de Languedoc alguns dos textos para as traduções, estas acabavam caindo nas mãos dos recém cátaros, que começavam a formar grupos de estudos sobre os textos. A partir do século XII o movimento cresceu e alcançou o apogeu, desenvolvendo ao redor de si cidades com estruturas totalmente cátaras. Este movimento se estendeu por toda a Europa principalmente devido a divulgação feita pelos trovadores, isto é, cantores ou poetas que transmitiam os ensinamentos dos cátaros principalmente ao grupo da plebe, dos pobres. A influência dos cátaros foi grande em toda a literatura, pintura e esculturas da época, algumas igrejas trazem em si marcas das antigas catacumbas cátaras bem como na cultura de todo o povo, especialmente nos cantos, que eram um dos meios mais eficientes para a conversão do povo simples. Segundo alguns historiadores esta influência chegou também aos movimentos pauperísticos da época, entre eles os franciscanos, porém bem antes disso Francisco trazia em si esta influencia. Segundo alguns sua mãe que era provençal teve contato com os populares trovadores que impregnaram na mãe uma paixão especial pelo canto que depois passou para o filho como afirma Tomás de Celano: "Vestido com uma roupa curta, ele que em outros tempos andara de escarlate, e cantando em francês..." (Primeira Vida de S. Francisco. 1Cel. 16).
Em meio a todos estes acontecimentos da Idade Média soma-se o da famosa Escola de São Vítor. Por volta do ano 1100 Guilherme de Champeaux, professor de Teologia na escola anexa à Catedral de Notre Dame, abandonou o mundo para dedicar-se inteiramente à contemplação, junto à capelinha semi abandonada de São Vítor nos arredores de Paris. Procurado mais tarde por pessoas desejosas de orientação espiritual, surgiu ali o mosteiro de São Vítor, sob a orientação deste sacerdote que, além de asceta, havia sido notável teólogo. Na fundação do mosteiro de São Vitor inevitavelmente haveria de existir uma escola de Teologia como parte integrante de sua espiritualidade. A direção e a organização iniciais da escola de Teologia anexa ao Mosteiro de São Vitor foram confiadas com grande acerto a Hugo de São Vítor, que para tanto parece ter retomado, aprofundando-os, os princípios deixados por Cassiodoro em suas Instituitiones. Neste sentido Hugo utilizou-se da Ciência Sagrada como parte integrante de uma forma de ascese que, conduzindo em primeiro lugar à contemplação, respondesse também profundamente ao preceito de ensinar deixado por Cristo como sendo a prova de amor que Ele deseja de nós.
A Escola de S. Vitor era uma abadia de cônegos ligados a abadia de Marselha. Como já ficou dito tinha como principal expoente Hugo que teve estreita amizade com S. Bernardo de Claraval, ambos de índole neoplatônica. Ele foi atraído pela fama do Mosteiro, e foi levado a tão obstinante influência. Em Ricardo de São Vítor, Hugo encontrou e formou um discípulo à sua altura; a obra teológica de Ricardo continua tão de perto a do próprio Hugo que pode-se considerar ambas praticamente como sendo uma só. Dentre outros que não citamos, ao fim dos últimos momentos no século XIII aparece Tomás Gallo, abade de Vercelli, interprete de Pseudo-Dionísio e mestre de Santo Antônio.
Santo Antônio nasceu em Lisboa (Portugal) em 1188 ou 1190 e morreu nas vizinhanças da cidade de Pádua, Itália, em 1231. Jovem, foi logo estudar no colégio dos cônegos e mais tarde ingressou na Ordem dos Cônegos Regulares e fez seus estudos filosóficos e teológicos em Coimbra, que tinha grandes influências com a escola de S. Vítor9, e onde também foi ordenado sacerdote. Apareceram naqueles anos, em Portugal, os primeiros frades franciscanos que abriram um convento. Estava ainda vivo São Francisco de Assis, que em seu anseio apostólico de converter os infiéis já enviara frades a Marrocos, alguns dos quais tinham sido martirizados pelos muçulmanos e cujos corpos foram levados para Portugal. Foi neste período que Antônio conheceu João Parente e desta forma ingressou na Ordem.
Não poderíamos deixar de falar da Escola de Chartres outro marco dos séculos XII e XIII. Sua fundação se deve antes de tudo a S. Fulberto, um dos pais da filosofia neoplatônica chartreana. A Escola de Chartres tinha uma total opção pela filosofia da antiguidade, traduzindo o que foi de mais importante para a época, como por exemplo Timeu e Fédon de Platão, duas obras que provocaram a revolução astronômica dos séculos XII e XIII.10
Por fim, este período é marcado pela abertura às inovações no campo acadêmico. As discussão entorno ao problema dos universais geravam o início da alta escolástica, e a abertura da Idade Moderna. Aqui nos limitamos, porém, o que deve ficar é que S. Boaventura viveu entre todos estes tremores medievais, bem como entre todas essa luzes e firmezas que puderam cada vez mais iluminar sua filosofia.
E é na perspectiva de iniciarmos as discussões sobre suas influências é que começamos agora a desvendar os caminhos tomados primeiramente conhecendo a intuição de Francisco de Assis frente a todo este momento histórico e filosófico dos séculos XII e XIII.
2.2. A Partir da Intuição de Francisco de Assis
São Francisco nasceu em Assis ( Itália), em 1181/1182 e morreu no dia 03 de outubro de 1226. É o fundador da Ordem dos Frades Menores ou como se chamava na época Ordo Minorum.
Francisco de Assis e intuição estão tão próximos um do outro que se observarmos bem de perto a vida do Santo, saberemos que na verdade ele intuía e buscava encontrar-se com a verdade absoluta e única. Ele é um dos grandes homens de todo tempo, e sua memória não pode deixar de ser lembrada por todos aqueles que um dia ouviram ou ouvem falar deste fabuloso homem de Assis. Ele foi pouco afeiçoado as letras mas um sábio quanto ao revolucionar todas as estruturas de sua época. De uma maneira toda especial ele voltava-se para o todo das essências parecendo as vezes ter conhecido intimamente o patrimônio filosófico dos grandes pais da filosofia cristã, seus ideais aproximavam-se de Agostinho e de todos os neoplatônicos.
Alguns de nós poderíamos questionar de onde lhe provém tão grande intuição e porque muitos dos grandes homens daquele século passaram a ver em Francisco um ideal de vida e de inspiração filosófica, o que na verdade existe de filosofia em uma homem considerado como o mais pequeninos de todos os homens? É neste intuito que traçaremos neste tópico um itinerário intuitivo de Francisco de Assis, onde S. Boaventura partiu para construir sua filosofia.
Homem simples e pouco afeito às letras,11 Francisco tinha diante de si um ideal, que em primeira instância poderíamos dizer era uma vida na mais restrita pobreza. Esta pobreza aparece como sendo uma predileção especial pela renúncia dos bens, mas poderíamos também dizer, para tudo o que viesse a tirar a liberdade do homem. Francisco procurou desde o primeiro momento renunciar a todos os poderes, autoridades que viessem a tirar o verdadeiro espírito de sua mais importante busca, o Sumo Bem, como expressava Platão e também posteriormente Francisco. A busca de Francisco tendia a exemplo dos grandes homens do cristianismo retirar-se para unir-se a contemplação. Foi através dela que ele intuiu muitas das geniais idéias que marcaram sua vida e a de todos os outros que lhe seguiram. Impulsionado pelos acontecimentos dos século XII, Francisco tendia como os demais movimentos da época pela vida eremítica e itinerante, esta lhe proporcionou a entrega total na busca das virtudes, esta busca provinha de um saber quase que filosófico, pois Francisco partia das coisas sensíveis para, por meio delas e nelas, como que por degraus, chegar ao autor das mesmas.
Na estiguimatização de S. Francisco de Assis no Monte Alverne, descobre, uma indicação simbólica do caminho pela qual a alma se eleva até Deus, e nele imerge pelo êxtase. Faz a experiência desta ascensão espiritual, assim “por aquelas seis asas podem com razão entender-se os seis arroubos de iluminações divinas, por meio dos quais, como por uma espécie de degraus ou trajetos, a alma se dispõe para entrar na paz, graças aos arrebatamentos extáticos da sabedoria cristã”12 e, descoberto uma vez este segredo maravilhoso, nutriu pelas coisas e pelo mundo em geral um grande amor cosmológico a ponto de entrar em sintonia com toda criatura, o universo é a morada de todos, daí seu imenso amor pelas criaturas. Poderíamos dizer que ele era um ecologista que ensinou aos homens o que é ser irmão de toda a criatura. A natureza para Francisco era como um espelho a refletir a perfeição do criador. Não se trata da parte de Francisco de um simples culto a natureza mais uma veneração da forma revelada de Deus.
Os escritos de S. Boaventura revelam a vida deste simples homem, não através de dados históricos mais muito mais por que a filosofia de S. Boaventura foi toda condicionada a experiência franciscana. Sua visão projetava uma filosofia e uma teologia marcada pelo espírito de Francisco, e sua vida, seus pensamentos foram a formulação científica de uma vida já franciscana. Sendo assim S. Boaventura é um discípulo autêntico de Francisco, pois dedicou toda a sua vida em captar o espírito do Seráfico Pai. Os mesmos sentimentos que expressava Francisco através dos cantos, os traduzia S. Boaventura em argumentos científicos. Isto o declara o próprio S. Boaventura do início ao fim de sua obra Itinerário.
“Aconteceu que, por altura do trigésimo terceiro aniversário do morte de S. Francisco, levado por impulso divino e desejo de procurar a paz do espírito, me afastei para o monte Alverne, como para um lugar tranqüilo. Estando ali, ao considerar várias elevações da mente para Deus, veio-me ao pensamento, entre outras coisas, o milagre que no mencionado lugar se deu com o mesmo S. Francisco, a saber, a visão de um serafim alado, em figura do crucifixo. Considerando-a, sem demora me pareceu que tal visão indicava o êxtase do mesmo Bem-aventurado pai na contemplação, e o caminho por que a ele se chega”.13
S. Boaventura compreendeu que algumas das intuições geniais de Francisco só poderiam sobreviver se institucionalizadas ou descritas em forma filosófica, era o tempo em que a autoridade era a referencia ao estudo nas grandes universidades e preocupado S. Boaventura coloca em forma de texto sua compreensão acerca das intuições primeiras de Francisco fazendo que estas chegassem a mão de todos os frades.
Na visão de S. Boaventura, Francisco contestou com sua vida e seu modo de ser, pensar e agir toda a sociedade da época, principalmente a Igreja. O evangelismo de Francisco revelou aos cristãos que a instituição devia servir e não ocultar o que ela traz em seu interior. Era uma crítica direta a vida monástica muito forte nos séculos XII e XIII. Uma vida que na maioria das vezes era corrompida, fechava para si a onipotência divina dirigida a todos, principalmente aos pobres. Um outro ponto é a recusa do poder da parte de Francisco, ele apresentou-se diante dos grandes do povo como aquele que chega de mãos vazias, desarmado, não procurando se impor, mas servir.
Deste então Francisco é considerado por Boaventura como o verdadeiro filósofo cristão, pois intui perfeitamente as vias da perfeição, do virtus, e de todos os mecanismos necessários para uma crítica de seu tempo. Francisco abre com a sua vida e a sua busca o caminho de muitos outros irmãos que serão chamados franciscanos e entre estes muitos se tornaram filósofos fazendo do franciscanismo uma escola importante no século XIII. Esta com certeza é a maior representação deste patrimônio espiritual e filosófico lançado de forma tão simples pelo Poverello de Assis.
É o que veremos a seguir.
2.3. - A Origem dos Estudos Filosóficos entre os Franciscanos.
A origem dos estudos filosóficos entre os franciscanos aconteceram exatamente no período dos grandes acontecimentos do século XII e XIII, e é por isso que a Ordem Franciscana não podia ficar de fora, pois neste período apareciam as primeiras universidades, principalmente em Paris e Oxford. "O movimento franciscano não podiam ficar alheios às efervescências sócio-eclesiais de seu tempo".14 Sabemos que S. Francisco não fundou uma Ordem de doutores e intelectuais, nem incutiu neles simplesmente uma aspiração acadêmica, apenas acolheu candidatos que a ele se achegavam, desejosos de viver como ele vivia. Desde então, as coisas correram deste modo, até o momento em que os frades ativessem à pregação da penitência ou à pregação da moral. É aí o momento em que aparece a condição indispensável do estudo da teologia para a pregação, pois até o momento havia uma concessão para os leigos e especialmente para os franciscanos para pregarem sem os estudos teológicos, no entanto é com o problema das heresias que passou a se exigir os estudos teológicos nos grupos de mendicantes e pregadores itinerantes.
Tendo os frades saído da pregação da penitência, partiram para a pregação das Escrituras Sagradas, aparece a indispensabilidade do estudo teológico para a pregação da Bíblia. Era entre outros o período em que o estudo das Escrituras começavam por receber um caráter de ciência sagrada, e sua indispensabilidade começava a abranger todas as correntes religiosas da época. Como se podia observar a ciência era necessária aos pregadores; era necessário que fossem versados nos dois testamentos e acostumados a se servir das escrituras, e esta era também uma preocupação dos concílios da época. Passando o estudo da teologia a ser obrigatório para todos os pregadores. Estas exigências se concretizaram na Ordem com a entrada de Santo Antônio, como primeiro mestre dos frades em Bolonha, tendo a aprovação do próprio Francisco para ensinar aos frades a Santa teologia:" Eu, Frei Francisco, saúdo a Frei Antônio, meu bispo.15 Gostaria muito que ensinasses aos irmãos a sagrada teologia, contando que nesse estudo não extingam o espírito da santa oração e da devoção, segundo está escrito na regra. Passar bem." 16
Até o momento os estudos referiam-se somente a teologia17, porém no inicio do século XIII com S. Boaventura, quando já eleito Ministro Geral, escreve o Commento alla Regola dizendo: "Juntamente com este capítulo resolvemos que os frades, segundo a vontade de S. Francisco, devem dedicar-se aos estudos; pois sem os estudos não é possível ensinar as Sagradas Letras"18 S. Boaventura está aqui a se referir ao estudo das artes em geral, pois neste mesmo período a filosofia era tida como uma disciplina anexa, ambas com caráter diferentes, mais unidas em um único fim.
O estudo da Filosofia em si entra na Ordem com a chegada dos letrados ou clérigos que na sua maioria eram mestres em Paris. É no ano 1228 com um convite do Ministro Provincial da Inglaterra que Roberto de Grosseteste começa ensinar aos frades em Oxford. E em 1235 com Alexandre de Hales os frades entram na Universidade de Paris recebendo sua primeira cátedra. A importância destes dois eventos é sem dúvida os fundamentos de todo o patrimônio filosófico da Ordem, Roberto de Grosseteste19 e Alexandre de Hales marcam a identidade destas duas escolas, uma matemática - científica e outra agostiniana - teológica com uma considerável crítica ao aristotelismo averroísta.
Todo o envolvimento da Ordem com os estudos deu-se principalmente devido a obediência da Ordem a Igreja, que foi a primeira a exigir as mudanças na formação dos religiosos. Estas exigências dentro da Ordem nem sempre foram bem esclarecidas, gerando muitos grupos contra os estudos, principalmente os filosóficos propostos pela escola de Paris e Oxford. Alguns frades do grupo dos espirituais traziam consigo sérias críticas a Paris, dizendo ter esta destruído Assis. "Dizia muitas vezes com fervor de espírito: Paris, Paris, tu destróis a Ordem de S. Francisco".20 Porém não é verdadeira esta afirmação, pois a contribuição dos estudos na Ordem deram muitos frutos a Igreja Romana, especialmente como interventores nas relações entre a Igreja Latina e a Oriental.
Por fim muitas foram as circunstâncias históricas que fizeram acontecer na Ordem esta virada radical para os estudos, porém não é nossa pretensão aqui mostrá-las detalhadamente, no entanto vale ressaltar a situação numérica de vinte mil frades gerava a preocupação de uma ocupação para todos eles, pois a maioria vivia na ociosidade. Além disso, o Concílio de Latrão IV fez insistentes pedidos para os religiosos diante da formação dos clérigos.
Notas:
1 Vale lembrar que a Idade Média não está somente ligada as relações da Igreja, tão mal vista na história, mais muitos mais pela humanidade toda, aí encontramos o valor indubitável de todo este tempo.
2 ECO, Umberto. Arte e beleza na estética medieval. Trad. Mário Sabino Filho. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1989, Cap. 3, p. 31.
3 MATURA, Thaddée. O Projeto Evangélico de Francisco de Assis. Trad. Ir. Ede Maria Valandro. Petrópolis: Vozes, 1979, p. 52.
4MOREIRA, Alberto da Silva. Herança Franciscana. Vozes / USP. Petrópolis: 1996. P. 82.
5 CLARAVAL, Bernardo. De la excelencia de la nueva milicia. Madri: BAC, 1969, Obras Completas de Bernardo de Claraval, Vol. II.
6 CALDEIRA, Jorge. A cruzada do descobrimento. Super Interessante, São Paulo, fevereiro de 1998. P. 40. - Esta pesquisa descreve a possibilidade da vinda dos Templários para o Brasil durante o período de colonização.
7 Op. Cit. CLARAVAL, Bernardo. De la excelencia de la nueva milicia. Cap. III. P. 857.
8 cf. LULIAN, Lucienne. Os cátaros e o catarismo. Trad. Antônio Danesi. São Paulo: IBRASA, 1993. Coleção Gnose, 235 p. Cátaros - do grego Katharos que significa puro.
9 Sobre os estudos de Santo Antônio e as influências vitorinas Cf. CAEIRO, F. da Gama. Santo Antônio de Lisboa. Lisboa (Port.): Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1985. Vol. II Estudos Gerais da Série Universitária.
10 A Escola de Chartres não teve grande repercussão sobre os filósofos franciscanos, seus pensadores são pouco citados. Sobre a Escola de Chartres ver: URBANOZ, Teofilo. História de la Filosofia. Madri (Esp.): BAC, 1986. Vol. II p. 426-470.
11CELANO, Tomás. Primeira vida de S. Francisco de Assis. Petrópolis: Vozes, 1991. Fontes Franciscanas, Parte Terceira n. 120. P. 268.
12 Id. Ibid. N. 3. P. 53
13 Op. Cit. BOAVENTURA, São. Itinerário da Mente para Deus. Cap. I, p. 165.
14 MOREIRA, Alberto da Silva. Herança Franciscana. Petrópolis: Vozes / USP. 1996. P. 96.
15 A palavra Bispo na Idade Média era dirigida a todos aqueles que tinham formação acadêmica de Teólogo.
16 Cf. ASSIS, Francisco. Carta a Santo Antônio. Petrópolis: Vozes, 1991. Fontes p. 75.
17 O estudo da Teologia entre os franciscanos era conhecido como Lectio Cursoria, era um estudo mais simples dos textos seletos da Bíblia. Este não requer um estudo aprofundado dos termos e outros.
18 Apud. BONAVENTURA, San. Expositio super Regulam Fratrum Minorum. In Opera Omina. VIII, 339. ( Trad. Própria)
19 Segundo R. W. Southan em Robert Grosseteste. Claredou Press Oxford – 1992, indica a possibilidade de terem existido dois Grosseteste na história: o primeiro seria o franciscano, que estudo afundo as ideías neoplatônicas e ensinou aos frades, o segund, seria o bispo de Lincon que traduzira Aristóteles aos quais se atribue alguns escritos posteriore, como é o caso deste Grosseteste que citamos acima. Na verdade teria a escola de Oxford adquirido esta característica científica- matemática com este segundo Grosseteste.
20 EGÍDIO, Beato. Sabedoria de um Simples. Trad. Ary E. Pintarelli. Petrópolis: Vozes, 1997. P. 149. - O Beato Egídio de Assis é considerado um dos primeiros companheiros de S. Francisco, vivia em eremitérios e fazia parte da primeira geração franciscana. Em relação a este texto, sabe-se que, talvez tenha sofrido em suas traduções muitas influências dos frades reconhecidos como do grupo dos espirituais.
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