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quinta-feira, 17 de fevereiro de 2011

Aquele Concílio paraíso de liberdade

in “Jesus” nº 2 de fevereiro de 2011.
Qual é o núcleo fundador da fé cristã? De que modo o crente pode responder aos hodiernos desafios do ateísmo e do laicismo, sem, no entanto, erguer muros e cercas? Qual é a relação entre religião e liberdade? O que pode fazer, no atual contexto social, o catolicismo italiano para tornar a sociedade mais equânime e mais justa? A estas e a outras perguntas procura responder o último livro de Raniero La Valle, Paradiso e libertá. L’uomo, quel Dio peccatore [Paraíso e liberdade. O homem, aquele Deus pecador] (Ponte alle Grazie, 2010, 230 pp., 16 euros).
O ensaio autobiográfico, intelectualmente honesto e de traços emotivamente intensos, permite ao leitor refletir sobre algumas das problemáticas sócio-culturais hoje mais escaldantes, mesmo em relação à atual crise da política.
Raniero La Valle é um dos maiores intelectuais da segunda metade do século vinte. Como diretor do cotidiano Avvenire, seguiu e narrou o Concílio Vaticano II. Em seguida, de 1976 a 1992, viveu uma intensa experiência política como parlamentar nas fileiras da Esquerda independente. Como jornalista ocupou-se com análises, serviços e reportagens sobre o Vietnã, Camboja, Palestina, El Salvador. Interessou-se pelo ecumenismo e pelo diálogo inter-religioso e pelos temas da justiça e da paz.
A entrevista é de Roberto Carnero e publicada pela revista mensal italiana Jesus, fevereiro de 2011. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis a entrevista.

Como o senhor sintetizaria o sentido e o percurso traçado pelo seu livro? Qual era seu principal intento quando decidiu escrevê-lo?

A pergunta que me atormentava e à qual eu queria dar uma resposta, era se nós (os homens, as mulheres) seríamos capazes de sair da crise histórica que põe em perigo a vida do mundo, ou se não pudéssemos fazer outra coisa senão esperar por um milagre ou uma salvação através de uma catástrofe, um apocalipse. É a pergunta escaldante que nos deixaram grandes espíritos do século vinte, de Martin Heidegger a Claudio Napoleoni. E a resposta é que sim, que podemos fazê-lo, porque “Deus tomou o homem pela mão ao seu conselho”, como diz o Sirácida [o Livro do Eclesiástico] e como o Sirácida foi recebido e traduzido pelo Concílio Vaticano II; e jamais Deus revogou os dons com os quais o homem foi criado, jamais o expulsou para longe de si; nem mesmo após a queda, como diz o Concílio, Deus abandonou o homem, mas até, “sem intermitência”, lhe deu os auxílios necessários para a salvação. O Paraíso é possível, e até já está aqui, no meio de nós. Evangelho contra Apocalipse.

Em que relação estão estas duas realidades ou conceitos, Paraíso e liberdade, na experiência do ser cristão?

A liberdade é a imagem de Deus no homem, o Paraíso é o homem que se torna esta imagem, neste mundo e no outro.

No livro o senhor realiza, com grande honestidade intelectual, um exame minucioso do seu modo de viver a fé, segundo o convite paulino de “dar a razão” daquilo em que se crê. Quais são os pontos da doutrina católica que lhe criam mais dificuldades do ponto de vista intelectual? Quais são, ao invés, aqueles com os quais se sente, por assim dizer, seguro?

Nenhum ponto da doutrina católica me causa problemas, ou mal-estar. Estou feliz pela fé definida pelos primeiros quatro Concílios, de Nicéia a Calcedônia, feliz de saber que Cristo é coeterno com o Pai, pré-existente a Adão, a Moisés, a Platão, que é o protótipo da nossa humanidade, que, com a encarnação, incorporou em si todo o gênero humano e que abraçou a cruz não para pagar uma dívida inexistente a uma divindade ofendida, mas por um inesgotável amor; sou feliz pelo novo anúncio, na linguagem e na cultura de nossa época, que desta fé realizou o Concílio Vaticano II.

Certamente ficaria escandalizado se ainda fosse ensinada a doutrina (que, no entanto, era somente uma das doutrinas que existiam na Igreja) segundo a qual as crianças mortas sem batismo seriam excluídas do abraço de Deus e não iriam ao Paraíso, ou a doutrina que fora da Igreja enquanto comunidade visível (de São Pedro à paróquia da última periferia do mundo) não haveria salvação, nem haveria luz de verdade, vestígios de Deus e presença do Espírito nas diversas religiões e culturas, ou se ainda ecoasse a prece que na liturgia da sexta-feira santa desprezava como deicidas os “pérfidos judeus. Mas essas doutrinas, que vinham de tradições de homens e não da Palavra de Deus, felizmente caíram.. Certamente ainda há muitas dores, mas no essencial estar na Igreja é uma festa.

Hoje é muito aceso o debate entre ateus e crentes. A uma estação de diálogo parece ter seguido uma de fortes contraposições. Se tivesse que dirigir-se a uma pessoa atéia e explicar-lhe em que consiste sua fé cristã, o que lhe diria? Que elementos sublinharia?

Não abrirei um debate entre fé e razão. Apontarei para a verdadeira diferença que torna homem o homem e o distingue de todos os outros animais, uma qualidade à qual os ateus modernos justamente se atêm muito. Esta diferença é a liberdade, o “livre arbítrio”, como dizia são Bernardo. E direi ao ateu que todos nós, homens do nosso tempo, recebemos a liberdade da história, arrancamo-la de príncipes e sacerdotes que no-la negavam, e na história devemos agora promovê-la e defendê-la. Mas, direi também que, na fé, nós cremos que esta é a conquista de uma coisa que já era nossa, que desde a origem fora impressa no homem por Deus e que, não obstante a existência do mal, esta liberdade jamais pode ser perdida e que precisamente nisto está a imagem de Deus no homem, está o específicamente0 humano, está sua divina laicidade. O iluminismo é uma alegria para os cristãos e Descartes disse que a livre vontade é “principalmente o que me faz conhecer que eu trago em mim a imagem e semelhança de Deus” Por isso escrevi Paraíso e liberdade: para dizer que o Paraíso é o lugar onde os homens chegam em liberdade.

O senhor vivenciou como testemunha e protagonista o período do Vaticano II. O que recorda daquele período?

Era um paraíso sentir-se então na Igreja, com todos os bispos que se confirmavam e confrontavam na fé, com os Papas que se sentiam subsidiários à Igreja e não sentiam a Igreja subsidiária ao papado, com a Igreja que não mais dizia coisas desagradáveis a ninguém, mas julgava com amor e esperava que um pouco mais de bem o fizessem todos; com o abraço com o qual ela aconchegava a si as outras Igrejas, as outras religiões, as outras histórias; com aquela reconciliação que recolocava a Igreja no mundo e dela fazia o sinal e o instrumento da unidade de toda a família humana, com a consolação das Escrituras.

Está de acordo com o fato, evidenciado por muitos analistas e também por diversos católicos, que hoje a Igreja em grande parte esqueceu o Concílio? Parece também ao senhor que esteja em andamento a tendência de “arquivar” aquela experiência?

Está hoje aberto na Igreja um conflito sobre o Concílio. Mas ele resiste e até, quanto mais é contestado, mais desvenda novas riquezas e manifesta um novo futuro.

O senhor sustenta que a questão do retorno à Missa em latim (isto é, à forma pré-conciliar do rito) é um sintoma de uma “prática de restauração”. O que fazer perante esta situação?

É preciso estabelecer sempre a coerência entre a Lex orandi e a Lex credendi. A prece, embora veneranda, não pode prevaricar sobre a fé. Até os salmos não podem ser rezados como os rezavam os judeus na época de Davi, do exílio ou do segundo templo.

Num livro precedente de sua autoria, Se isto é um Deus (publicado por Ponte alle Grazie em 2008), o senhor afirmava que, considerando o catolicismo italiano de hoje, lhe parecia que às vezes muitos católicos se esqueciam de ser, antes de tudo, cristãos. Por que isso acontece? De que modo se pode evitar que a religião, ao invés de favorecer a abertura e a comunicação, se torne uma armadura ou, pior ainda, uma arma identitária?

Se falamos de política, então o atual sistema político italiano, majoritário, bipolar, maniqueu, liderista, avesso às culturas, às ideologias, aos partidos, ignaro do bem comum e interessado somente no poder, tendente a dividir a Itália em duas partes forçosamente contrapostas e desencadeadas uma contra a outra, não permite uma presença significativa dos cristãos enquanto tais, a não ser como testemunhos pessoais e privados. As grandes tentativas de traduzir laicamente na política as mais altas inspirações cristãs, como aquelas realizadas por Sturzo, por Dossetti e outros católicos à Constituinte, de La Pira, de Moro, hoje não são sequer pensáveis.

Com o pluralismo político ou com a proporcional existia a possibilidade de uma ação coletiva e minorias confiáveis podiam chegar a exercer uma efetiva hegemonia – não de poder, mas de fidedignidade espiritual e cultural – e assim mudar as coisas para todos. Hoje o pluralismo é negado, as minorias não devem sequer existir, é melhor que estejam fora do Parlamento e da vida. São admitidas somente vocações majoritárias, partidos que crêem ser todo um povo, simplificações que reduzem todos a dever ser membros, - sem discernimento e sem mediações, - ou de um lado ou do outro. Naturalmente, é de se perguntar quanto desta situação não seja também responsabilidade dos próprios cristãos, mesmo daqueles de ontem, e da Igreja. Mas, sem dúvida, nesta situação a religião, que por sua natureza é inclusiva, unitária e universalmente acolhedora, não pode desempenhar nenhuma função.

A Igreja hierárquica pode iludir-se no reduto de suas reivindicações bioéticas, e assim ainda desempenhar um papel na política, mas, na realidade, embora qualquer retalho de relação com o poder permaneça, com a política não existe mais nenhuma relação. Esta é preclusa à Igreja, é negada aos cristãos que queiram agir como tais, como também é negada a qualquer outra minoria, ou família política, social e cultural que queira manter sua autonomia e servir ao bem comum com sua criatividade. Certamente, pelo fato de a presença dos cristãos na política ser significativa, a Igreja não deve nem esperar nem pretender que os mesmos funcionem como uma correia de transmissão, e não deveria se ofender se eles se declararem “adultos”. Mas, eu espero o seu retorno na tempestade da política, para acender alguns sinais do tempo que prometam a justiça e para cooperar no sentido de dar um novo início à democracia italiana.

Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=40726 acesso em 17 fev, 2011.

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