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segunda-feira, 12 de janeiro de 2009

A contribuição da teologia afroamericana e caribenha ao Fórum Mundial de Teologia e Libertação

A contribuição da teologia afroamericana e caribenha
ao Fórum Mundial de Teologia e Libertação.
Entrevista especial com Marcos Rodrigues da Silva


Com a chegada dos primeiros povos africanos ao continente, trazidos como mão-de-obra para o trabalho escravo, não apenas a sua realidade terrena sofreu uma grande transformação, mas também suas ideias de transcendência. Porém, unidos fortemente à sua identidade marcada pela presença comunitária e pela ecologia, pela terra e pela água, esses povos puderam manter-se vivos e, assim, conservar também suas fés. Compreender esse processo histórico e suas manifestações hoje é um desafio à teologia afroamericana e caribenha.

Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, o teólogo e mestre em Teologia Marcos Rodrigues da Silva, que irá participar do III Fórum Mundial de Teologia e Libertação nos dias 21 a 25 de janeiro em Belém do Pará, afirma que o afroamericano e caribenho “se reconhece profundamente dentro do instrumental da teologia”. A pluridimensionalidade que a Teologia da Libertação (TdL) oferece a partir da comunidade de fé possibilita-lhe, assim, ser um instrumento real de compreensão da identidade afroamericana e caribenha.

Marcos Rodrigues da Silva é bacharel em Teologia e mestre em Teologia Dogmática pela Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção (FTNSA), de São Paulo, cuja dissertação foi “Os sinais de uma eclesiologia negra no Brasil”. Atualmente, cursa doutorado na Universidade Técnica de Lisboa (UTL), em Portugal, cuja tese intitula-se “Terra Negra Brasil – O projeto de desenvolvimento sustentável de comunidades negras na luta pela terra”.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – Quais são as principais questões, críticas e desafios que o debate ecológico apresenta à teologia?

Marcos Rodrigues da Silva – Um dos desafios maiores é com relação à própria subsistência da vida humana. O risco é grande, como estamos percebendo durante todos estes últimos 30 anos, em que a atenção maior se volta para a questão ecológica. A vida humana está ameaçada. E, sendo mais parcial no meu olhar, a vida da população afroamericana e caribenha, que é o ponto em que eu mais me detenho com atenção, tem uma ameaça extremamente agravante, pelo fato de o povo negro, de toda a América e o Caribe, ter como base de sua identidade e de sua compreensão de vida, o mundo ecológico, o mundo do verde, da produção agrícola, das sementes, da água. E, ao afetar essas dimensões, afeta integralmente essa identidade étnica. E não estou falando apenas das tradições religiosas africanas (as religiões de Candomblé, Santerías cubanas e as de Umbanda), mas da identidade mesmo do ciclo de vida em que o povo negro sempre se estabeleceu, que é a terra, como mãe suprema, e a água, como elemento fundante da vida.

O segundo momento é que esse povo, estando num mundo urbano, junto com as demais etnias e grupos, é parceiro dessa famosa tragédia que é o domínio do cimento sobre a terra. E isso vai estagnando cada vez mais o acesso à vida, que é terra e água. Eu diria que são ameaças profundas, que às vezes passam despercebidas, porque, por meio dos diversos meios de deslocamento, nos esquecemos de olhar para esse lado, um lado primário da vida. Parece-me que, teologicamente, deveríamos prestar muita atenção nisso. A ecologia parece algo muito distante da teologia. Mas, pelo contrário, é algo que está intrínseco. E não há como dissociar. Em termos de racionalidade, tanto de princípios filosóficos, de leitura stricto sensu hermenêutica, não podemos deixar de lado esses elementos que são fundamentais.

IHU On-Line – Pode-se dizer que existe uma teologia afroamericana e caribenha própria ou ela é uma realidade que emerge como desdobramento da Teologia da Libertação?

Marcos Rodrigues da Silva – A Teologia da Libertação é um instrumental de análise epistemológica que possibilita descobrir essas identidades dentro do processo metodológico. Então, a teologia negra, afroamericana e caribenha, é chamada a dar essa ênfase maior ao continente e ao Caribe, porque são distintas as ações e os desdobramentos que se tem, no encontro com as pessoas, com a vida, com a comunidade. Por isso ela tem esse recorte.

Em segundo lugar, o instrumental da Teologia da Libertação tem como eixo central as pessoas, os empobrecidos e suas dinâmicas de vida e de conjugação das suas relações humanas e interétnicas. Então, o afroamericano e caribenho se reconhece, profundamente, dentro do instrumental da teologia e, com ela, a Teologia da Libertação, a sua identidade. Ou seja, a valorização da identidade, a valorização dos seus meios de interagir dentro do dado evangélico, ou do dado da revelação do transcendente, ou nas experiências das tradições orais. Essa pluridimensionalidade que a Teologia da Libertação oferece a partir da comunidade de fé possibilita que ela seja um instrumento real de compreensão da identidade afroamericana e caribenha. Esse é o grande valor – ou, como diria o nordestino, o grande mote – de conhecimento para se entender por que a Teologia da Libertação tem a ver com a teologia afroamericana e caribenha.

IHU On-Line – A teologia tem suas raízes em uma experiência religiosa. Como diz Gustavo Gutierrez, tem que beber de uma fonte. Quais são as fontes que a teologia afroamericana e caribenha bebe?

Marcos Rodrigues da Silva – A primeira fonte é a comunitária. A experiência do homem e da mulher negros na América Latina é, essencial e intrinsecamente, comunitária. E essa comunidade começa, por excelência, na família. Não há nenhum ambiente, no continente americano e no Caribe, em que não se veja um povo negro envolvido nas famílias. Isso vai desde o nascimento até a ancestralidade. Os ancestrais, os mais velhos, se compõem, se recompõem no contexto familiar.

O segundo é o elemento comunitário, que se favorece muito pelo dado evangélico, na ótica cristã, pelo dado das relações de ancestralidade nos terreiros, tanto da Santería, como do Candomblé, como dos movimentos dos barranquillos, nos palanques, como nos quilombolas e nas comunidades urbanas negras. Essa relação comunitária é uma identidade forte, grande.

E um terceiro ponto é a transmissão da matriarcalidade, como elemento forte. Aí tudo é uma relação de forças em que a mulher e o homem sempre interagem e constroem esse movimento forte que é a vida celebrativa. Então, esses três pontos me parecem ser fundantes para que possamos constituir uma identidade afroamericana e caribenha.

IHU On-Line – Como as tradições e os mitos religiosos de raiz africana se fazem presentes na nossa cultura hoje? Quais deles deveriam ter maior relevância para incentivar a sustentabilidade do planeta?

Marcos Rodrigues da Silva – Eu penso que o nosso legado na diáspora africana tem três grandes momentos. O povo Bantu, que é uma das maiores tradições que estão presentes na América e que se origina em toda a África austral. Eles depois são transferidos para cá como mão-de-obra para o movimento escravista. Mas esse povo se sedimenta aqui na diáspora, se reconstrói por meio da oralidade e da concepção comunitária.

O segundo é o movimento dos povos do Golfo do Beni, que são os nagô, jeje e quetu, que estão mais no nosso nordeste brasileiro e que se estabelecem como uma força grande das relações comunitárias, da oralidade e da tradição dos orixás, por excelência.

E o terceiro momento seria o do encontro e das relações com o cristianismo ocidental e de missão, que vai recriar várias novas concepções messiânicas, de oralidade, de santologia, de romarias, de rezendeiras, todos esses cultos das comunidades das irmandades, que são as novas concepções de comunidades religiosas que o povo negro se identifica a partir de uma leitura messiânica.

Eu creio que esses são os grandes pólos do levante forte de conceber o mundo diferenciado, de conceber as relações humanas diferenciadas, de conceber os direitos de cidadania diferenciados. Nesse contexto é que nascem princípios norteadores para uma concepção ecológica, para uma dimensão de sustentabilidade da vida. Eu creio que isso está tudo por acontecer na forma de sistematização. Na forma de compreensão, é o nascedouro da subsistência do povo negro na América e no Caribe. Sem dúvida nenhuma, o que faz alimentar a história de uma identidade afroamericana e caribenha é que o homem e a mulher negra têm isso intrinsecamente na sua vida, desde as suas bases de origem africanas. É de lá que vem e é aqui que se sustenta. Se isso não fosse o elemento gestor e gerador, com certeza essa etnia tinha sido dizimada. Pelo contrário, ela se sustenta, mantém os próprios europeus que vêm, alimenta-os de esperança e se fortalece como identidade. Isso é uma riqueza que, nesses séculos todos de escravismo, libertação e construção de um novo mundo que marca uma identidade muito salvífica, vai delineando uma concepção diferente do que é Deus, do que é um Jesus de Nazaré na história.

IHU On-Line – Existe alguma articulação em alguma rede latino-americana ou espaços para se aprofundar a teologia afroafricana e caribenha? Existem universidades em que já se estuda propriamente a teologia afroafricana e caribenha?

Marcos Rodrigues da Silva – É um tema, eu diria, difuso dentro da teologia oficial ou acadêmica, institucional. Ela não se apresenta ainda como um tema específico, que tem o seu dado epistemológico, o seu currículo mínimo já preestabelecido. Ainda está orgânico a uma epistemologia, a uma concepção eclesiológica, às vezes cristológica. Mas existe, sim, um debate já bastante construído nos últimos 25 anos, e a Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo é uma das precursoras dessa concepção. Ou seja, discutir a teologia na perspectiva antropológica, eclesiológica, cristológica e de gênero. Então, tematizadamente, a teologia está presente, sim, na reflexão.

Ela se transfere para a academia por meio de várias pessoas, que vão socializando com os seus alunados, com as pesquisas. E aí podemos, sim, reverter a um pensamento que nasce, por exemplo, nas academias teológicas de São Paulo – lá, ela está presente tematizadamente em teses de mestrado e doutorado –, no Rio de Janeiro, na Colômbia – nas universidades de Bogotá –, no Panamá, Cuba – principalmente nas escolas de Matanzas; o Instituto Teológico de Matanzas é um ponto de referência –, Costa Rica – no Instituto Teológico Americano –, nas organizações de fórum de pesquisa e de capacitação de laicato – como o Cesep [Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular], em São Paulo, o Departamento Ecumênico de Investigação, na Costa Rica, o Centro Cultural Afro-Equatoriano, no Equador, que é um dos locais que mais concentra instrumentos de pesquisa, com uma grande logística de pesquisa.

Em torno desses ambientes, tem-se muitas pessoas comprometidas. Qual é o grande desafio que temos ainda a perseguir e que estamos próximos de sistematizar? É estabelecer uma base hermenêutica bíblica para se oferecer aos institutos teológicos e às instituições que trabalham com esse diferencial, estabelecer um instrumento epistemológico de análise afroamericana e caribenha. E muito mais desafiador é ter um instrumental filosófico, um pensamento filosófico afroamericano e caribenho, que vai possibilitar trazer uma antropologia, uma base sociológica, para fortalecer uma concepção de gênero e raça. Enfim, apresentar uma série de temáticas que vêm diluídas hoje dentro da antropologia e da sociologia como um todo.

IHU On-Line – Qual a contribuição que a teologia afroamericana e caribenha traz para a espiritualidade cristã?

Marcos Rodrigues da Silva Aí há uma grande diversidade que se apresenta. Em um primeiro momento, creio que é o fato desse povo, que ao longo da história sempre teve momentos de libertação e de opressão, reencontrar na teologia e na evangelização cristã, anteriormente na missionariedade, a base do sofrimento e da alegria. Dois grandes momentos dialéticos: o sofrimento no Cristo crucificado, e a alegria e a experiência comunitária do Ressuscitado. São dois elementos teológicos que me parecem presentes e aparentemente ambíguos, mas que estão dentro do processo histórico do povo negro, que sempre foi de sofrimento pela exploração no mundo escravo, no mundo do trabalho, mas também a bendição pela alegria de se estar unidos em família, na festa e na vida comunitária.

Por outro lado, enquanto identidade latino-americana, é um povo que sempre viveu da alegria, da festa. Apesar de todas essas dimensões sociológicas e econômicas, é um povo que vive em festa. Sempre, nos fins de semana ou durante a semana, a casa de um bom homem ou mulher negros tem festa. A festa é uma característica tipicamente afroamericana e caribenha, seja pelo baile, pela dança do congo, pelo tambor da crioula, pelas rezendeiras, pelas romarias, todos grandes momentos de festa.

Isso nos mostra um cristianismo latino-americano e caribenho com identidade muito própria afroamericana. É essencial que possamos transportar essas identidades para uma liturgia, que é um ambiente bastante complexo e de um profundo debate intereclesial – como transformar a liturgia cristã em uma liturgia afroamericana e caribenha? Não apenas uma adaptação litúrgica, mas uma compreensão de que a corporalidade, por exemplo, é algo intrínseco ao homem negro e à mulher negra. A dança não é um estereótipo: é interioridade. O corpo não é uma dimensão da sexualidade: é uma dimensão da intensidade humana. Basicamente, hoje, a teologia feminista está sinalizando para isso.

IHU On-Line – Qual é a importância da teologia afro nos debates do Fórum de Teologia e Libertação? Pode esboçar alguns pontos que vão ser debatidos especialmente em sua conferência?

Marcos Rodrigues da Silva – Estou construindo um elenco de uma memorização de que não estamos construindo o novo: estamos recuperando e valorizando espaços históricos já constituídos. Nosso ponto de partida é que já temos temas balizadores para uma discussão de teologia afroamericana e caribenha. Temos bases e referências bibliográficas, produções históricas. Também, queremos produzir os grandes temas que estão nos desafiando neste momento do século XXI – a base ecológica, de sustentabilidade, de eclesiologia, da cristologia. Mas, fundamentalmente, para podermos reagir, propor e oferecer, é preciso ter uma hermenêutica e uma epistemologia afroamericanas, porque aí se tem o instrumental para todo o alunado das pós-graduações e da graduação. Assim como a Teologia da Libertação é o instrumento para nos apropriarmos para se fazer essa leitura, para pensar uma teologia afroamericana e caribenha é preciso também essa base hermenêutica, teológica e epistemológica.

Extraído de http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=19206 acesso em 12 Jan. 2009.

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