Deu na Revista IHU on-line:A pedido da IHU On-Line e do escritório da Fundação de Ética Mundial, organicamente inserido no Instituto Humanitas Unisinos – IHU, o teólogo alemão Hans Küng enviou o artigo a seguir, extraído do livro Credo: a profissão de fé apostólica explicada ao homem contemporâneo (Porto Alegre: Instituto Piaget, 1992), como uma contribuição para refletir o sentido da Páscoa no século XXI.
Teólogo católico, Küng vive desde 1967 em Tübingen, onde leciona na Universidade. Por suas posições firmes diante de Roma, sofreu duras represálias, que em 1979 culminaram na cassação de sua autorização canônica para lecionar Teologia em instituição superior católica. A partir desse fato, criou o Instituto de Pesquisas Ecumênicas, como unidade autônoma em relação à Faculdade de Teologia Católica. Em 1990, ao encerrar sua carreira na Universidade, Hans Küng lançou o Projeto de Ética Mundial. Recentemente, em setembro de 2005, o papa Bento XVI surpreendeu a opinião pública mundial ao receber Küng para uma longa conversa amigável, na residência de Castel Gandolfo. Também no Brasil, a obra de Küng Projeto de Ética Mundial. Uma moral ecumênica em vista da sobrevivência humana (São Paulo: Paulinas, 1992) foi marco fundador de uma discussão que, pela premência dos fatos, frutificou rapidamente e continua a angariar apoio. Seguiu-lhe a publicação de Uma ética global para a política e a economia mundiais (Petrópolis: Vozes, 1999). A obra mais recente de Hans Küng, traduzida para o português é O princípio de todas as coisas. Ciências Naturais e Religião (Petrópolis: Vozes, 2007). Sua última obra intitula-se Umstrittene Wahrheit. Erinnerungen (München-Zurich: Piper, 2007), traduzida em várias línguas. A tradução espanhola acaba de ser lançada.
Em visita ao Brasil no mês de outubro de 2007, Hans Küng esteve na Unisinos apresentando seu projeto de Ética Mundial. Na ocasião, a IHU On-Line dedicou uma revista especial sobre a temática, intitulada Projeto de Ética Mundial. Um debate. A edição número 240, de 22-10-2007, está disponível no sítio do IHU (www.unisinos.br/ihu).
Confira o artigo.
É claro que os testemunhos mais antigos e mais curtos do Novo Testamento não apresentam a ressurreição de Jesus como uma devolução da vida mundana – portanto, não estabelecem uma analogia com a devolução da vida pela mão dos profetas no Antigo Testamento. Não, do ponto de vista do horizonte de esperança apocalíptico-judaico trata-se nitidamente do enaltecimento do Nazareno assassinado e sepultado por Deus e para junto de Deus, para junto de um Deus que ele próprio chama “Abba”, Pai.
Afinal, o que significa “Auferweckung”, uma palavra que transmite uma imagem, que significa literalmente despertar do sono? Agora posso responder resumidamente à pergunta:
- Ressurreição não significa o regresso a esta vida espaço-temporal. A morte não é anulada (não se trata da animação de um cadáver). Pelo contrário, a morte é definitivamente superada. Trata-se da entrada numa vida totalmente diferente, imperecível, eterna, “celestial”. A ressurreição não é um “fato público”.
- Ressurreição não significa uma continuação desta vida espaço-temporal. O fato de se falar em “depois” da morte é enganador; a eternidade não é determinada por um antes nem por um depois temporais. Pelo contrário, significa uma nova vida na esfera de Deus, invisível, incompreensível, que rompe com as dimensões de espaço e tempo, simbolicamente designado por “Céu”.
- Ressurreição significa positivamente o seguinte: Jesus não morreu para dentro do Nada. Pelo contrário, morreu para dentro de uma realidade última e primeira, inconcebível, englobante. Foi recebido por essa realidade verdadeira a que chamamos Deus. O que espera o Homem ao encontrar o seu Eshaton, o fim da sua vida? Não o Nada, mas sim Tudo, isto é, Deus. O crente sabe desde então que a morte é a passagem para Deus, é a retirada para junto de Deus, nesse domínio que supera todas as ideias, que nenhum Homem alguma vez viu, alheio ao nosso toque, entendimento, reflexão e fantasia! A palavra mistério é bem empregue para descrever a ressurreição para a vida nova, porquanto se trata do domínio primordial de Deus.
Dito de outro modo, a fé dos discípulos é – tal como a morte de Jesus – um acontecimento histórico (apreensível por meios históricos); por sua vez, a ressurreição através de Deus para a vida eterna não é um acontecimento histórico, visível e imaginável, nem biológico. Todavia, trata-se de um acontecimento real na esfera de Deus. O que significa isto? O que significa “viver”? Um olhar para o quadro da ressurreição de Grünewald adverte-nos para o fato de o ressuscitado não ser meramente um outro ser puramente celestial, continua possuindo o corpo e a alma do homem Jesus de Nazaré, o crucificado. E a ressurreição não transforma este homem num fluido indeterminado, fundido com Deus e com o universo. Este homem permanece também na vida de Deus, o homem determinado, inconfundível que foi, porém, sem as limitações espaço-temporais da sua figura mundana! Daí a transição do seu rosto para pura luz em Grünewald. Segundo os testemunhos das escrituras a morte e a ressurreição não anulam a identidade da pessoa, mas preservam-na numa forma inimaginável, transformada, numa dimensão completamente diferente.
A consequência? Atualmente para nós, com formação científica, tem que se falar claramente. Para que a identidade da pessoa seja preservada, Deus não necessita dos restos físicos da existência mundana de Jesus. Estamos perante a ressurreição para uma forma de existência totalmente diferente. Talvez a possamos comparar com a existência das borboletas, que saem do casulo da lagarta. Tal como esse ser vivo deixa a velha forma de existência (“lagarta”) e aceita uma nova forma de existência inimaginável, liberta e leve (“borboleta”), assim podemos imaginar o processo de transformação de nós mesmos através de Deus. Uma imagem. Não estamos obrigados a qualquer tipo de ideias fisiológicas de ressurreição.
Afinal a ressurreição está ligada a quê? Não ao substrato constantemente a mudar ou aos elementos deste corpo particular, mas sim à identidade dessa pessoa inconfundível. O caráter físico da ressurreição não exige – nem outrora nem hoje – que o corpo morto seja reanimado. Pois, Deus ressuscita o Homem numa nova forma, inimaginável, como consta do paradoxo de Paulo: como “soma pneumatikón”, de “caráter físico-espiritual”. Com estas palavras, de fato, paradoxais, Paulo pretendia transmitir-nos simultaneamente as seguintes duas mensagens: continuidade – porque o “caráter físico” representa a identidade da pessoa até ao momento, que se desfaz, como se a história vivida e sofrida até ao momento se tivesse tornado irrelevante – e, simultaneamente, descontinuidade – porque o “caráter espiritual” não representa simplesmente a continuação ou a reanimação do antigo corpo, mas sim a nova dimensão, a dimensão do infinito, que depois da morte de tudo o que é finito se transforma, tem seu efeito.
Extraído de http://www.unisinos.br/ihuonline/index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23&task=detalhe&id=1543 acesso em 09 abr. 2009.
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