
FREI FERNANDO, VIDA, FÉ E POESIA by Frei Fernando,OFMConv. is licensed under a Creative Commons Atribuição-Uso Não-Comercial-Compartilhamento pela mesma Licença 2.5 Brasil License.
Talvez a mais clara e firme intervenção de Francisco sobre os estudos tenha acontecido por ocasião de uma assembléia de cerca de 5 mil frades em Assis (11.6.1223). Entre os frades, muitos deles notáveis por seu saber e grau de instrução, encontrava-se também o cardeal Hugolino, cardeal-referência ou protetor da Ordem e, pouco depois, Papa Gregório IX. Na ocasião, um grupo de frades, ao que tudo indica composto pelos aludidos doutos e por ministros provinciais, dirigiu-se ao cardeal Hugolino, rogando que intercedesse junto a Francisco a fim de que este concordasse em introduzir na Regra de vida elementos das normas de vida de São Bento, de Santo Agostinho, de São Bernardo.Ouvida a peroração e tomando o cardeal pela mão, Francisco dirigiu-se à multidão de frades reafirmando-lhes redondamente que "o Senhor convidou-me a seguir a vida da humildade e mostrou-me o caminho da simplicidade"; que este mesmo Senhor o queria qual "um novo louco no mundo". É por meio desta sabedoria que Ele nos quer conduzir, afirmava. Contraponto a supraproclamada simplicidade a possíveis pretensões de doutos, arremata: "Pela vossa ciência e sabedoria, Ele vos confundirá". Não é difícil imaginar a reação dos ouvintes(..).
Se, por um lado, como acima foi aludido, assinalamos a prevenção de Francisco em relação aos estudos, por outro, é evidente que esta prevenção não se refere ao estudo propriamente dito, mas sim, à postura dos frades em relação ao mesmo. Na verdade, era o modo como os frades poderiam conceber o estudo que estava diretamente ligado à limpidez, seja da escola de Francisco, ou seja, em última instância, da escola de Jesus Cristo. Por outro lado, embora Francisco "não tivesse tido nenhum estudo", tinha o bom senso do comerciante.
Foi este bom senso que o ajudou a buscar e a reter o essencial. Com efeito, iluminado pela luz eterna e através de assídua leitura, audição e memorização de textos bíblicos, "penetrava os segredos dos mistérios, e, onde ficava fora a ciência dos mestres, entrava seu afeto cheio de amor". Resumindo esta intuição do essencial, dizia Francisco, pelo final da vida, a um frade, que tinha aprendido tanta coisa na Bíblia que já lhe bastava meditar e recordar: já sei que o pobre Cristo foi crucificado. Desejava um conhecimento profundo, vale dizer, "da medula e não da casca, do conteúdo e não do invólucro, não das muitas coisas, mas daquele bem que é o grande, o maior, o estável".
Se Francisco, por um lado, exigia dos literatos, juristas, teólogos, pregadores e doutos em geral que, ao ingressar na Ordem, renunciassem à própria ciência para se apresentarem inteiramente disponíveis ao Crucificado, manifestava, por outro, o maior apreço aos mesmos doutos, bem como a outros sábios. E de se notar que em seus Escritos só apareça uma única vez o termo "teólogo". Mas aparece em sentido positivo: "a todos os teólogos e aos que nos ministram as santíssimas palavras divinas devemos honrar e venerar, como a quem nos ministra espírito e vida".
Finalmente, um texto expressivo para indicar a atitude de Francisco em relação aos estudos: a brevíssima carta, quase bilhete, dirigida a Santo Antônio: "Eu, Frei Francisco, saúdo a Frei Antônio, meu bispo. Gostaria muito que ensinasses aos irmãos a sagrada teologia, contanto que nesse estudo não extingas o espírito da santa oração e da devoção, segundo está escrito na Regra".
Aqui, Francisco manifesta sua satisfação, através da expressão: meu bispo dirigida a Santo Antônio e da outra: placet - me apraz, gosto, me alegro, aprovo. O motivo da satisfação de Francisco estaria no seguinte: em Santo Antônio, teria acontecido a admirável confluência do sábio e do teólogo, do santo e do homem de ciência, do ideal e de sua concatenação às exigências práticas da vida ao estudo, portanto. A cláusula condicionante contanto que está em perfeita sintonia com a ambigüidade ou tentação que Francisco percebia poder esconder-se no estudo ou no saber.
Portanto, do ponto de vista da sabedoria ou do "espírito do Senhor" ou da inspiração de Francisco não se trata de uma cláusula restritiva. Ela coloca, sim, o estudo que se deseja em relação à atitude do estudioso, em relação de servo da sabedoria, em outras palavras, em relação à promoção da vida. A mesma ressalva consta na Regra onde, com respeito ao trabalho (embora não especificado, se braçal ou intelectual), se estabelece a mesma ressalva.
Em suma, em relação à ciência e aos estudos, na função acima lembrada, podemos constatar o seguinte: Francisco os apoiou, seja acolhendo pessoas eruditas na fraternidade, seja acolhendo os serviços que estavam em condições de prestar (elaboração da Regra, funções administrativas da Ordem), seja reverenciando as pessoas doutas, seja alegrando-se pela teologia que Santo Antônio se dispôs ministrar em Bologna.
Não se portou, porém, como um incentivador ingênuo. Expressou prevenção e cautela, compreensíveis a partir da percepção que ele tinha da ambigüidade do uso da ciência e dos estudos. Ambigüidade, não pela ciência ou pelo estudo em si mesmos, mas por aqueles que neles estariam envolvidos.
Como lembramos, o próprio Francisco estudou, no sentido de se ter dedicado, de se ter consagrado durante toda vida a uma busca e a uma fruição do Amor. A própria Sagrada Escritura lhe forneceu os meios para conhecer, admirar e amar a ciência sagrada. Pressentia, porém, o risco que o estudo, que a busca do saber - também bíblico ou teológico-pastoral - poderia acobertar: ser utilizado como um umento de domínio, de orgulho, de poder, de distinção de classes, de discriminação social - poder que se torna cego em relação ao ideal de simplicidade, de pobreza, de fraternidade e que, enfim, o menospreza. Isto significa que Francisco, embora tivesse apreço pelo saber e por seus caminhos, relativizava tanto a um a outro em função da sabedoria do viver.
O fato de relativizar a importância de conhecimentos acadêmicos como instrumento essencial para a evangelização significa questionar a fundo algumas tendências eclesiais do tempo que consideravam a ciência como chave e arma para governar a Igreja, iluminar as inteligêcias e lutar contra os hereges. A postura de Francisco é questionadora e iluminadora ao mesmo tempo, tanto no âmbito secular como religioso, tanto para ontem para hoje.
Talvez hoje em dia se tenha até melhores condições para avaliar tanto os motivos de regozijo como de precaução de Francisco devido à magnitude de situações sociais e ecológicas de risco, frutos, não de um uso sábio do saber, mas do abuso do mesmo. Francisco navegava com liberdade nas águas das mediações: "ia direta, espontânea e vitalmente à realidade".
Portanto, estas alusões parecem demonstrar ou sugerir que Francisco foi um criador de cultura, foi à fonte e trouxe o eternamente novo e antigo. Por isso, descortina horizontes. A Escola Franciscana nele se inspira. Pensa e traduz na cultura de cada tempo e em sistema filosófico-teológico sua inspiração. A ele deve a existência.
Texto do livro "Herança Franciscana"; capítulo "Os franciscanos e a ciência", de Frei Elói Dionísio Piva, ofm
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/especiais/2010/mesdabiblia/10.php acesso em 23 ago. 2010.
Ilustração: Septem artes liberales from "Hortus deliciarum" of Herrad von Landsberg. ca. 1180. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Septem-artes-liberales.jpg acesso em 23 ago. 2010.
Por Frei Atílio Abati
Francisco parte do Evangelho, para reconstruir a vida, e parte da vida, para confrontar-se com o Evangelho. Esta opção e escolha não seria apenas viver o Evangelho, acolhê-lo em sua vida, mas também anunciá-lo ao seus irmãos.
Novamente, em seu Testamento, Francisco escreve: "E depois que o Senhor me deu irmãos, o Senhor mesmo me revelou que eu devia viver segundo a forma do Santo Evangelho" (Test 4,14).Francisco tinha clareza quanto à sua missão: o primeiro movimento é acolher a palavra de Deus, embeber-se dela, aprofundá-la na vida, confrontar-se com ela, para ser luz no caminhar e vigor no viver. E depois, levá-la e transmiti-la ao povo de Deus.
E assim, seu dinamismo missionário impele-o a ir ao encontro de todos os homens. Diante do envio e da missão, ele sente a paixão que tem pelo anúncio da Boa Nova.
Ele sente a vocação missionária a que Deus o chamou e sente-se feliz e realizado em ser o bom samaritano a difundir esta mensagem, não só aos leprosos, mas à humanidade toda.
Extraído do livro "Francisco, um encanto de Vida", Editora Vozes
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/especiais/2010/mesdabiblia/05.php acesso em 23 ago. 2010.
Ilustração: Evangelistar von Speyer, um 1220 ; Manuscript in the Badische Landesbibliothek, Karlsruhe, Germany ; Cod. Bruchsal 1, Bl. 1v ; Shows Christ in vesica shape surrounded by the "animal" symbols of the four evangelists. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Codex_Bruchsal_1_01v_cropped.jpg acesso em 23 ago. 2010.
Por Leonardo BoffO fascínio e o mistério da figura de S. Francisco reside em sua semelhança com o mistério e o fascínio de Jesus Cristo. Há tanto num quanto noutro algo de profundamente simples, transparente, nascivo, originário e convincente. Ambos constituem uma grande interrogação para todo homem verdadeiramente religioso. Ninguém pode subtrair-se ao Numinoso e Divino que se desprende de suas vidas. Evidentemente, para um cristão por maiores que sejam as semelhanças entre S. Francisco e Jesus Cristo nunca chegarão a esconder as infinitas diferenças que vigoram entre eles. Um é o Filho Unigênito e Eterno do Pai e o outro é, na expressão de S. Boaventura, um humilde repetidor de Jesus. '
Um constitui a realidade-fonte, outro a realidade-reflexo. São Francisco jamais quis seguir um caminho pessoal. Nunca buscou uma experiência nova. Propôs-se com todo empenho a imitar e a "seguir a doutrina e as pegadas de Cristo" ', o "totus Christus crucifixus et configuratus".' Nele há "uma deliberada renúncia a toda originalidade". * Jamais antes e depois de S. Francisco assistimos no Ocidente a um tão apaixonado amor a Cristo a ponto de tentar imitá-lo nos mínimos pormenores, na letra e no espírito. Queria venerar e reproduzir todos os aspectos da vida e do mistério de Cristo, não apenas os humanos, como se sói repetir.' Jamais alguém dentro do Cristianismo logrou assimilar Jesus Cristo em sua vida como S. Francisco a ponto de trazer no corpo os sinais da Paixão e na alma as arras do Reino de Deus. Com acerto resume S. Boaventura o sentido do impulso de S. Francisco: "saciava toda a alma no seu Cristo e se entregava todo, de corpo e de alma, somente a ele".
Extraído do livro "Nosso Irmão Francisco de Assis", da Editora Vozes
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/especiais/2010/mesdabiblia/04.php acesso em 23 ago. 2010.
Foto: Vitral da fachada principal da Igreja São Francisco, Porto Alegre, RS, Brasil / Eugenio Hansen, OFS. 2010. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Francisco-de-assis-vitral-porto-alegre-detalhe_.jpeg acesso em 23 ago. 2010.
Por N.G. Van Doornik
Francisco teve com o Evangelho uma intimidade difícil de se compreender. Amava o Evangelho, mas ele não teria sido Francisco, se seu amor não tivesse desejado possuir o próprio livro.A magnífica Bíblia da Idade Média, com os maravilhosos textos desenhados em elegantes letras, tinha para ele algo de sagrado. Já foi, de per si, um rito religioso, quando ele, com seus dois companheiros, entrou na pequena igreja de São Nicolau e lá abriu o livro sobre o altar. Manifesta-se aqui uma forma de respeito que, em nosso tempo, impregnado de obras tipográficas, se tomou impossível: o respeito pela palavra manuscrita.
Com isso, adquirem um sentido mais profundo certas ações aparentemente mágicas. Nas cartas que ditava, não permitia Francisco que se riscasse uma letra, mesmo que fosse um erro de ortografia. Recolhia com o mesmo respeito qualquer pedacinho de pergaminho que encontrava no chão.
Perguntaram-lhe, certa vez, por que tinha tanto cuidado até mesmo com obras de autores pagãos. A resposta tem um quê de surpreendente: "Porque nelas se encontram as letras que compõem o glorioso nome do Senhor". Por umas cinco vezes insiste ele, em suas cartas, em que se devem guardar respeitosamente as palavras do Evangelho, onde quer que sejam encontradas.
Francisco sentia o alcance psicológico desse simbolismo. "Devemos cuidar de tudo que encerra Sua Palavra sagrada. Assim ficamos profundamente compenetrados da sublimidade do nosso Criador e de nossa dependência em relação a Ele", escreverá mais tarde ao Capítulo de seus irmãos.
A verdadeira dificuldade de se compreender como Francisco lia a Bíblia, não se encontra na cultura medieval. O que é difícil compreender é o fato raro de a Bíblia ser lida aqui por um homem que era como ela o desejava. Ele não tinha necessidade dum comentário que a suavizasse. Com heróica abertura, Francisco aceitava o texto ao pé da letra, pois este já de há muito o havia empolgado. Talvez tenha ele, alguma vez, explicado a Bíblia de uma maneira por demais rigorosa - nunca, porém, branda demais.
Devemos perguntar se a concepção de Francisco a respeito da Bíblia ainda vale para nós. Em cada mudança religiosa na história, encontra-se o homem diante da pergunta: que é propriamente autêntico na Bíblia e que é que se conseguiu descobrir com o correr do tempo?
E em cada período são sempre os grandes cristãos que, da forma mais pura, reconhecem a autenticidade. Não se requer uma visão genial para se descobrir o que corrigir num texto ou apontar alguns cantos carcomidos numa estrutura eclesiástica antiquada.
Quando se trata, porém, de valores eternos, é absolutamente necessária uma visão de fé. Não é tão estranho que um homem como Francisco, que se afastara, por assim dizer, da própria cultura para viver o Evangelho até às últimas consequências - que este Francisco tenha descoberto algo que sobrepuja qualquer cultura.
As grandes personalidades não estão à frente de seu tempo, estão acima dele.
Extraído do livro "Francisco de Assis, Profeta de Nosso Tempo", Editora Vozes.
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/especiais/2010/mesdabiblia/03.php acesso em 23 ago. 2010.
Ilustração: Imago Christi cum quattuor evangelistae. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Tetramorph.jpg acesso em 23 ago. 2010.
Francisco entrou na intimidade do Evangelho e percebeu-o puro e sem retoques. Por isso, a Igreja o chamará de Homo totus Evangelicus, quer dizer, que "se evangelizou" na totalidade do ser e na radicalidade das exigências. E mostrou, ao mesmo tempo, que o Evangelho, no seu todo, é algo possível de ser traduzido em vida. O próprio Papa, Inocêndo III, observara que a norma de vida da primitiva comunidade era por demais árdua para compor um programa de vida, mas a tempo foi advertido que não poderia declará-la impossível, pois declararia impossível o Evangelho de Cristo.Para Francisco a afirmação do Papa significava a impossibilidade de seguir os passos de Nosso Senhor Jesus Cristo, pois vinham eles retraçados, concretamente, nas páginas do Evangelho. Esta concreteza com que percebia o Evangelho fazia com que Francisco a ele recorresse com a simplicidade e a confiança de quem recorre a um "diretor espiritual".
Com naturalidade, colocava os livros dos Evangelhos à sua frente e os abria, a esmo, encontrando exatamente a Palavra que lhe servia de resposta. Não argumentava, não discutia, não duvidava. Deus acabara de lhe falar. E feliz partia para executar as ordens que acabara de ler.
Assim fala Celano, na vida I (n° 92-93): que abrindo o Evangelho, pôs-se de joelhos e pediu a Deus que lhe revelasse qual a sua vontade. "Levantando-se, fez o sinal da cruz, tomou o livro do altar e o abriu com reverência e temor. A primeira coisa que deparou, ao abrir o livro, foi a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, no ponto em que anunciava as tribulações por que haveria de passar. Mas, para que ninguém pudesse suspeitar de que isso tivesse acontecido por acaso, abriu o livro mais duas vezes e o resultado foi o mesmo. Compreendeu, então, aquele homem cheio do espírito de Deus, que deveria entrar no reino de Deus depois de passar por muitas tribulações, muitas angústias e muitas lutas..."
Texto de Frei Hugo Baggio (extraído do livro "São Francisco Vida e Ideal, da Editora Vozes)
Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/especiais/2010/mesdabiblia/02.php acesso em 23 ago. 2010.
Muitos já ensinaram sobre a Lectio Divina, sua origem, seus passos, seus objetivos. Sobre o tema é fácil de encontrar na Internet, seja em português, seja em qualquer língua. Leia especialmente "Scala Claustralium (A Escada dos Monges)".
Mesmo assim, muitos ainda pedem explicações sobre essa antiquíssima prática. Tentarei então, em pausas, descrever aqui minha própria experiência na prática da Lectio.
Muitos traduzem "Lectio Divina" como "lição" ou "leitura de Deus", "leitura orante da Palavra". Eu a chamo de "leitura sob a inspiração do Espírito", uma vez que a Escritura é a própria voz do Espírito de Deus, e é do Espírito que deve brotar a nossa oração quotidiana (Cf. Rm 8, 26).
Devo chamar a atenção, como estudioso das Letras, que entendo a "leitura" não apenas como uma intelecção de textos escritos, mas como um processo, que começa na decifração dos códigos linguísticos, sejam eles escritos ou não, verbais ou não verbais, e termina na produção de outro texto que flui da mente e do coração através das nossas faculdades, seja da voz, da escrita ou qualquer outra forma de expressão.
A Lectio Divina é um processo. Como diria o monge Guigo, uma escada. Que leva, em quatro passos, da terra ao céu.
Partimos da premissa monástica de que a oração nasce da leitura assídua e diligente das Escrituras (Orígenes). A Palavra de Deus é a fonte por excelência da Lectio Divina. Dessa forma, a Liturgia das Horas, por ser composta basicamente de textos extraídos da Sagrada Escritura, além de conter, entre outros elementos, hinos, antífonas e escritos, lapidados na tradição viva da Igreja, é opção privilegiada para o exercício da Lectio Divina.
Nesse processo comunicativo, nos colocamos, primeiramente como receptores, o Espírito Santo como emissor da mensagem, e o principal meio para nos transmiti-la é a Escritura Sagrada.
Mas a voz de Deus ressoa em toda parte:
Para isso é necessário, antes de tudo, silêncio. Não apenas de ausência de palavras, mas de atenção e abandono, de renúncia de expectativas e (pré)conceitos, pois o Senhor irá falar. É a paz que ele vem anunciar (Sl 84, 9).
Podemos dizer que a Lectio Divina começa, antes, com o esforço de Deus para comunicar-se conosco. É ele quem nos atrai, quem faz o nosso coração arder como aquela sarça no monte Horeb, faz com que nos aproximemos, e, do meio da sarça, nos chama pelo nome: "Moisés, Moisés!" (Cf. Ex 3, 1-6). E nosso primeiro movimento é dizer: "Eis-me aqui! (Ex 3, 4). Quando, enfim, escutamos a voz de Deus, aí começa para nós a Lectio Divina.
À leitura, eu escuto, é que diz o monge Guigo II, explicando o primeiro degrau de sua escada. E, ao prestar atenção, trazemos o conhecimento de Deus para o nosso conhecimento. Decodificamos a mensagem divina para a linguagem humana. Acrescentamos informação do céu ao nosso entendimento terreno.
Através da Lectio, a razão busca sentidos para a mensagem, as explicações para as figuras de linguagem, a localização no espaço e no tempo, o contexto histórico, a intencionalidade discursiva. Colhemos palavras, frases, sentidos, como colhemos flores num jardim.
A "leitura", porém, é apenas o primeiro degrau, a porta de entrada para os outros passos da Lectio Divina.
"Maria conservava todas estas palavras, meditando-as no seu coração". (Lc 2,19)
Antes que Bruno, o Cartuxo, explicasse o sentido dos degraus, a Virgem já os praticava. Antes que os exegetas tentassem dar novo sentido ao logos e rhema de Platão, a mãe de Jesus já os demonstrava. Só conservando a Palavra e meditando-a no coração é possível trazer a Lei e os Profetas do seu contexto histórico para o atual; traduzir as metáforas para a linguagem corriqueira; transportar a teologia para a prática. É assim o Magnificat (Lc 1, 46-55): um canto baseado na escuta e meditação da Sagrada Escritura.
Na maioria das vezes, no entanto, nosso contato com Deus não passa do primeiro degrau, do mero entendimento. Temos uma enorme facilidade de esquecer as passagens da Escritura. Isto porque a mente tende a deletar aquilo que não damos serventia. Mesmo que sejam textos da Palavra de Deus.
Só escutar não basta. É preciso conservar a Palavra e meditá-la no coração.
Em vista disso, alguns escritores criaram uma espécie de sub-degrau para a Meditatio: a "Ruminatio" que é o trabalho de "conservar" a palavra na mente e no coração, através do retorno ao texto e até mesmo da memorização.
"Um Cristão deve meditar regularmente para não ser como os três primeiros terrenos da parábola do semeador". (CIC 2708).
Chegamos ao momento da oração.
Como é isso? Só no terceiro degrau oramos de fato?
Mas é o movimento natural da vida!
Quando nascemos, qual a primeira coisa que fazemos antes de soltar o choro? Resposta: inspiramos o ar. Claro! antes de nascer, o oxigênio que nos chegava era através do sangue da mãe. Ao nascer inspiramos pela primeira vez. Ao inspirar, o ar chega aos pulmões, e, através dos pulmões, leva oxigênio a todos os órgãos do corpo.
E então, descobrimos a necessidade de algo que ainda não compreendemos. Por não compreender, choramos. É a única coisa que sabemos fazer. Descobrimos depois que aquela necessidade que nos levou ao choro era de conforto, carinho, alimento...
A Lectio Divina é como esse processo do nascimento.
A leitura é a inspiração. A meditação é quando o oxigênio é espalhado pelo corpo. A oração é o choro.
No Ofício das Leituras de sexta-feira após as cinzas lemos que:
"como uma criança que, chorando, chama sua mãe, a alma deseja o leite divino, exprime seus próprios desejos pela oração e recebe dons superiores a tudo que é natural e visível." (Pseudo-Crisóstomo).
Porque não sabemos orar como convém, emitimos, após inspirar, gemidos inefáveis (Rm 8,26).
Esse gemidos são a expressão do coração que ouviu e mergulhou no mistério. E não importa o tipo, a forma ou a fórmula da expressão. O que importa agora é dizer a Deus...
"Como uma criança que a mãe consola, sereis consolados
em Jerusalém." (Is 66, 13)
Desde sempre entendi a"contemplatio" como "consolatio". Aqueles que choram pela oração são consolados na contemplação. Bem-aventurados estes (cf Mt 5,4).
A contemplação é a resposta à nossa oração. É a manifestação sensível da presença de Deus por meio do seu Espírito, que entra no cenário da nossa vida através da porta aberta pela oração. É obra daquele Paráclito prometido por Jesus, que haveria de ensinar toda a verdade (cf. Jo 16, 13), não da maneira racional, mas do suave consolo da fé.
Não devemos atribuir à palavra "contemplação" apenas o seu sentido mais usual que é de "olhar com atenção", mas o seu segundo sentido: "dar a; doar a; fazer mercê a". É Deus quem nos dá a sua graça, e nós somos "contemplados".
Penso que é esse o verdadeiro sentido que Guigo, o cartuxo, quis dar ao último degrau da sua escada, aquele que toca o céu, pois assim o descreve:
"E o Senhor, cujos olhos são fixos nos justos e cujos ouvidos estão não só atentos às suas preces" (cf. Sl 34, 16), mas presentes nelas, não espera a prece acabar. Pois, interrompendo o curso da oração, apressa-se a vir à alma que o deseja, banhado de orvalho da doçura celeste, ungido dos perfumes melhores.
Ele recria a alma fatigada, nutre a que tem fome, sacia a sua aridez, lhe faz esquecer tudo o que é terrestre, vivifica-a, mortificando-a por um admirável esquecimento de si mesma, e embriagando-a, sóbria a torna." (Scala Claustralium VII)
Assim, pela contemplação somos impregnados por esse orvalho do céu, de modo a buscarmos, mais vivamente, andar conforme a vontade daquele que veio em nós habitar.
"Não cesso de agradecer a Deus por vós, pela graça divina que vos foi dada em Jesus Cristo. Nele fostes ricamente CONTEMPLADOS com todos os dons, com os da palavra e os da ciência, tão solidamente foi confirmado em vós o testemunho de Cristo." (I Cor 1, 4-6)
Em verdade a Lectio Divina é um processo que envolve toda a nossa vida, desde o momento que aderimos à fé, até o último dia de nossa caminhada.
Foi assim para os discípulos de Jesus.
Eles, atendendo ao chamado do mestre, passaram a ouvi-lo, a saber o sentido das parábolas, a ver os seus atos, seus exemplos de vida. Fizeram uma verdadeira "leitura de Cristo".
Também, a exemplo da Mãe, conservavam tudo que tinham visto e ouvido, meditando em seus corações (cf. Lc 2, 19). Tanto que mesmo depois de muitas décadas lembravam de detalhes das palavras e das obras do Mestre e os contaram em seus Evangelhos.
Seguindo a Cristo pelos montes onde costumava orar e, inflamados pelo seu exemplo, sentiram o ardente desejo de também aprenderem a rezar, e pediram ao Senhor: "ensina-nos!" (Lc 11,1). Unânimes na oração (At 1, 14), permaneceram no Cenáculo juntamente com Maria, mãe de Jesus, até o dia de Pentecostes.
Tendo chegado o momento aguardado, subiram ao degrau da contemplação ao serem revestidos com os dons do Espírito Santo. Então compreenderam, pelo dom da fé, os sentidos da paixão e ressurreição do Senhor e a razão verdadeira do chamado: o anúncio do Evangelho a todos os povos. E, vivendo a vida de Cristo, sofrendo os mesmos ultrajes, açoites e martírios, foram dignos de serem chamados "Cristãos", desde Antioquia (At 11,26) até os dias de hoje.
Se do Senhor as palavras ouvirmos, se delas extrairmos o significado para nossa vida, se juntos com ele subirmos ao monte da oração, se sua vida tornar-se impregnada em nós a ponto de sermos "cristãos" de fato, não apenas em momentos determinados, mas em todo o tempo, então podemos dizer que somos discípulos de Jesus, e fazemos da nossa vida uma viva e verdadeira Lectio Divina.
Acesse: www.oratio.blogspot.com
*Leigo, casado, licenciado em Letras pela Universidade do Estado da Bahia - UNEB
Extraído de http://www.liturgiadashoras.org/artigos/lectiodivina.html acesso em 23 ago. 2010.