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sábado, 7 de agosto de 2010

Pobreza e dinheiro no franciscanismo das origens

Publicamos aqui alguns trechos da conferência proferida pelo historiador italiano Roberto Lambertini no centro de espiritualidade franciscana Oasi Gesù Bambino di Greccio, na Itália, por ocasião do encontro "Os franciscanos e o uso do dinheiro", organizado pelo Centro Cultural Aracoeli.

Lambertini é doutor em história pela Universidade de Bolonha e atual professor de história medieval na Università degli Studi di Macerata, na Itália. O artigo foi publicado no jornal L'Osservatore Romano, 28-07-2010. A tradução é de Moisés Sbardelotto.

Eis o texto.

Voltando o olhar aos testemunhos que se referem à relação entre pobreza e dinheiro nos primeiros anos de vida da fraternitas francescana, salta aos olhos que a atenção à questão da relação entre a escolha do frade menor e o dinheiro é notável e significativa.

Relendo o texto crítico da regra mais antiga que chegou até nós, recentemente reproposto com grande cuidado por Carlo Paolazzi, esse aspecto não pode não impressionar. Antes ainda de se chegar ao capítulo expressamente dedicado à possibilidade de receber dinheiro por parte dos freis, no capítulo II se proíbe que se aceite dinheiro diretamente ou por meio de intermediários por ocasião da entrada de qualquer um na "vida", enquanto se admite a possibilidade de receber qualquer outra coisa, em caso de necessidade, como acontece com os mais pobres.

No capítulo VII, se autoriza o recebimento de omnia necessaria como recompensa pelo trabalho prestado, mas não "pecúnia". O capítulo seguinte entra nos particulares, ordenando que não se leve consigo pecúnia ou dinheiro, que não sejam aceitos e que não se faça aceitar por nenhuma razão, senão pela necessidade manifesta dos freis doentes.

O preceito é justificado com a afirmação de que não se deve considerar que o dinheiro seja mais útil do que as pedras, enquanto a opinião contrária é resultado da sugestão do maligno. A insistência sobre esse ponto é significativa: a regra chega a afirmar que o dinheiro encontrado por acaso deve ser desprezado como o pó. O frei que contravenha a essa norma deve ser considerado falso, ladrão, bandido e é implicitamente comparado a Judas.

Mesmo pedindo esmola, os freis não devem aceitá-la sob a forma de dinheiro. Nem devem exigir ou fazer com que se peça dinheiro para as instituições assistenciais (hospitais, leprosários) junto aos quais prestam serviço. São, sim, autorizados a pedir esmola para os leprosos, mas sob a condição de que se "guardem muito do dinheiro".

Embora sejam mais sintéticas, as formulações da regra sucessiva, aprovada pelo Papa Honório III em 1223, excluem não só o dinheiro como forma de compensação pelo trabalho prestado, mas proíbem até de modo absoluto o uso do dinheiro, deixando que os ministros e administradores se ocupem – por meio de amigos espirituais externos à ordem – dos co-irmãos doentes.

Nota-se que aqueles que têm funções diretivas na ordem são carregados com maiores responsabilidades com relação à questão do uso da moeda, mas é confirmada, de qualquer forma, a clara exclusão do dinheiro dos bens admitidos para o sustento de quem escolhe a pobreza dos menores.

Como Giacomo Todeschini já bem evidenciou no seu livro "Ricchezza francescana", essa "recusa do dinheiro" é reconfirmada e até amplificada nas primeiras vidas de Francisco, reconhecido santo em 1228, a apenas dois anos da sua morte. Nas vidas de Francisco, as moedas são insistentemente colocadas ao lado não só do pó e das pedras, como na "Regula non bullata", mas também do esterco (particularmente o de burro), das moscas (pela sua inutilidade) e até das serpentes venenosas e do diabo, pelo caráter insidioso dos perigos que escondem.

Essa desconfiança franciscana com relação ao dinheiro tem tons e traços verdadeiramente peculiares, particularmente se for confrontada com o que encontramos nas fontes contemporâneas relativas a outra grande ordem mendicante, os freis dominicanos. Mesmo assumindo plenamente o conselho evangélico, segundo o qual os pregadores não devem levar dinheiro consigo durante as suas missões, os freis de Domingos não mostram uma semelhante sensibilidade negativa com relação ao dinheiro. O próprio Domingos de Caleruega, descrito como modelo de austeridade e de pobreza, maneja o dinheiro, e as constituições da ordem, surgidas ainda nos anos 30, recomendam que priores e provinciais administrem o dinheiro de comum acordo com os co-irmãos.

Não sem uma ponta de polêmica, o grande erudito e historiador dominicano Simon Tugwell observou que Domingos nunca sentiu "embaraço" com relação ao dinheiro, deixando entender que outros, especificamente Francisco e os seus seguidores, teriam sentido justamente uma "dificuldade de relação" com ele.

Com efeito, o impedimento normativo erigido por Francisco e pelos seus co-irmãos contra o uso do dinheiro foi muitas vezes relacionado com categorias psicológicas. Falou-se de "obsessão" e também de uma espécie de fetichismo – ao contrário, entende-se – com relação à fisicidade das moedas. O mercador "arrependido", "convertido", como Francisco – depois da escolha da pobreza radical – teria como que percebido que, do instrumento príncipe da atividade que havia abandonado, provinha uma espécie de fluido maléfico, ao ponto que até o contato físico com a moeda podia ser perigoso.

Intervindo recentemente em um encontro em Assis, "A economia dos conventos dos Frades Menores e dos Pregadores até a metade do século XIII", Horst Enzensberger falou de uma resistência "anarcoide" ao dinheiro, que se caracteriza pela inadequação aos seus tempos e pela enorme ingenuidade. Os termos adotados pelo professor alemão são duros, mas não poucos se perguntam se Enzensberger não tem razão ao considerar a proibição do uso do dinheiro como uma espécie de fixação neurótica de Francisco, destinado, pela sua própria natureza, a ser desatendida na práxis concreta da ordem dos menores.

Na verdade, os estudiosos mais atentos souberam dar respostas mais convincentes e interessantes. David Flood, destacando o aspecto social, sugeriu que os primeiros franciscanos viram no dinheiro o sinal e ao mesmo tempo o instrumento do poder aos quais os menores querem renunciar, para compartilhar o estado daqueles que são marginalizados da economia.

Em 2009, essa ideia foi retomada também por Michael Cusato, por ocasião de um encontro de estudo dos franciscanos norte-americanos, de recentíssima publicação, com o título "Poverty and Prosperity": para Cusato, a recusa de manejar moedas é o gesto simbólico de renúncia aos privilégios sociais injustos que Francisco havia desfrutado antes da sua conversão.

David Flood destacou também que, excluindo o dinheiro dos bens que podem ser obtidos como esmola, os franciscanos queriam fugir do risco de converter aquilo que era oferecido para as suas necessidades em aquisição de bens não necessários. Por sua vez, Giovanni Miccoli interpretou essa "drástica exclusão" do dinheiro como consciência do risco de acumulação por parte dos freis, um risco que se tornou particularmente forte a partir do momento da expansão da economia monetária.

Uma chave interpretativa posterior foi oferecida por Giacomo Todeschini, que com felicidade intitulou um dos capítulos do seu livro de "La scoperta dell'altrove" [A descoberta do outro lugar], decifrando a proibição do dinheiro por parte dos franciscanos como uma medida fundamental para poder atingir uma esfera de valor dos "bens do mundo" diferente, outra em relação àquela da economia monetária, em resumo uma dimensão existencial em que o dinheiro não mede as coisas.

Essa escolha permite que os franciscanos não só declarem, mas façam a experiência do fato de que as riquezas deste mundo têm um outro valor, misterioso, "não redutível a um valor de troca facilmente monetizável". Portanto, para Todeschini, a prática da pobreza não é só um exercício ascético, mas também um modo alternativo de "ir além" dos bens deste mundo.

Desse ponto de vista, a renúncia ao dinheiro, em vez de ser um elemento "rigorístico" posterior que torna – perdoem o jogo de palavras – "mais pobre" a tradicional pobreza monástica, torna-se um modo para se chegar a "encostar com a mão" aquela dimensão da vida humana para a qual os bens (hoje diríamos os recursos) têm um valor que não é redutível ao seu valor de troca.

O valor de troca, aquele pelo qual tudo é equiparável por meio do dinheiro, não tem a última palavra: o pão com o qual se saciam os pobres não pode ser posto na mesma escala dos arreios de luxo de um cavalo, ou – para fazer um paralelo atual – uma garrafa d'água não pode ser considerada só a centésima milésima parte de uma caminhonete de qualidade média.

Enfim, a radical renúncia franciscana ao dinheiro não é uma fuga romântica da realidade, mas sim o modo para alcançar uma realidade mais profunda, mais verdadeira, a única dentre outras que permite que se julgue de modo competente o modo de usar os bens deste mundo. Justamente por essa razão, Giacomo Todeschini escreveu mais de uma vez que os franciscanos que, com a sua escolha de pobreza revelam "um outro lugar" com relação à economia monetária, tornam-se conselheiros confiáveis para quem, como os leigos cristãos, continuam vivendo, ao contrário, no mercado.

Escolher a pobreza como liberdade do dinheiro, além de um gesto penitencial, torna-se um modo para adquirir um ponto de vista mais claro com relação àquilo que verdadeiramente tem valor entre os bens dos homens.

Para ler mais:

Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=35048 acesso em 7 ago. 2010.
Ilustração: Legend of St Francis : renunciation of Wordly Goods / Giotto di Bondone. Assis : Basílica de São Francisco de Assis, séc. XIV. Disponível em
http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Giotto_-_Legend_of_St_Francis_-_-05-_-_Renunciation_of_Wordly_Goods.jpg
acesso em 7 ago. 2010.

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