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quinta-feira, 19 de agosto de 2010

São Francisco de Assis, o 'poverello' ainda nos fala

"O jovem Francisco é verdadeiramente um de nós, bem semelhante a nós na superficialidade da vida e dos sonhos. Todavia, e precisamente por ter vivido esta estação da utopia, impregnada pelas fugas para frente dos desejos e das pretensões, é que torna Francisco tão amplamente humano."

A opinião é do teólogo italiano Bruno Forte, arcebispo de Chieti-Vasto, na Itália. O artigo foi publicado no jornal Il Sole-24 Ore, 15-08-2010. A tradução é de Benno Dischinger.

Eis o texto.
“Mesmo numa observação superficial aparece com evidência como, por diversos séculos em toda a Itália, nenhum homem tenha gozado de um amor e de um obséquio tão desmesurados como o modesto e humilde Francisco... A divina mensagem, tenra e bem-aventurada, que chegara à Terra sob a forma dele, não se extinguiu com sua morte. Ele havia espalhado a mãos cheias uma boa semente e aquela semente germinou, cresceu e floresceu”. Estas palavras de Hermann Hesse, o autor de Sidarta, de Narciso e Boca de Ouro e tantos outros textos célebres, além de uma deliciosa vida de Francisco de Assis escrita na juventude (1904), suscitam a pergunta sobre por que Francisco tenha deixado uma tão profunda marca no coração dos italianos e de tantas mulheres e homens de todas as latitudes e culturas.

A resposta de Hesse – de tom antes sentimental e romântico – contém um núcleo precioso de verdade: “Somente poucos (como Francisco), em virtude da profundidade e do ardor de seu íntimo, tem doado aos povos, como mensageiros e semeadores divinos, palavras e sentimentos de eternidade e daquele antiqüíssimo anelo humano... de modo que eles, quais astros bem-aventurados pairam ainda acima de nós no puro firmamento, dourados e sorridentes, benévolos guias ao peregrinar dos homens nas trevas”. Para Hermann Hesse Francisco encarna uma mensagem capaz de dar razões de vida e de esperança ao coração de todos. Também aos da Itália de hoje, sacudida por uma crise que, antes que econômica e política, é espiritual e moral.

Na tentativa de captar esta mensagem, motivando assim também minha escolha de São Francisco como “personagem que poderia resolver a crise do nosso país”, veio em minha ajuda um testemunho singular. Sobre a auto-estrada que liga Roma a Chieti, - entre os mais belos da Itália em termos de paisagens e cores, - mais ou menos na metade da planura do Fùcino, sobre uma colina que outrora se espelhava no lago, dominado pelo imponente castelo medieval, surge Celano, pátria do bem-aventurado Tomás, seguidor e primeiro biógrafo de São Francisco de Assis, que presumivelmente passou por Celano em torno de 1220. Na primeira Vida de São Francisco de Assis, escrita por solicitação de Gregório IX como “Legenda” oficial para a canonização do Santo e apresentada ao Papa aos 25 de fevereiro de 1229, Tomás narra com encantadora pujança a história de Francisco desde seus inícios. Impressiona, acima de tudo, a apresentação do período antecedente à conversão: “Vivia em Assis, no vale spoletano, um homem de nome Francisco. Dos pais recebeu desde a infância uma educação inadequada, inspirada nas vaidades do mundo. Imitando os seus exemplos, ele mesmo se tornou ainda mais leviano e vaidoso”.

O jovem Francisco é verdadeiramente um de nós, bem semelhante a nós na superficialidade da vida e dos sonhos. Todavia, e precisamente por ter vivido esta estação da utopia, impregnada pelas fugas para frente dos desejos e das pretensões, é que torna Francisco tão amplamente humano. É quanto exprime a fulgurante resposta de Mark Twain à pergunta sobre aonde teria querido ir após a morte: “Ao paraíso pelo clima, ao inferno pela companhia...”: como a dizer que os pecadores suscitam uma imediata simpatia porque os sentimos familiares a nós, embora não possa deixar de nos atrair a beleza do céu... Francisco fala-nos principalmente porque parte daquilo que nos acomete a todos: a nossa fragilidade, a lista mais ou menos longa dos nossos defeitos, dos quais alguns – certas ambições, vaidades, a busca da imagem ao preço da verdade, a dependência dos índices de aprazimento, superficialidade em manter a fé aos empenhos – nos parecem tão dramaticamente atuais!

Ocorreu, no entanto, na vida do jovem de Assis algo novo e imprevisto: Tomás de Celano no-lo narra com traços tenríssimos de uma leitura guiada pelos olhos da fé: “Mas a mão do Senhor pousou sobre ele e a destra do Altíssimo o transformou para que, por seu meio, os pecadores reencontrassem a esperança de reviver para a graça, e se tornasse para todos um exemplo de conversão a Deus”. Além destas poucas linhas, que já abrem uma fissura sobre o indeterminado futuro, os fatos tiveram uma cerrada consequencialidade: “Golpeado por longa enfermidade ele começou a modificar o seu mundo interior... ainda não de modo perfeito e real, porque ainda não estava livre dos laços da vaidade... Francisco ainda procurava subtrair-se da mão divina, acariciava pensamentos terrenos, ainda sonhava com grandes empreendimentos para a glória vã do mundo”.

A ocasião da mudança foi daquelas que solicitam principalmente as ambições e precisamente assim expõem às desilusões mais ardentes: “Um cavaleiro de Assis estava então organizando preparativos militares contra as Púlias... Sabendo disso, Francisco tratou de alistar-se... Mas, na manhã em que devia partir, intuiu que sua escolha era errônea com respeito ao projeto que Deus tinha para ele”. Francisco renuncia à expedição e escolhe conformar sua vontade à vontade divina: “Afasta-se um pouco do tumulto do mundo, e procura guardar Jesus Cristo na intimidade do coração... Apronta um cavalo, monta na sela e, levando consigo os tecidos de escarlate, parte veloz para Foligno. Vende ali toda a mercadoria e com um golpe de sorte também o cavalo!”.

É o “não” ao passado. Todavia, ainda não lhe é claro a quê deverá dizer o seu “sim”. “No caminho do retorno, livre de todo peso, vai pensando na obra à qual poderia destinar aquele dinheiro... Aproximando-se de Assis, cruza com uma igreja muito antiga, fabricada á beira da estrada e dedicada a São Damião, e que está em ruínas... Vendo-a naquela miseranda condição, sente apertar-lhe o coração. Encontrando ali um pobre sacerdote, com grande fé lhe beija as mãos consagradas e lhe oferece o dinheiro, permanecendo ali a viver com ele”.

O que ocorreu no interior do coração não pode deixar de manifestar-se no exterior: prepara-se o desafio mais duro, a incompreensão e o juízo dos seus. “Seu pai toma conhecimento que ele morava naquele lugar e vivia daquela maneira. Profundamente amargurado, reuniu vizinhos e amigos e correu a prendê-lo; aprisionou-o numa fossa que ficava sob a casa e onde ele permaneceu por um mês inteiro... Francisco, com quentes lágrimas implorava a Deus que o libertasse... Negócios urgentes obrigaram o pai a ausentar-se por um tempo da casa... Então a mãe, permanecendo sozinha com ele e desaprovando o método do marido, falou com ternura ao filho; mas, deu-se conta que ninguém poderia dissuadi-lo de sua escolha. E o amor materno foi mais forte do que ela própria: soltou as amarras deixando-o em liberdade”.

Emerge aqui uma constante na vida de Francisco: o papel da mulher em sua existência. Primeiro a Mãe, tão terna quanto capaz de entender. Depois, Clara, irmã no amor por Cristo e discípula fidelíssima. E sempre a Mãe de Deus, custode do seu coração. “Entrementes o pai retorna à casa e, visto toda vã tentativa para demovê-lo do novo caminho, direciona seu interesse no sentido de fazer-se restituir o dinheiro... Então, impôs ao filho segui-lo até o bispo da cidade, a fim de que fizesse ante o prelado a renúncia e a restituição completa de quanto possuía. Francisco não hesita por nenhum motivo: sem dizer ou esperar palavras, tira suas vestes e as lança entre os braços de seu pai, permanecendo nu diante de todos”. Revela-se aqui o traço que torna Francisco irmão universal: a renúncia a toda posse e a todo poder, com seu ser nu e indefeso. Não se trata apenas de uma escolha de sobriedade, embora tão importante e necessária, então como hoje: é uma lógica que parece subversiva com respeito aos arrivismos e às avidezes deste mundo. “Não é a “audiência” que conta, nem o sucesso ou o dinheiro, mas a nua verdade daquilo que somos diante de Deus e para os outros! E é precisamente esta liberdade do essencial que o aproxima a todos e o torna inquietante para todos!

No período em que permanece em São Damião, Francisco reza intensamente. O Crucifixo que está naquela igreja lhe fala: “Vai e arruma a minha casa”. Num primeiro momento, Francisco pensa dever reparar a igrejinha na qual se encontra. Entende, depois, que Jesus se referia à Igreja toda inteira, a qual atravessava um período marcado por mundanismo e provas. Reconduzir a Igreja aos ensinamentos do Evangelho, libertá-la da sedução das riquezas e do poder, reaproximá-la dos pobres: esta é a missão da qual se sente investido.

Começa sua nova vida: “Coloca-se entre os leprosos e vive com eles para servi-los em toda necessidade por amor de Deus. Lava-lhes os corpos e cura suas chagas... A vista dos leprosos lhe fora antes tão insuportável, que mal enxergava de longe os seus redutos, tapava o nariz. Mas, eis quanto ocorreu: na época em que já havia começado, por graça e virtude do Altíssimo, a ter pensamentos santos e salutares: enquanto ainda vivia no mundo, um dia chegou diante dele um leproso e ele fez violência a si mesmo, aproximou-se dele e o beijou”. Seu modo de viver a serviço de Deus começou a fascinar os jovens de Assis, a ponto de vários deles o seguirem para servir o Senhor.

Em suas relações com os outros, Francisco segue uma regra precisa: “Quem não ama um só homem sobre a terra a ponto de perdoar-lhe tudo, não ama Deus”. Precisamente assim começa a incomodar: “Os poderosos de Assis viram sua cidadezinha esvaziada por via de Francisco e, num momento em que ele e seus coirmãos estavam em giro pela coleta de esmolas, alguns homens de Assis saquearam a igreja de São Damião matando um pobrezinho que se abrigava naquele lugar. Ao retornar, Francisco foi sacudido por profunda dor, a ponto de pensar que devia ir ao Papa em pessoa para perguntar se o caminho que havia iniciado para seguir o Cristo seria errado. Do encontro com o Papa, não foi Francisco que saiu com conselhos e admoestações, mas foram todos, o Papa Inocêncio III incluído, que se sentiram humilhados pela pobreza e obediência desse homem. A partir desse momento toda a Igreja foi renovada: existia finalmente alguém que reconduziria os pobres a Cristo”.

Francisco entra na escola de Jesus Crucificado e aprende humildade. Também nisto a provocação que ele lança ao nosso presente é escaldante: “Um frade pergunta a Francisco: ‘Padre, o que pensas de ti mesmo? ’ e ele responde: ‘Parece-me que sou o maior pecador, porque se Deus tivesse usado de tanta misericórdia com qualquer celerado, ele seria dez vezes melhor do que eu’. O despojamento de si há de caracterizar sempre mais o seu caminho: na Vida segunda de São Francisco, que Tomás de Celano estende entre 1246/1247, para corresponder à injunção do Capítulo geral de Gênova “de descrever os fatos e até as palavras de Francisco, este aspecto emerge de modo impressionante. “O ardor do desejo o arrebatava em Deus e um terno sentimento de compaixão o transformava Naquele que quis ser crucificado. Certa manhã, enquanto rezava no flanco da montanha, vê a figura como de um serafim, com seis asas tão luminosas quanto incandescentes, descer da sublimidade dos céus: o mesmo, com rapidíssimo vôo chegou junto ao homem de Deus e então apareceu a efígie de um homem crucificado, que tinha mãos e pés estendidos e pregados sobre a cruz... Vê-lo pregado na cruz lhe traspassava a alma. O amigo de Cristo estava para ser transformado inteiramente no retrato visível de Cristo Jesus crucificado... Assim o verdadeiro amor de Cristo havia transformado o amante na própria imagem do Amado”.

Os olhos de Francisco se fecharam rapidamente à luz do mundo: mas a luz da Sua fé e do Seu amor humilde continuará a resplandecer. Sua fuga não foi uma fuga do mundo. Se não tivesse amado profundamente esta terra, não teria composto o Cântico das criaturas. Sua espiritualidade é também uma espiritualidade de respeito e de amor do criado. Tudo em Francisco foi motivado por ter compreendido qual é a pérola preciosa a ser procurada a todo custo: sobriedade, pobreza, terníssima caridade, humildade, respeito por toda e qualquer criatura e por todo o criado são expressões deste amor. E não é disso que necessita a Itália de hoje, como a do seu tempo, e o mundo inteiro com ela? “Quando, enfim, se cumpriram nele todos os mistérios, aquela alma santíssima, desvinculada do corpo, foi submersa no abismo da claridade divina e o homem bem-aventurado adormeceu no Senhor. Um dos seus confrades e discípulos viu aquela alma bem-aventurada, na forma de uma estrela fulgentíssima, elevar-se sobre uma cândida nuvenzinha acima de muitas águas e penetrar diretamente no céu: nitidíssima pelo candor de sua excelsa santidade e cumulada de sabedoria celestial e de graça, pelas quais o santo mereceu entrar no lugar da luz e da paz, onde com Cristo repousa sem fim”. E ele fala a quem quiser escutá-lo...

A vida

João Francisco Bernardone nasceu em 1182, filho de um mercador de tecidos e de uma nobre senhora provençal. Instruído em latim, francês e na língua provençal, é um jovem estouvado e mundano. Participa da guerra entre Assis e Perúgia; é prisioneiro por um ano e sofre de uma grave enfermidade que o conduz a mudar de vida. Tendo retornado a Assis em 1205, se dedica a obras de caridade entre os leprosos e se empenha na restauração de prédios de culto, após uma visão de São Damião de Assis que lhe ordena recuperar a igreja a ele dedicada. O pai de Francisco, irritado pelas modificações na vida do filho, o deserda. Francisco se despoja de suas ricas vestimentas diante do bispo de Assis, árbitro da controvérsia. Dedica os três anos subseqüentes ao cuidado dos pobres nos bosques do monte Subásio. Na capela de Santa Maria dos Anjos, em 1208, certo dia, durante a Missa, recebe o convite a sair pelo mundo e a privar-se de tudo para fazer o bem. Francisco inicia assim sua pregação, agrupando em torno de si doze seguidores que se tornam os primeiros confrades de sua Ordem: sua primeira sede é a igrejinha da Porciúncula.

Os franciscanos

Em 1210 a Ordem é reconhecida pelo papa Inocêncio III. Em 1212 Clara de Assis toma o hábito monástico, instituindo a segunda Ordem franciscana, dita das Clarissas. Em 1212, Francisco parte para a Terra Santa, mas um naufrágio o constringe a retornar, e outros problemas o impedem de difundir sua obra missionária na Espanha. Em 1219 se dirige ao Egito, onde prega diante do Sultão, sem conseguir convertê-lo. Depois se dirige à Terra Santa, ali permanecendo até 1220. Em seu retorno encontra dissenso entre os frades e se demite do cargo de superior, dedicando-se ao que teria sido a terceira ordem dos franciscanos, os terciários [ou Ordem terceira]. Retira-se no monte da Verna em setembro de 1224: após 40 dias de jejum e sofrimento, recebe os estigmas, os sinais da crucificação, sobre as quais as fontes, no entanto, não concordam. Francisco é levado a Assis, onde permanece durante anos, marcado pelo sofrimento físico e por uma cegueira quase total. Em 1226, encontra-se em Bogogno, perto de Nocera na Úmbria, mas pede poder voltar para morrer no seu “lugar santo” preferido: a Porciúncula. Aí morre aos 3 de outubro. Seu corpo, depois de ter atravessado Assis e ter sido levado a São Damião, é sepultado na igreja de São Jorge. Daqui o corpo é transferido em 1230 à atual basílica. Francisco, padroeiro da Itália, é canonizado, em 1228, pelo papa Gregório IX.

As obras

As obras de São Francisco podem ser subdivididas em: Regras e exortações; Cartas, Louvores e preces. Quase todos estes escritos tem sido datados (não sendo por isso autógrafos), mas a atribuição não é posta em dúvida pelos estudiosos. Em Assis compõe em 1225 o Cântico das criaturas: o Sol e a natureza são louvados como irmãos e irmãs; o texto contém o episódio no qual o santo prega aos pássaros.

Em filmes

São Francisco inspirou numerosos registros: são filmes famosos como Francisco, menestrel de Deus, de Roberto Rossellini (1950); a encenação televisiva Francisco de Assis, de Liliana Cavani (1966); o filme Irmão sol, irmã lua, de Franco Zeffirelli (1972), com trilha sonora composta por Riz Ortolani, interpretada por Claudio Baglioni e por Donovan na versão inglesa); o mais recente: Francesco de Michele Soavi (2002) e a minissérie de TV (duas versões) Chiara e Francesco, direção de Fabrizio Costa (2007). Grande sucesso, em 1981, também teve o musical Forza, venite gente [Força, vinde gente], de Michele Paulicelli.

Para ler mais:

Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=35463 acesso em 19 ago. 2010.

Foto: Bruno Forte, archbishop of Chieti-Vasto, 2006 = Bruno Forte, arcivescovo di Chieti-Vasto, 2006 / Medan. Disponível. 2006. em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Bruno_Forte,_2006.jpg acesso em 19 ago. 2010.

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