Poucos são os criadores de uma ruptura epistemológica. No campo da filosofia ocidental moderna, foram criadores Descartes, Kant, Hegel, Marx, Heidegger. Na teologia, se destacaram Tomás de Aquino, Lutero, Bultmann, Rahner. Gustavo Gutiérrez abriu um caminho novo e promissor para o pensamento teológico, descobriu “uma nova maneira de fazer teologia”. São palavras certeiras do teólogo Leonardo Boff.
Deu no Instituto Humanitas -Unisinos:
A teologia na América Latina e no Caribe se caracterizava por repetir ou sintetizar pensamentos estrangeiros. Gutiérrez cria, no fim dos anos sessenta, um método teológico desde e para a América Latina pobre e oprimida. Deu a essa reflexão da fé a partir do reverso da história o nome de Teologia da Libertação. Seu raio de projeção tem sido verdadeiramente impressionante: desde a teologia negra, índia, asiática, feminista, ecológica e das religiões até a teologia judaica e palestina da libertação. Gustavo é o primeiro latino-americano a se situar de igual para igual entre os grandes criadores dentro da história da teologia.
No último dia 28 de maio, a Universidade Central de Bayamón, dirigida pelos Padres Dominicanos, uniu-se a uma plêiade de reconhecimentos internacionais, entre eles o prestigiado Prêmio Príncipe de Astúrias, outorgando-lhe um Doutorado Honoris Causa. O padre Gustavo Gutiérrez chegou assim pela primeira vez a Porto Rico, na véspera de seus oitenta anos de vida e do quadragésimo aniversário do emblemático documento eclesial latino-americano, Medellín.
A entrevista foi publicada pelo boletim Religión Digital, 23-08-2008. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis a entrevista.
Quando o senhor começa a assumir a realidade da violência e da pobreza na América Latina e no Caribe como ponto de partida da teologia?
Comecei a trabalhar em março de 1964. Houve uma reunião convocada por Iván Illich. Eu o conheci ainda quando estava em Porto Rico, em 1960. Foi Iván quem convocou uma reunião muito informal em Petrópolis para que disséssemos como víamos o trabalho da teologia na América Latina.
E qual foi a sua colaboração?
Falei de teologia como uma reflexão sobre a pastoral e sobre a vida cristã. O mesmo que formulei mais tarde como reflexão crítica sobre a práxis à luz da fé.
O primeiro que surge é o estabelecimento de um método que parte da vida real para iluminá-la à luz da Palavra e abrir caminhos concretos de libertação?
Isso mesmo. Eu passei praticamente todos os meus estudos de teologia extremamente preocupado com a questão do método. Daí a frase: “Nossa metodologia é nossa espiritualidade”.
O tema da proximidade aos pobres não é novo, mas sim a indagação sobre as causas da pobreza e a luta contra a pobreza como parte da identidade cristã. Quando começa essa transição?
Convidaram-me para falar sobre a pobreza em Montreal, em 1967. Queria tomar distância de Voillaume, o autor de “En el corazón de las masas” (“No coração das massas”), porque ele evitava qualquer perspectiva muito social em torno à pobreza, mas a verdade é que não se pode evitar o fato social. Falei de três noções bíblicas sobre a pobreza: primeiro, a pobreza real ou material, vista sempre como um mal. A segunda é a pobreza espiritual, como sinônimo de infância espiritual. A pobreza espiritual é pôr minha vida nas mãos de Deus. O desprendimento dos bens é conseqüência da pobreza espiritual. E a terceira dimensão é a solidariedade com os pobres e contra a pobreza. Voillaume falava que se tinha que ser pobre. Sim, muito bem, mas para quê? Que sentido tem? Não é unicamente para eu me santificar. Tínhamos que pensar sobre o que isso significa para o outro.
Algum outro elemento importante dessa arquitetônica inicial?
Uma preocupação: como anunciar o Evangelho hoje? A teologia é feita para anunciar o evangelho, a serviço da Igreja, da comunidade. Tantas faculdades pensam a teologia como metafísica religiosa, não como anúncio histórico de libertação.
Quando esse novo modo de pensar a fé a partir da perspectiva do pobre e do excluído começa a se chamar “teologia da libertação”?
Isso foi em 22 de julho de 1968, em Chimbote, Peru. Pediram-me para falar da “teologia do desenvolvimento” e me neguei. Disse-lhes que falaria da teologia da libertação, que era mais pertinente ao nosso contexto. Outra coisa que estava na moda era a “teologia da revolução”, da qual também tomei distância. O perigo desta era que pretendia cristianizar um fato político.
Diferente de outros, o senhor nunca esteve de acordo com partidos ou grupos como a Democracia Cristã nem com o Cristãos pelo Socialismo, apesar de acentuar a dimensão política da fé. Por quê?
Nunca gostei que se usasse o “cristão” como adjetivo. O “cristão” é um substantivo. Sempre disse: “Sou cristão por Cristo, não pelo socialismo”. Que alguém faça, como cristão, uma opção pelo socialismo, é outra coisa. Mas não posso deduzir o socialismo pelo caminho da Bíblia. Da Bíblia, deduzo a opção pela justiça, a opção pelo pobre. As pessoas, quando não entendem isso, dizem: “Escute, mas você nega a política, está do lado contrário”. Eu respondo que também creio na autonomia do social e do político.
Quando começa a idéia de formar o livro que se converterá no texto que funda a teologia latino-americana contemporânea: “Teologia da libertação. Perspectivas”?
Na realidade, não pensei em escrever um livro propriamente. Alguém trabalha nos temas que lhe interessam e pouco a pouco vai saindo. No começo de 1969, pouco depois de Medellín, uma comissão ecumênica sobre temas de desenvolvimento me convidou a Genebra. Então, retrabalhei a palestra que havia dado em Chimbote e assim continuei ampliando.
Teve oferta de alguma editora concreta?
Não, mas passou Miguel d’Escoto, de Maryknoll, que acabava de fundar a Orbis Books. Viu o livro e me disse: “Vou publicá-lo”. Foi o primeiro livro publicado por essa editora. Ele o mandou traduzir e o publicou em 1973, e tem sido o livro mais vendido dessa editora. Depois, passou o editor de Sígueme, da Espanha, e aconteceu o mesmo. Outro que se interessou foi Gibellini. A edição italiana é inclusive anterior à espanhola. Já está traduzido para dez ou doze línguas, também para o vietnamita e para o japonês.
Qual é a oposição principal que o livro recebe?
Eu diria que, mais que ao livro, era oposição à teologia da libertação. Muita gente já estava escrevendo sobre o tema. Criticava-se o enfoque marxista da análise da realidade, mas eu não me sentia aludido. No entanto, a oposição mais forte que tivemos não veio de dentro da Igreja, mas de alguns componentes da sociedade civil, nos poderes jurídicos, econômicos, militares, políticos.
A discussão aberta é sinal de uma teologia que diz algo ao homem e à mulher de hoje, que gera diálogo crítico não somente no interior da Igreja, mas também com a sociedade.
Boa parte das reações vem da acolhida que teve. Se eu tivesse permanecido em um ambiente de intelectuais, não teria tido esse impacto. Houve uma acolhida da base, inclusive com expressões que nunca me convenceram, mas que nascem da boa vontade, que dizem: “Eu sou da teologia da libertação”. Mas a teologia da libertação não era e nem é um clube no qual alguém se inscreve, nem um partido. Declaravam-se membros e depois diziam o que queriam, e nem sempre correspondia ao que se pensava. São coisas inevitáveis.
Mas também há uma necessidade de encontrar falhas em uma teologia que provinha do Sul.
Um jornalista norte-americano me perguntou: “O que a teologia da libertação pensa desse problema mundial?”. Eu lhe disse: “Você crê que isto é um partido político e que eu sou o Secretário Geral? Pois não é assim”. Disse-lhe também: “Por que você não pergunta a [João Batista] Metz o que a teologia política européia pensa desse problema mundial? A ele não, mas a esta teologia sim. Claro, porque aquilo sim é teologia. Metz é alemão”. Algumas pessoas reagiam desse modo porque pensam que algo que vem da América Latina tem que ter falhas grandes. Tem que encontrá-las como der. Se é latino-americano, tem que haver alguma posição estranha. O que querem é coisificar uma teologia.
Se alguém se deixa levar somente pelo que está escrito na imprensa, parece que o senhor foi condenado pela Igreja. E não é verdade.
É curioso. No meu caso, nunca houve condenação, nem sequer houve um processo. Houve, sim, um chamado diálogo, perguntas que sempre estive disposto a responder.
O senhor acha válido esse tipo de diálogo?
Sempre acreditei que a teologia é feita no interior da Igreja. Na Igreja, há carismas distintos. Pode-se perguntar a alguém que escreve teologia que dê razão de sua fé, assim como damos razão de nossa esperança. Com esse nível de perguntas, não há por que se ofender.
Quanto tempo durou o diálogo?
Começou em 1983 e concluiu de várias maneiras, mas, oficialmente, faz cinco anos. Durante muito tempo, tudo esteve em silêncio. Não houve nada comigo.
O que diz o texto oficial?
A expressão é que tudo concluiu satisfatoriamente.
O senhor teve vários encontros cara a cara com o Cardeal Joseph Ratzinger?
Sim, para grande parte deles não fui convocado, mas eu mesmo tomei a iniciativa. Ratzinger é um homem inteligente, educado e, dentro de sua própria mentalidade, evoluiu, entendeu muitas coisas. Em uma ocasião em Roma, me disse que havia lido meu livro sobre Jó. Eu mesmo lhe enviava meus livros. Sempre acreditei que a distância cria fantasmas. Disse-me que tinha gostado e que os teólogos do Sul tinham poesia, que a teologia européia era mais fria.
Seu modo de proceder tem sido sempre pouco conflitivo, enormemente dialógico e carente de dramatismo. Alguns crêem que corresponde à sua personalidade, mas acho que aqui há algo profundamente eclesial.
Exato. Tudo vem de que o mundo que mais fala à minha vida não é o mundo intelectual. Não é a defesa de minhas idéias porque são minhas idéias. Interessa-me a vida da Igreja, o anúncio do Evangelho e a vida das Conferências Episcopais.
A teologia carrega o rastro de seu tempo. Estamos entrando claramente em outro tempo, o qual não se sente a mesma urgência e se abrem outras rotas à fé.
Até os 40 anos, nunca falei da teologia da libertação e creio que era um cristão de verdade. Assim, serei cristão depois da teologia da libertação. Quando me falam que a teologia da libertação já morreu, eu digo: “Olhe, eu não fui convidado para o enterro e acho que tinha algum direito”. Depois, lhes digo: “Mas, veja, creio que um dia, sim, vai morrer”. Entendo por morrer o fato de que não tenha a mesma urgência que antes. Isso me parece normal. Foi uma colaboração à Igreja em um determinado momento.
Creio que se cuida bem para não converter a teologia da libertação em um ídolo, em uma ideologia à defensiva.
Não se deve fazer de uma teologia uma nova religião. É a tendência da sociedade civil. Alguns pensam que a teologia da libertação é uma espécie de cristianismo diferente, o meu cristianismo. E até falam isso como um elogio, não para criticar. Não crêem no cristianismo, mas sim na teologia da libertação. Mas, sinto muito: o importante é o cristianismo, não a teologia da libertação. A teologia da libertação só pode ser entendida no interior do cristianismo.
O senhor não acha que antes se falava de pluralismo teológico, mas, na realidade, era sobre um pluralismo limitado, isto é, dentro de uma mentalidade quase exclusivamente européia?
Sim, e, todavia, na academia teológica se fala de nós como teologia contextual, um pensar que mantém uma estreita relação com a realidade. Quando me dizem isso, eu lhes digo para incomodar: “Ah, você tem uma idéia muito ruim da teologia européia. Está me dizendo que não são contextuais. Está me dizendo que é uma teologia que não tem relação com a realidade. Uma teologia no ar. Eu não acho isso”.
O senhor teve que lutar contra uma certa pretensão de superioridade?
Muitíssimo. Chamar “contextual” a uma e “não contextual” à outra é um exemplo. Todo pensar corresponde a um contexto. Mais do que uma rejeição à teologia da libertação, é uma comunicação com um ponto menor, como se fôssemos algo subalterno. Tem havido muitas coisas nesse estilo. Aceitavam-se as idéias, mas se criticava a teologia da libertação. O que é isso?
Estávamos acostumados a que a teologia dialogasse somente com a filosofia e não com as ciências sociais. É uma novidade que custou a ser aceita no princípio.
Curioso, porque hoje as ciências sociais estão de cheio dentro da teologia. Essa crítica à teologia da libertação já caducou. E tudo isso ocorre apesar de que nunca dissemos que as ciências sociais substituíam a filosofia na teologia, mas que ampliávamos o leque de luzes e de disciplinas humanas para trabalhar o mistério cristão.
Além disso, toda teologia verdadeiramente criadora gera resistências. É a prova de fogo de sua valia.
Evidente. Veja a reação ante o diálogo de Teilhard de Chardin com as ciências naturais. E o exemplo clássico de São Tomás de Aquino. Falo de um gigante frente a essa teologia tão anã como a teologia da libertação. Ele teve resistências enormes, foi condenado pela Universidade de Paris e levou séculos para ser reconhecido. Ele incorporou uma filosofia que provinha de um pagão, repensou-a, retomou-a, misturou-a.
O senhor crê que já estamos em um momento novo e melhor?
A parte mais dura e polêmica ficou para trás. Deve ficar para os historiadores. E é muito bom dizer que já passou. Se algo realmente morreu é essa polêmica. Eu creio que já é hora de baixar o tom.
Há um texto no qual o senhor se move reflexivamente em direção ao contexto atual da globalização e da pós-modernidade e aos desafios que a teologia apresenta. Refiro-me ao ensaio “Onde dormirão os pobres?”. Aí começa a fazer uma crítica à tentação de fazer da própria teologia um ídolo.
Quando faço de alguma coisa que não seja Deus um absoluto, caio na idolatria. Ouço dizer: “Teologia da libertação ou nada”. Eu nunca disse: “Se você quer compreender a Cristo, leia a teologia da libertação”. Agora, se alguém me pergunta se eu acho que lendo sobre teologia da libertação vai compreender algo importante do cristianismo, aí sim. É provocador dizer isso, porque a justiça também pode se converter em um ídolo. Vejo pobres serem maltratados por pessoas que se crêem mais claras politicamente que eles. Fiquei muito marcado por uma coisa que li aos quinze anos, escrito por Pascal: “O abuso da verdade é pior do que a mentira”. Alguém pode ter a verdade e abusar dela. A pessoa é sempre mais importante.
Sua reflexão mais recente advertiu também sobre a intenção de fazer do pobre um ídolo.
Isso vem do romantismo de alguns. Há gente que me diz: “Aprendi tudo com o pobre, o pobre é tão bom”. Às vezes, brincando, lhes digo: “Você acredita que todos os pobres são bons e generosos, mas eu não lhes aconselho a ir ao meu bairro às duas da madrugada, porque vão ficar como vieram ao mundo, só que mais velhinhos”. É uma maneira de dar a entender que a opção não se faz porque o pobre seja bom, mas porque Deus é bom. Se o pobre não é bom, também. Muita gente se decepcionou do compromisso porque acreditavam que o pobre era bom. Se tivessem entrado porque Deus é bom, ainda estariam comprometidos.
De fato, em um artigo seu intitulado “San Juan de la Cruz en América Latina” (“São João da Cruz na América Latina”), o senhor deixa indicado que o que poderia nos ajudar a evitar esse caminho idolátrico (que, ainda que fale de libertação, não liberta) seria abrir-nos à dimensão mais mística da fé.
Algo que a mística tem é a capacidade de nos ajudar a depurar a noção de Deus. Se virmos o desenho de São João da Cruz, há um momento, a partir da metade da base do monte, no qual ele diz que, a partir daí, não há caminho. Isso é a mística. Um caminhar em direção ao Senhor. Seguir fazendo d’Ele, conforme nossa vida avança, o nosso único absoluto. Sem essa dimensão mística, não há verdadeiro compromisso com os pobres. Pois bem, há que se mudar a noção de mística. Não é como se diz por aí: sair deste mundo. Não se trata de transmitir uma mensagem, mas de “transmitir o contemplado”. A isso temos que agregar a intuição de Nadal: ser “contemplativos na ação”.
O que às vezes se anuncia como mística, inclusive em importantes teólogos ou estudiosos, ainda tem excessivas reminiscências neoplatônicas negadoras do corpo e da história.
A mística não é um desinteressar-se por este mundo. No entanto, há pessoas que acham muito místico alguém que não tem os pés no chão. Se o pobre não lhe importa, não estou certo de que se trate de uma experiência mística. É interessante que uma mística, Teresinha de Lisieux, seja padroeira das missões.
Progressivamente, parece que o senhor tem insistido na poesia como a melhor linguagem para falar de Deus. É isso?
A poesia é a melhor linguagem do amor. E Deus é amor. A melhor linguagem para falar de Deus é a poesia. Uma linguagem profunda que vê o mundo e vê a relação com outro a partir de uma dimensão e de uma profundidade que o conceito não oferece. Mesmo que não escrevamos poesia, a própria teologia deve ser sempre uma carta de amor a Deus, à Igreja e ao povo a quem servimos.
Extraído de http://www.unisinos.br/ihu/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=16263 acesso em 25 ago. 2008.
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