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sábado, 15 de novembro de 2008

A atualidade do pensamento de Duns Scotus


Por Frei Sinivaldo Silva Tavares, OFM

Duns Scotus (1265/6 - 1308) foi, com razão, considerado um dos expoentes máximos da “escola franciscana”. Suas intuições e sistematizações teológicas têm, neste sentido, marcado o desenrolar de uma específica maneira de refletir teologicamente, que nos foi legada pela tradição com o nome de “teologia franciscana”. Indagar, portanto, acerca das posições teológicas de Scotus, segundo nos parece, pode se tornar uma grande oportunidade. Pode se converter, de fato, na ocasião propícia para se resgatar nossa mais genuína identidade franciscana e, consequentemente, recuperar sua peculiar relevância para o “nosso tempo”.

Ao tratarmos, portanto, do pensamento de Scotus não podemos deixar de nos perguntar pela sua ‘relevância’, vale dizer, pela importância de suas reflexões teológicas para o “nosso tempo”. A consciência que estamos atravessando uma crise epocal tem-se tornado um lugar-comum. Em âmbito teológico, verifica-se o reflexo desta crise na forma específica de uma profunda crise dos assim chamados “paradigmas teológicos”. Adverte-se hoje a necessidade de se recorrer a paradigmas mais amplos e, ao mesmo tempo, mais flexíveis que permitam à teologia pensar os seus vários temas na sua permanente inter-relação, desentranhando assim a intrínseca abertura de cada evento ou experiência àquela dimensão mais global e complexa da inteira realidade. Para tanto, torna-se imprescindível ampliar, ou, em certos casos, até substituir, os paradigmas utilizados pela teologia moderna e contemporânea.

Urge, portanto, repensar a fé na sua mais intrínseca relação com a totalidade e a complexidade da vida e do cosmos. Por esta razão, a pergunta de fundo que guiará nossa incursão pela teologia de Scotus é precisamente esta: de que maneira suas intuições e suas reflexões podem nos auxiliar na tentativa de elaborar reflexões mais pertinentes, mediante o recurso a paradigmas mais afins aos desafios e às demandas postos à reflexão teológica atual?

Salientamos, de início, que a singularidade de Scotus não consiste propriamente no exercício de um pensamento alheio à complexidade do labor teológico de seu tempo. E o tempo de Scotus, como sabemos, é marcado por graves lacerações e, por isso mesmo, caracterizado por inusitadas possibilidades. Diríamos que a genialidade do ilustre teólogo franciscano consiste justamente na capacidade por ele manifestada de intuir os reais desafios de então e de saber problematizá-los no bojo mesmo da tarefa teológica. Imerso em um específico contexto no interior do qual a teologia se sentia radicalmente confrontada pelo saber das incipientes universidades, Scotus assume com particular gravidade o ônus de repensar as bases e o processo mesmo de constituição da teologia enquanto ciência. Não sucumbe face aos novos desafios por mais que parecessem ameaçadores. Assume a incumbência de pensar radicalmente a fé cristã, pois convencido está de que fé e razão não constituem espaços separados, nem são como que dimensões alheias e, portanto, indiferentes uma à outra. Expressão da acolhida de um dom gratuitamente oferecido, a fé constitui o húmus no interior do qual a razão pode oferecer o melhor de si, explorando ao máximo suas próprias e intrínsecas virtualidades, em vista de uma compreensão cada vez mais profunda dos mistérios de Deus, do ser humano e da inteira realidade criada.

No exercício desta peculiar incumbência, Scotus se destaca pela fina acribia em bem discernir, o que lhe possibilitou dissipar inúmeras confusões e esmerar-se na especulação acerca dos mistérios da fé. O Doutor sutil se caracteriza, ainda, por um raciocínio deveras singular capaz de, num cerrado diálogo com seus interlocutores, desconstruir seus argumentos e forjar conceitos e linguagem novos cada vez mais precisos e inclusivos. Com Scotus, talvez a teologia cristã tenha atingido os mais altos píncaros da especulação. Scotus é filho daquele período plasticamente descrito por Huizinga como “outono da Idade Média”. Todavia, seria injustiça nossa considerá-lo apenas o derradeiro fruto daquele longo e rico período histórico. Scotus constitui, na verdade, o fruto maduro daquela fecunda estação, porque sorveu no melhor dos modos a mais genuína seiva que corria pelos veios mais profundos dos sulcos de então.

É visível, em nossos dias, o crescente interesse pelo pensamento de Scotus. Nosso tempo parece marcado pela experiência da dissolução dos grandes sistemas, pela deslegitimação das grandes narrativas, pelo desencanto em face dos grandes projetos construídos sobre a razão, que parecia constituir um sólido alicerce. Chega-se a falar em pós-Modernidade como termo apto a exprimir o total desencanto frente a todas as grandes pretensões totalizantes e excessivamente pretensiosas da Modernidade. Denominador comum a todos os projetos da Modernidade seria propriamente a “epistemologia forte”: racionalista e naturalista. Por esta razão, poder-se-ia dizer que a Modernidade nasce e se desenvolve num viés oposto àquele inaugurado por Scotus, em fins do século XIII e inícios do século XIV. Estaríamos, porventura, presenciando hoje uma configuração cultural mudada no seio da qual estariam sendo recriadas condições propícias à aceitação da proposta do Doutor sutil? Estaríamos, finalmente, mais predispostos a acolher o modelo defendido pelo ilustre pensador escocês de uma sadia pluralidade dos diversos saberes mediante um processo de profundo respeito pela autonomia de cada um deles?

Extraído de http://www.itf.org.br/index.php?pg=noticias2&id=352 acesso em 15 nov. 2008.

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