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sábado, 8 de novembro de 2008

Uma montanha resplendente...


Frei Almir Ribeiro Guimarães,OFM (*)
De agora em diante que ninguém me moleste: trago em meu corpo as chagas de Jesus Cristo ( Gálatas 6,17)
1. Quando eu era criança, lá pelos idos de 1945, com meus 7 anos, folheando um livro de orações de minha mãe, que se chamava, se não me engano Maná, encontrei um santinho que me intrigava. Havia um homem, ajoelhado, vestido de marrom, como os freis que celebravam na Capela de Nossa Senhora das Vitórias na Vila dos Sargentos, em Petrópolis. Ele olhava para o alto, na direção de um anjo diferente. Este, por sua vez, tinha o rosto de homem. Parecia-me, nos meus sete anos, um rosto de Cristo. E esse Cristo diferente, tinha muitas asas. Aquilo tudo me parecia muito estranho e, ao mesmo tempo, eu me sentia misteriosamente atraído por aquele santinho. Muitas vezes eu voltava a procurá-lo no livro de minha mãe. E ficava agoniado enquanto não o achava. Saíam raios do corpo do homem Cristo, anjo, que atingiam as mãos, os pés e o lado desse outro homem de marrom, ajoelhado e com os olhos arregalados... Mais tarde quando cresci, quando não tinha mais o jeito do menino de 7 anos, soube que se tratava da estigmatização de Francisco de Assis. Isso compreendi bem mais tarde, bem mais tarde mesmo. E o dia 17 de setembro, passou a ter um significado grande para mim. Achava que esse dia deveria ser feriado religioso. Afinal, um homem com as chagas de Jesus... Um dia desses vi um título de uma autora italiana que abordava a questão da invenção das chagas de Francisco por parte de Frei Elias... Compreendo que se façam estudos críticos. Mas...Bem, aqui não é o espaço para uma discussão sobre esse assunto. Os interessados procurem o livro de Chiara Frugoni, Francesco e l’invenzione delle stimmate, Torino, Eunaudi, 1993). Um confrade, cujo nome não declina, me disse que autora é tendenciosa (sic). Quando penso na comemoração das chagas sempre vem à minha mente as palavras da epístola aos Gálatas: “De agora em diante que ninguém me moleste: trago em meu corpo as chagas de Jesus Cristo”.

2. As circunstâncias e a bondade do Senhor me permitiram, agora, aos setenta anos, voltar uma vez mais ao Alverne. Tive a graça de passar uma semana nas alturas alvernianas...nessa montanha toda radiosa e esplendorosa. Saindo de Roma cheguei a La Verna pelas 14horas do sábado, 18 de outubro, festa de São Lucas. O trem chegou a Arezzo, uma bela cidadezinha do vale casentino ou tiberino, e dali tomei um outro pequeno trem até Bibbiena e depois um pullman até Chiusi de La Verna, lá onde estava o castelo do Conde Orlando. Uma irmã franciscana indiana teve a caridade de providenciar para mim uma carona até as dependências do convento dos frades da Província Toscana dos Sagrados Estigmas do Pai Seráfico. Percorri muito feliz os três quilômetros que separavam a casa as irmãs da entrada do convento. Outono. Folhas pela estrada. Nas árvores, todas as cores. Amarelo vivo, amarelo esmaecido, vermelho, marrom e aqueles pinheiros cujas folhas não fenecem... Um sol das três da tarde e uma sensação de beleza, de delicadeza. Sim, La Verna é marcado pela beleza e doçura, mas também pela rudeza. Aquelas pedras cinza claro que estavam ali, com profundos cortes, fissuradas. Conta-se que essas rachaduras se deram no momento da morte de Cristo. Uns poucos pássaros voavam. Ainda não fazia frio naqueles dias de outubro. Mas o ar fresco de fundo anunciava o inverno.

3. Não preciso e nem quero evocar todos os pormenores das Fontes a respeito do assunto. Sei, sei perfeitamente que os queridos biógrafos embelezaram as coisas segundo os ditames da hagiografia do tempo...Francisco, os frades, Leão, o falcão, as celas do Pai Seráfico, as tentações do diabo. Sabemos tudo isso. Por isso, quando se vai a La Verna é preciso tirar as sandálias dos pés. E deixar que o mistério da montanha reluzente, transparente nos envolva. Será preciso sentar-se nas estalas pequenas da Igreja dos Estigmas. Escutar as batidas do coração, nosso de Francisco e dos oitocentos anos da aprovação de nosso estilo de vida, da forma de vida segundo o Evangelho.

4. La Verna abriga uma comunidade de uns vinte frades. São os guardiães do local onde Deus quis manifestar-se, ainda uma vez, a Francisco, agora de maneira definitiva. Francisco já tinha tido outras revelações: que ele devia viver segundo o evangelho, respeitar as igrejas, a eucaristia, os sacerdotes, a palavra, a Igreja, os bispos, o Senhor Papa. Agora acontecia a grande manifestação. O esposo tomava conta definitivamente do amado. Esse Francisco que tinha ido pelo mundo afora chorando e dizendo que o amor precisava ser amado agora, ali, na rudeza do La Verna, era beijado definitivamente pelo Amante. Não perguntem muita coisa a Francisco. La Verna não se explica. É o desfecho maravilhoso de uma existência que foi se descentrando e se abismando na força da simplicidade pobre de um Deus que anda loucamente procurando esses seres que se chamam homens e mulheres... Sim, Francisco sentia no peito o amor do Senhor Jesus e, em seus membros, a dor da Palavra de Deus, do Verbo que havia tomado carne no seio da pobrezinha da Virgem. La Verna, a céu aberto, nas imediações da Festa da Santa Cruz, se tornava o grande espaço do enlace do pobrezinho que havia se identificado com Cristo, e se revestido até o fim das vestes da singeleza pobre. As chagas nas mãos, nos pés e no coração...Não, certamente elas não foram inventadas por Frei Elias... “De agora em diante que ninguém moleste: trago nos meus membros as chagas de Nosso Senhor Jesus Cristo”.

5. Sim, ele já as trazia há muito tempo...porque sofria ao ver que o amor não era amado, porque sentia dor em constatar que muitos miseráveis eram abandonados, sofria com as dores de seu corpo, de seus olhos, de seu estômago, mas sobretudo porque se dava conta que ele mesmo estava sendo abandonado pelos seus irmãos...”Escreve, frei Leão, que a verdadeira, a perfeita alegria não consiste nas grandes pregações, nas conversões em massa, no alarido que eventualmente os frades podem fazer, nem na solenidade de suas preleções na universidade de Paris, ou de não sei onde, mas em aceitar esse negativo da vida, sem reclamar, carregando a cruz de Cristo, essa dor doída de sentir que não se conta mais... Quando chegarmos, frei Leão, à Porciúncula, se formos mal recebidos, não importa. Ali mostraremos ter compreendido o sentido verdadeiro da alegria que nasce da cruz. E agora, por favor,não me molestem. Trago nos meus membros as chagas do Senhor”.

6. O tempo passado em La Verna foi diferente, na sua cotidianidade. Todos os dias, às 7h, havia o Oficio das Leituras, recitado. O silêncio era total fora e dentro da Basílica grande. Os frades chegavam de hábito, noviços, mestre, guardião, frades do eremitério, vice mestre e até um frade de Petrópolis. Os salmos, as leituras... Parecia-me estranho ouvir o pedido de Ester ao rei para poupar seu povo ali, naquele quadro. A Palavra e as palavras chegavam ao fundo do ser...geravam vida...Depois vinham as Laudes, quase sempre cantadas, com melodias bonitas, acompanhamento de órgão, por vezes, até incenso. Chamava minha atenção o ambão das leituras. A peça moderna recebia uma iluminação direta muito bonita. Mateo, o noviço, lia italianamente todas as coisas de seu livro, com sobrepeliz, cabelo curto, pulôver por sobre o hábito...

7. Todos os dias, às 15h, depois da Noa, cantada e recitada, não nos bancos da igreja grande, mas num coro de estalas por detrás do altar datadas do século XVII. Depois dos salmos a procissão até o local dos estigmas, os hinos, a leitura de um texto das Fontes relativo aos estigmas. Era o momento cotidiano de lembrar os eventos de tempos passados e recordar os estigmatizados de nossos tempos, em nossas casas, nas paróquias, na vida... E ali, naquele espaço, sempre me lembrava de Leão: os Louvores do Deus Altíssimo, o carinho por Francisco, a ternura do Pai por ele, e a bênção, essa benção de São Francisco que faz tanto bem. Os guardiães deveriam abençoar mais vezes os irmãos com estas palavras tão lindas do Livro dos Números...

8. Voltávamos a nos encontrar na Igreja grande para as Vésperas, às 18,30 e depois para meia hora de meditação. Gostava muito de me assentar no quarto banco tendo perto de mim o trabalho de Andrea della Robbia que representa o anúncio do Anjo a Maria. Depois vinha a janta.... vocês sabem.. com massa, carne, queijo, vinho, uvas dulcíssimas, torta com as mesmas, pão italiano, muito pão italiano...

9. Verdade, meus amigos que, muitos e muitos turistas ali se reúnem com suas máquinas de fotografia...sempre fotografias...Muitos não se apercebem do mistério... Os frades fazem o que podem...mas eles precisam ser gentis, cativar as pessoas... e nem sempre esse festival de fotos combina com o quadro do Alverne.

10. Gostaria ainda de dizer duas palavras. Experimentava muita alegria e mesmo emoção quando me dirigia ao Precipício. Dizem que Francisco foi tentado ali. Mas a paisagem é esplendorosa. De lá se avistava tudo. Bem no meio está Bibbiena, uma cidadezinha charmosa. Um dia ela estava coberta pela nevoa e, nas alturas da Montanha, havia sol. Sabem... havia um tipo de gente que perturbava aquele majestático silêncio. Refiro-me aos motoqueiros que, lá embaixo, em Chuisi de La Verna, corriam feito doidos e sempre barulhentamente... Penso que estive nesse espaço do Precipio todos os dias do retiro e mesmo mais de uma vez. Aliás estive em Bibbiena com um frade no hospital regional. Ao cortar a unha do anular da mão esquerda avancei demais e deu uma infecção. Foi preciso ver um médico. Tudo saiu bem, burocraticamente bem, ser versar uma fração de euro. Assim consta de minha folha: “Il paziente presenta a livello de la falange distale del 4 dito de la mano dx una flogosi locale che interessa il dito a tuto spessore”. Por fim: “Si consiglano impacchi com acqua calda e terapia antibiotica” Depois tive que buscar autorização e receita de uma doutora para a questão do antibiótico. E esta era uma sudanesa que tinha sido adotada por uma família italiana ainda criança, se formara em medicina e se casara com um cidadão toscano.

11. A segunda palavra é a respeito da Igreja de Nossa Senhora dos Anjos que teria existido, na sua forma mais primitiva, no tempo de Francisco. Há um retábulo de Andrea della Robbia magnífico representando a Assunção de Maria, cercada de anjos por todos os lados, anjos de todos os jeitos, uns sorridentes, outros descansando a mão no queixo e nas bochechas. Era bom ficar ali uns quinze minutos olhando aqueles anjos brancos num fundo azul...e a delicadeza de Maria. Há uma forte presença de Nossa Senhora nas terras alverianas...

12. “De agora em diante que ninguém me incomode: trago nos meus membros a paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Nesse tempo de preparação das comemorações dos oitocentos anos da aprovação da proto-regra é bom trazer à mente tudo aquilo que significa o Alverne, síntese de uma vida, da vida de Francisco. Depois, Francisco desceu a Montanha resplandecente. Deve ter olhado para trás algumas vezes lembrando-se das núpcias ali realizadas e vividas. Quem descia trôpego era o Francesco dos sonhos das coisas grandes, da vontade de se casar com a mulher mais bonita da face da terra, o Francesco que rodopiava e dançava diante de Deus como se fosse um bailarino, o Francisco que jogava esmolas para os pobres, o Francesco que comia uvas com o irmão doente, o nosso irmão Francesco....que compreendeu como nunca que o amor precisava ser amado. Será que as teorias a respeito da evangelização não esquecem que antes tudo está esse desejo de que o amor seja amado? Ou será que estou enganado?

13. No alto do Alverne pensei em muitas pessoas. Pensei de modo especial em Frei Mateus Hoepers a quem devo a alegria de me ter tornado franciscano. Ele, com seu jeito meio dele, sua voz enorme, seu corpo imenso parecia uma criança quando falava de Francisco. Pensei nele. E agradeci ter entrado na Ordem apesar de meus e de minhas limitações. Pensei também nos frades estudantes de Petrópolis, de modo especial, no grupo que mora no Sagrado. Alguns deles são seres excepcionais. Que Deus os conserve e que eles possam renovar a vida franciscana de nossa Província. Muitos deles são melhores, enormemente melhores do que nós fomos, nos que vamos comemorar em 19 de dezembro de 2008 os cinquenta anos de ingresso no Noviciado.

14. Quase no final. Não posso e nâo quero deixar de dizer que, no alto de uma outra montanha, no Morro de Fátima, em Petrópolis, no dia 7 de junho de 1957, tomei a decisão de ser franciscano. Frei Abílio um dia vai me deixar celebrar lá.

15. Gostaria que minha irmã vasculhasse todas as coisas do sótão de sua casa para ver se descobre onde está aquele santinho. Nunca mais, nos meus 70 anos de vida, encontrei um santinho como aquele.

Terminam aqui as considerações pouco costuradas a respeito de uma montanha resplendente...

Frei Almir Ribeiro Guimarães, OFM,
é Assistente Nacional da OFS pela OFM
e Assistente Regional da OFM na Região Sudeste II.
Email: freialmir@hotmail.com

Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/artigos/almir_070808/artigos_08.php acesso em -8 nov. 2008.

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