"Há uma objetiva necessidade de superar a práxis predatória: estamos andando em meio à própria sobrevivência da espécie humana, ameaçada pela incidência de uma crise ecológica que o próprio sistema contribuiu fortemente para criar. Tal sistema também poderá sobreviver por um pouco de tempo, mas se tornará sempre mais claro que mantê-lo em vida se configura sempre mais como uma ‘tenacidade terapêutica’. Como cristão, ficarei verdadeiramente feliz se também as autoridades eclesiásticas se decidissem a retirar sem hesitação este doloroso espinho.”
Essa é a opinião do economista italiano e estudioso da globalização Cesare Frassineti, em artigo para a Agência Adista, 09-11-2009. A tradução é de Benno Dischinger.
Eis o texto.
A leitura da Encíclica de Bento XVI "Caritas in veritate" suscitou em mim uma série de considerações e uma in-terrogação de fundo.
Acima de tudo causou-me prazer que um documento dedicado às temáticas sociais tenha sido promulgado num momento de enorme sofrimento para a humanidade, sofrimento gerado pelo desencadeamento da crise econômica mais grave após a Grande depressão de 1929, da qual, não seja esquecido, se saiu de maneira substancial somente com a segunda guerra mundial (60 milhões de mortos).
Pareceu-me poder interpretar o evento como a busca de uma tradução na prática daquela “Caritas” à qual é dedicado o texto: uma convicta afirmação de solidariedade perante todos aqueles (veja os cem milhões de desempregados ou desocupados) que experimentam na própria pele os efeitos devastadores da crise. Considerei plenamente compartilhável a severidade da leitura do conjunto de degenerações produzidas pelas modalidades, com excessiva frequência perversas, com que veio se desenvolvendo o processo de globalização, sendo artífices as sociedades multinacionais e a indiscriminada liberdade de movimento dos capitais financeiros. Muito empenhativo e, ao meu juízo, indispensável é também o apelo (p. 34) ao princípio de gratuidade, à vida percebida como dom, da qual segue que “o ser humano é feito para o dom que exprime e atua a dimensão de transcendência”. Talvez o homem moderno esteja erroneamente convencido de ser o único autor de si mesmo, de sua vida, da sociedade”. (...).
Prosseguindo na leitura e entrando no mérito das modalidades de resposta ao desastre sócio-econômico, considerei muito interessante o apelo ao princípio de “subsidiaridade” (p. 61), segundo o qual é oportuno que se possa desenvolver da melhor forma tudo o que os cidadãos podem realizar através da auto-organização. A este respeito é certamente o caso de compartilhar a clarificação referida à p. 58, ou seja, que o princípio de subsidiaridade seja mantido em estreita conexão com o princípio de solidariedade, e vice-versa, porque, se a subsidiaridade sem solidariedade descamba para o particularismo social, também é verdade que a solidariedade sem a subsidiaridade decai no assistencialismo que humilha o portador da necessidade.
Estamos naquele vasto e interessante arquipélago de experiências associativas que vai sob a denominação de “terceiro setor” ou “privado social”, ao qual a Encíclica dedica um desenvolvimento temático muito extenso e favorável.
A esse respeito, ao concordar com esta concepção positiva, sinto, todavia, dever relevar – também por experiência direta no setor – que os valores dos quais é portador “o terceiro setor” estão em clara antítese com os do sistema econômico ainda dominante, isto é, o capitalismo: segue que todo propósito de consolidação e difusão do “terceiro setor” só pode conectar-se a um processo de superação dos paradigmas neoliberais.
A “terceira via” da Igreja oficial
Minha convicção em relação à inelidibilidade desta superação me induz a colocar a pergunta de fundo: por que a Igreja católica oficial jamais chegou a uma condenação clara e inequívoca do sistema capitalista?
Tento uma síntese rapidíssima do pensamento sócio-econômico expresso pela Igreja de Roma.
Desde a primeira encíclica social em sentido moderno, A "Rerum Novarum" de Leão XIII (1891), veio se delineando aquela que permanecerá como estrada mestra, ou seja, a elaboração de uma “terceira via” entre a cultura liberal e a socialista.
A dignidade da pessoa humana, entendida como sujeito único, destinado à eternidade e consequentemente chamado a relações de solidariedade com o próximo, está no centro da reflexão: preocupação constante é a de evitar, de um lado, exaltações acentuadas de interesse pessoal e, do outro, a convicção da absoluta prioridade do interesse coletivo.
Este percurso se vai aos poucos integrando com as sucessivas encíclicas sociais, como:
- “Quadragesimo anno” de Pio XI (1931), que enuncia em particular o princípio de subsidiaridade;
- “Pacem in terris” de João XXIII, que denuncia sem meios termos a iniqüidade da distribuição das riquezas: i-niquidade que pode induzir à guerra, da qual ele pronuncia uma das mais convincentes e severas condenações, definindo-a como “manifestação de loucura”.
- “Populorum progressio” de Paulo VI, que acentua com determinação a condenação da miséria na qual vive a maioria dos homens e repisa com força a condenação da guerra;
- “Centesimus Annus” de João Paulo II, na qual se enfrenta expressamente o tema do capitalismo, chegando, em extrema síntese, à conclusão de condenar a versão “selvagem” do capitalismo e de considerar, ao invés, aceitável o assim chamado “capitalismo de face humana”, quer dizer a liberdade de mercado num contexto de regras adequadas.
Sobreveio-me então esta consideração: do momento em que a opção da “Centesimus Annus”, na qual também Bento XVI se inspira, é em substância a que ainda segue a maioria dos economistas, poderia parecer lícito perguntar por que alguém, a começar por quem escreve, se surpreenderia e se interrogaria a propósito da adequação da Igreja oficial ao ponto de vista da maioria.
A resposta que sinto dever dar é também ela uma interrogação, isto é: do momento em que Jesus de Nazaré é a figura central de referência da Igreja e morreu na cruz, teria ele talvez sofrido este trágico fim para se adequar às orientações da maioria de seu tempo?
Contra as orientações da ordem constituída
Segundo o testemunho dos Evangelistas, a mensagem e a experiência de vida de Jesus se desenvolveram segundo linhas de radical contestação das linhas de poder consolidadas na Palestina de seu tempo.
- À prepotência do ocupador romano, fundada no direito do mais forte, ele opôs os princípios revolucionários do “Sermão da Montanha”: “bem-aventurados os pobres, os sedentos de justiça, os construtores da paz” (Lc 6,20-25), e deixou aos discípulos um mandamento conturbador: “amai os vossos inimigos” (Lc 6,27-28).
- Ao formalismo degenerando em hipocrisia da casta sacerdotal de Jerusalém, Jesus opôs a mensagem à samaritana: “Já não adorareis Deus sobre este monte e neste tempo, mas em espírito e verdade” (Jo 21, 23).
E, a propósito de Deus, Jesus, no silêncio das perguntas e da escuta das longas noites de oração (Lc 6/12), intuiu ser de estirpe divina tanto sua própria natureza como a de todos os homens: daqui deriva o apelativo afetuosamente familiar de Pai com que se dirige, de fato, a Deus. E, é precisamente nesta intimidade filial que o Nazareno consegue perceber e comunicar-nos as conturbadoras modalidades de amor pela justiça com que este Pai se manifesta aos próprios filhos, a começar pelos últimos: “derrubou os poderosos dos tronos,/ elevou os humildes;/ cumulou de bens os famintos,/ afastou de mãos vazias os ricos” (Lc 1, 52-53).
Como não sentir de qual conturbação das categorias do mundo Jesus se sente portador? É o que ele chama o advento do “Reino de Deus”, ou seja, a realização sobre a terra, para atualizar o Céu, dos valores fundantes da justiça e da não violência: e é por fidelidade ao “Reino” que Jesus morre crucificado como um sublevador da ordem constituída.
Mas então, caso se consiga demonstrar que o sistema capitalista (qualquer que seja sua qualificação) é, por sua própria natureza, injusto e violento, se teria implicitamente a resposta à pergunta de fundo em relação à compatibilidade do próprio sistema com a mensagem cristã.
A violência do capitalismo
Procuro aventurar-me na tentativa de desenvolver a demonstração que segue: o âmbito de referência é uma sintética análise do contexto e das modalidades com e pelas quais se determinou a crise economômico-financeira que estamos sofrendo.
1. Quanto ao contexto, é importante recordar que, desde a queda do muro de Berlim, “o mundo ocidental”, em particular o anglo-saxão, é atravessado por uma espécie de delírio de onipotência: reduziu-se o perigo de que um sistema alternativo ao capitalismo possa conquistar as massas mundiais e se tornar dominante. Os “animal spirits” do sistema vencedor tem à sua disposição o mundo inteiro e se esbaldam sem hesitação através de:
a) a absoluta liberdade de mercado, em obséquio à dogmática neoliberal que atribui à tutela do interesse pessoal o melhor critério para otimizar as escolhas;
b) a afirmação axiomática que economia real e finanças (consumos e lucros) devem expandir-se ao infinito, com as aberrantes consequências da precarização do fator trabalho – para inchar a acumulação – e da rapina dos recursos naturais;
c) a privatização selvagem das atividades econômicas e de serviço (veja-se a água) geridas pelos Entes Públicos;
d) uma estratégia fiscal em favor das classes possuidoras;
e) uma desregulamentação acelerada, principalmente no campo financeiro, com o efeito deletério de favorecer o comportamento audacioso das estruturas operativas do setor, até o limite do código penal (vejam-se os paraísos fiscais);
f) uma intensa concentração das empresas para fazer frente à dimensão mundial dos mercados, a assim dita globalização, da qual se tornam protagonistas aqueles dinossauros denominados corporation (multinacionais): um dos efeitos mais preocupantes é que, precisamente em virtude da força obtida (através da criação de oligopólios), as multinacionais, em muitíssimas realidades nas quais operam – a começar pelos Estados Unidos – conseguiram, em termos de dinâmicas de poder, afirmar de modo invasivo a própria vontade com respeito à prevalência do poder político estatal.
De quanto precede deriva um cenário social todo empostado sobre a tutela dos interesses poderosos que, precisamente por suas lógicas internas, só podiam gerar uma concentração escandalosa de riqueza, e portanto de poder, em detrimento de um substancial empobrecimento da maioria da população mundial, mesmo tomando em conta as mudanças determinadas pela surpreendente realidade chinesa e indiana.
- É sintomático o andamento divergente das curvas dos lucros em relação às dos salários, em ascensão os primeiros, com lucro raso os segundos. Bastem estas duas considerações:
- Para ganhar quanto os top manager das multinacionais, um trabalhador ocidental com um salário médio anual de 25.000 euros, deveria trabalhar entre 400 e 1.000 anos (nos anos 60 teriam bastado 40 anos): talvez seja de mau gosto perguntar-se quantos séculos deveriam trabalhar aqueles mais de 1,3 bilhões de pessoas que, ganhando dois dólares ao dia, não superam a linha de pobreza?
- Em nível mundial se estima que os 20% mais ricos desfrutam dos 86% da riqueza produzida, enquanto os 40% mais pobres devem contentar-se com míseros 3%.
Ainda deixa margem de incerteza o conteúdo de injustiça e de violência do capitalismo? Mas, prossigamos.
2. Quanto às modalidades, assume particular relevo o assim chamado processo de financiarização da economia, vale dizer a desmesurada dilatação da atividade financeira em relação à produtiva. Como mencionamos mais acima, o sistema capitalista sobrevive somente numa lógica de crescimento contínuo: deve persegui-la a todo custo, também ao custo da guerra.
No decurso dos anos 70 se determinou um exaurimento das bases tecnológicas e econômicas do assim chamado fordismo, ou seja, da produção em massa de bens de consumo em mastodônticas estruturas produtivas (como de montagem, etc.). E, a progressiva saturação do mercado foi acompanhada pelo declínio da taxa de lucro. Assim, os patrões, para reconduzir ao alto os lucros – além de apostar na automação e robotização de processos produtivos inteiros sem redução das horas de trabalho, no deslocamento dos centros produtivos para áreas de salários achatados, em máximas acelerações fiscais, na liberdade de contaminação/poluição, na precarização acelerada do fator trabalho, com deletérios efeitos de alienação – embocaram sempre mais decididamente na estrada, precisamente, da financiarização.
“Isso quer dizer que, para compensar os lucros insatisfatórios da economia real, se organizaram (ver C. Marazzi, “Finanças queimadas” [Finanza bruciata], ed Casagrande, pp. 77 ss.) “dispositivos de produção e captação do valor produto no exterior dos processos diretamente produtivos”.
Vale dizer que, para acrescer o retorno do capital, se tornaram prioritários os valores de Bolsa em relação à multiplicidade dos “portadores de interesse” das empresas, como os assalariados, os fornecedores, os consumidores, o ambiente e as gerações futuras. As empresas se tornam sempre mais dependentes da produção de rendimentos (geração de dinheiro por meio de dinheiro) como opção para manter altos os lucros.
De outra parte, a progressiva instauração de situações de excesso de capacidade produtiva (valendo para todo o setor automobilístico) tornou necessário estimular o consumo através de paradoxais estruturas publicitárias, principalmente através de facilitações sempre mais voltadas ao endividamento, até aquela desolação técnica e moral representada, nos EUA, pelos assim ditos empréstimos sub prime, que concorreram de modo significativo para desencadear a crise em curso. (...)
Como se pode deduzir do precioso texto de L. Gallino “Con i soldi degli altri” [Com o dinheiro dos outros] (ed. Einaudi), é impressionante o peso dominador que as finanças vêm assumindo: uma massa enorme de poupança da ordem de 53.000 bilhões de dólares (aproximadamente igual ao PIB do mundo) é gerida por entes financeiros privados (Fundos de investimento, Fundos de pensões, Companhias de seguros, Fundos especulativos, etc. (...), chamados investidores institucionais que tem orientado o emprego do dinheiro recolhido em troca da aquisição de ações e obrigações. Determinou-se assim uma situação na qual mais da metade do capital acionário das primeiras cem empresas por valor bolsístisco nos EUA, na França, Alemanha e Reino Unido se encontra na carteira destes investidores institucionais, cujos representantes nos Conselhos de Administração das sociedades partícipes tem recebido o mandato de indicar os 15% como rendimento mínimo do capital investido, a se realizar preferivelmente no breve prazo. Neste quadro, é bastante evidente que os investidores não se fazem escrúpulo se esses rendimentos são assegurados por sociedades que traficam em armas ou por multinacionais empenhadas no desflorestamento da Amazônia. (...)
O sistema capitalista, em relação às debilidades da eco-nomia real, procurou salvar-se com a “financiarização”. Mas, também esta última, por suas dinâmicas internas, gera instabilidades nos mercados: a gestão do dinheiro e dos seus títulos representativos não tem as ancoragens objetivas de referência da economia real, enquanto se ressente fortemente das reações humorais dos operadores: o coeficiente de risco dos títulos financeiros, enquanto construídos sobre sofisticadíssimos cálculos matemáticos, não consegue cobrir a totalidade das possíveis reações subjetivas aos estímulos externos.
Uma demonstração empírica desta instabilidade deriva da constatação que, desde quando as finanças chegaram a posições de domínio sobre os mercados (em torno da metade dos anos 80), aproximadamente a cada dois anos e meio se verificou uma crise financeira, até aquela que estamos vivendo, a qual, por sua carga devastadora, absolutamente não pode ser confrontada com as precedentes, configurando-se como verificação histórica de uma progressiva falência do sistema.
Obviamente os interesses constituídos fazem todo esforço para tornar crível a tese que antes ou depois tudo voltará a ser como antes, salvo a necessidade de controles mais eficazes. E, nesta ótica conseguiram obter vagões de dólares e variados valores para “fazer recuperar a operacionalidade” de bancos, investidores institucionais e empresas: o absurdo é que, quanto maiores são as falências, tanto maior é a probabilidade de sobrevivência, porque tanto é o que paga Pantaleão, o tão esconjurado e ineficiente Estado. É a enésima situação do engano, do furto tornado institucional, segundo o qual os úteis pertencem ao privado e as perdas à coletividade.
Há uma objetiva necessidade de superar esta práxis predatória: estamos andando em meio à própria sobrevivência da espécie humana, ameaçada pela incidência de uma crise ecológica que o próprio sistema contribuiu fortemente para criar. Tal sistema também poderá sobreviver por um pouco de tempo, mas se tornará sempre mais claro que mantê-lo em vida se configura sempre mais como uma “tenacidade terapêutica”. Como cristão, ficarei verdadeiramente feliz se também as autoridades eclesiásticas se decidissem a retirar sem hesitação este doloroso espinho.Extraído de http://www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detalhe&id=27676 acesso em 20 nov. 2009.
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