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terça-feira, 5 de maio de 2009

Evangelhos Sinóticos

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O problema sinótico coloca-se, portanto, para o período que se estende entre a composição dos primeiros evangelhos por Mateus, Marcos e Lucas, e a forma em que agora os conhecemos, a qual, para o essencial, poderia remontar ao primeiro início do séc. II. Como explicar ao mesmo tempo as semelhanças e as divergências que existem entre os três evangelhos sinóticos tais como hoje os conhecemos? Este problema suscitou muitas controvérsias há dois séculos, e aqui não é o caso de entrar em minúcias demasiadamente técnicas. Indiquemos simplesmente as tendências. Indiquemos simplesmente as tendências gerais da exegese moderna. A teoria mais satisfatória é a das Duas Fontes. Elaborada pela metade do século XIX, ela é aceita hoje com mais ou menos convicção pela grande maioria dos exegetas, tanto católicos como protestantes. Uma das duas fontes em questão seria Mc (tradição tríplice). Porém MT e Lc oferecem também numerosas seções, especialmente palavras de cristo (como o sermão inaugural de Jesus), desconhecidas de Mc (dupla tradição). Como, segundo a teoria das Duas Fontes, estes dois evangelhos são independentes um do outro, seria necessário admitir que eles tenham bebido em outra fonte que se costuma chamar Q (inicial do termo alemão Quelle, fonte). Quanto às seções próprias, seja de Mt, seja de Lc, elas proviriam de fontes secundárias conhecidas por esses dois evangelhos.


Apresentada sob esta forma, a teoria das Duas Fontes expõe-se a uma séria objeção. Mesmo nas seções que provêm da tradição tríplice, Mt e Lc oferecem entre si numerosas concordâncias contra Mc, positivas ou negativas, mais ou menos importantes. Se é fato que certo número dessas concordâncias podem se explicar como reações naturais de Mt o de Lc esforçando-se por melhorar o texto um pouco infeliz de Mc, resta certo número delas que é difícil explicar. Alguns exegetas aperfeiçoaram então a teoria, supondo que Mt e Lc dependeriam, não do Mc tal qual chegou até nós, mas de uma forma anterior (proto-Mc), ligeiramente diferente do Mc atual. Apesar deste último ponto, é certo que a teoria das Duas Fontes, relativamente simples, permite justificar grande número de fatos sinóticos. Por outro, ela está em parte de acordo com o dado tradicional herdado de Pápias: a prioridade é dada a Marcos. Os relatos deste evangelho, vivo e rico em minúcias concretas, poderiam muito bem ser eco da pregação de Pedro. Alguns chegaram até a propor a identificação da fonte Q (coletânea, sobretudo, de palavrasde Jesus) com o Mt, cujos oráculos do Senhor, Pápias diz que Mateus colocou em ordem. Todavia, Pápias emprega a mesma expressão para designar o evangelho de Mc (ver também o título de sua obra) e nada permite pensar que o Mt do qual ele fala só teria contido logia. Permanece verdadeiro que a existência de uma coletânea de palavras de Jesus, servindo às necessidades da catequese, é muito verossímil; o evangelho - não canônico- de Tomé seria um bom exemplo disso.


Há alguns decênios, alguns exegetas, sobretudo na Inglaterra e Estados Unidos, quiseram retomar uma teoria proposta há pouco mais de dois séculos por Griesbach e que teria a vantagem, na opinião deles, de evitar o recurso a uma fonte hipotética como a Q. Ela se apóia sobre a tradição dos Anciãos noticiada por Clemente de Alexandria: o evangelho primeiro seria o de Mt, Lc dependeria de Mt, e Mc, vindo por último, dependeria tanto de Mt como de Lc, os quais ele teria simplificado. É fato que Mc parece freqüentemente ter fundido os textos paralelos de Mt e de Lc - fato que a teoria das Duas Fontes tem dificuldade para justificar. Mas o que se fez do dado tradicional - Pápias e Clemente - de Marcos escrevendo a pregação de Pedro? E como supor que Marcos teria deliberadamente omitido os evangelhos da infância como também a maioria das palavras do Senhor, particularmente a quase totalidade do discurso inaugural de Jesus?


Outros exegetas, por fim, permanecem persuadidos de que a teoria das Duas Fontes, apesar de suas vantagens, é demasiadamente simples para poder explicar a totalidade dos fatos sinóticos. Sem dúvida Mc aparece freqüentemente mais primitivo que Mt e Lc, mas o inverso é igualmente verdadeiro: acontece que ele apresenta traços tardios, tais como paulinismos ou ainda adaptações para os leitores do mundo greco-romano, enquanto Mt ou Lc, mesmo nos textos da tradição tríplice, conservam pormenores arcaicos, de expressão semítica ou de ambiência palestina. Apresenta-se então a hipótese de que seria preciso considerar as relações entre os sinóticos, não mais em nível dos evangelhos tais como os possuímos agora, mas em nível de redações mais antigas que se poderiam chamar de pré-Mt, pré-Lc, e até de pré-Mc, visto que todos esses documentos intermediários poderiam, por outro lado, depender de uma fonte comum que não seria outra que o Mt escrito em aramaico, depois traduzido para o grego de diferentes modos, de que falava Pápias. De onde a possibilidade de considerar inter-reações entre as diversas tradições evangélicas mais complexas, mas também mais flexíveis, que poderiam melhor explicar todos os fatos sinóticos. Esta hipótese levaria em conta também um fato notado desde o fim do século XIX: certos autores antigos, o apologista Justino em particular e outros depois dele, citam os evangelhos de Mt e de Lc sob uma forma um pouco diferente daquela que conhecemos e, por vezes, mais arcaica. Não teriam eles conhecido esses pré-Mt e pré-Lc mencionados acima? Estudos precisos mostraram igualmente que Lc e Jo oferecem entre si contatos muito estreitos, sobretudo – mas não exclusivamente – no que se refere aos relatos da paixão e da ressurreição, que poderiam ser explicados pela utilização de uma fonte comum ignorada por Mc e Mt.


É muito difícil precisar a data da redação dos sinóticos, e esta datação dependerá forçosamente da idéia que se tem do problema sinótico. Na hipótese da teoria das Duas Fontes, colocar-se-á a composição de Mc um pouco antes – Clemente de Alexandria – ou um pouco depois – Irineu – da morte de Pedro, portanto, entre 64 e 70, não depois desta data, pois ele não parece supor que a ruína de Jerusalém já tenha sido consumada. As obras de Mt grego e de Lc seriam posteriores a ele, por hipótese; isto seria confirmado pelo fato de que, com toda probabilidade, Mt grego e Lc supõem que a ruína de Jerusalém é fato realizado (Mt 22,7; Lc 19, 42-44; 21, 20-24). Deveríamos então datá-los entre 75 e 90. Mas é preciso reconhecer que este último argumento não é o único. Ao contrário, por que não dizer que Ezequiel teria profetizado a ruína de Jerusalém pelos caldeus depois da tomada desta cidade (comparar Ez 4, 1-2 e Lc 19, 42-44), o que é manifestadamente falso? Para uma datação tardia do Mt grego, seria mais oportuno invocar certas minúcias que denotam uma polêmica contra o judaísmo rabínico originado da assembléia de Jâmnia, que se realizou pelos anos 80. E se admitirmos que os sinóticos fossem compostos por etapas sucessivas, a datação de sua última redação deixa a possibilidade de datas mais antigas para as redações intermediárias, a fortiori para Mt aramaico que estaria na origem da tradição sinótica. 


De qualquer modo, a origem apostólica, direta ou indireta, e a gênese literária dos três sinóticos justificam seu valor histórico, permitindo apreciar como é preciso entendê-lo. Derivados da pregação oral que remontam aos inícios da comunidade primitiva, eles tem na sua base a garantia de testemunhas oculares (Lc 1, 1-2). Seguramente, nem os apóstolos nem os outros pregadores e narradores evangélicos procuraram fazer historia no sentido técnico e atual deste termo. Seu propósito era mais teológico e missionário: falaram para converter e edificar, inculcar e esclarecer a fé, defendê-la contra os adversários (2Tm 3, 16). Mas fizeram isso com o auxílio de testemunhos verídicos, garantidos pelo Espírito (Lc 29, 48-49; At 18; Jo 15, 26-27), exigidos tanto pela probabilidade de sua consciência quanto pela preocupação de não se tornar presa de refutações hostis. Os redatores evangélicos que consignaram e reuniram seus testemunhos fizeram-no com o mesmo cuidado de honesta objetividade que respeita as fontes, como o provam a simplicidade e o arcaísmo de suas composições em que se misturam um pouco às elaborações teológicas posteriores. Em comparação com alguns evangelhos apócrifos que formigam de criações legendárias e inverossímeis, são bem mais sóbrios. Se os três sinóticos não são biografias modernas, oferecem-nos, entretanto, muitas informações históricas a respeito de Jesus e a respeito dos que o seguiram. Pode-se compará-los às Vidas helenísticas populares, por exemplo, as de Plutarco, simpatizando com seu assunto, mas sem apresentar um desenvolvimento psicológico que poderia satisfazer o gosto contemporâneo. Mas há modelos mais próximos no Antigo Testamento, como as histórias de Moisés, de Jeremias, de Elias. Os evangelhos se distinguem dos modelos pagãos por sua ética séria e sua finalidade religiosa, dos modelos veterotestamentários por sua convicção na superioridade messiânica de Jesus. Isso não significa, entretanto, que cada um dos fatos ou dos ditos que eles noticiam possa ser tomado como reprodução rigorosamente exata do que aconteceu na realidade. As leis inevitáveis de todo testemunho humano e de sua transmissão dissuadem de esperar tal exatidão material, e os fatos contribuem para esta precaução, pois vemos o mesmo acontecimento ou a mesma palavra de Cristo transmitida de modo diferente pelos diferentes evangelhos. Isso, que vale para o conteúdo dos diversos episódios, vale com mais forte razão para a ordem segundo a qual eles se encontram organizados entre si. Tal ordem varia segundo os evangelhos, e é o que deveríamos esperar de sua gênese complexa: elementos, transmitidos de início isoladamente, pouco a pouco se amalgamaram e agruparam, se aproximaram ou se dissociaram, por motivos mais lógicos e sistemáticos do que cronológicos. É necessário reconhecer que muitos fatos ou palavrasevangélicas perderam sua ligação primeira com o tempo e o lugar, e freqüentemente erraríamos caso tomássemos literalmente conexões racionais tais como “então”, “em seguida”, “naquele dia”, “naquele tempo”, etc. 


Essas constatações, porém, não acarretam nenhum preconceito no que se refere à autoridade dos livros inspirados. [...] Do ponto de vista puramente histórico, um fato que nos é atestado por tradições diversas e até discordantes reveste, em sua substancia, riqueza e solidez que não poderia lhe dar uma atestação perfeitamente coerente, mas do mesmo teor. Assim, certos ditos de Jesus se encontram duplamente atestados: conforme a tradição tríplice em Mc 8, 34-35/ Mt 16, 24-25/ Lc 9, 23-24, e segundo a dupla tradição em Mt 10, 37-39/Lc14, 25-27. Há aqui uma variação entre formulação negativa e positiva, mas o sentido permanece o mesmo. Podem-se salientar uns trinta casos análogos, o que lhe da um sólido fundamento histórico. O mesmo princípio vale para as ações de Jesus; por exemplo, o relato da multiplicação de pães nos foi transmitido segundo duas tradições diferentes (Mc 6, 35-44 e p.; 8, 1-9 e p.). Não se poderia, portanto, por em dúvida que Jesus tenha curado doentes sob pretexto de que as minúcias de cada relato de cura variam segundo o narrador. Os relatos do processo e da morte de Jesus, como os das aparições do Ressuscitado, são casos mais delicados, mas os mesmos princípios se aplicam para apreciar seu valor histórico.  [...]


Fragmento de texto extraído de INTRODUÇÃO AOS EVANGELHOS SINÓTICOS, da Bíblia de Jerusalém, p. 1692-1694.

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