2008/2009 é um ano de jubileus para a Família Franciscana. Mas, o que celebramos realmente? Para nos acercarmos um pouco ao conteúdo dos jubileus, gostaria incluir algumas anotações.
1. O Desenvolvimento da Terceira Ordem Franciscana (Família Franciscana)
A Terceira Ordem Franciscana tem uma história muito complexa. Remonta aos tempos pré-franciscanos: aos penitentes, entre os quais se contavam também Clara e Francisco mas os que já existiam há mais tempo.
Deve-se mesmo voltar aos primeiros séculos da Cristandade. Considerou-se que haviam quatro pecados graves que levavam à exclusão da comunidade eucarística: assassinato, adultério, falso testemunho, blasfêmia. Quem cometesse um destes pecados tinha que fazer penitência pública: não podia exercer nenhum cargo honorário, era-lhe proibido o convívio conjugal e tinha de levar uma vida de renúncia sensível. Tinha de vestir uma vestimenta de penitência e tinha de se mostrar na mesma quando os cristãos se reuniam para celebrar a Eucaristia. Mas só podia ficar até ao começo da própria Eucaristia. E isto durante muitas semanas até ficar absolvido na Quinta-Feira Santa ou na Missa do Sábado de Aleluia sendo então admitido de novo na comunidade eucarística da Igreja.
Isto observou-se durante muitos anos. Mas depois chegaram os monges irlando-escoceses e introduziram uma nova prática de penitência: já não foi pública, mas particular. Introduziu-se a confissão – primeiro contra a resistência da Igreja, e só, paulatinamente, a Igreja aceitava esta prática. A antiga prática de penitência pública foi abandonada cada vez mais. Foi então que mulheres e homens que queriam viver mais estritamente o Evangelho, se perguntavam se não podiam viver voluntariamente aquilo que a antiga Igreja sugeria aparentemente. E assim se desenvolveu o movimento voluntário de penitência.
No início do século XIII procedeu-se então à estipular regras escritas deste movimento. Há toda uma série de tais textos. Um data ao ano 1221. Durante muito tempo, foi considerado como sendo a regra da Terceira Ordem, mesmo como texto de São Francisco. Por conseqüência festejava-se este ano como o ano da fundação da Terceira Ordem, até reconhecer que
- este texto não tinha nada que ver com Francisco,
- os franciscanos chamavam-se primeiro também “penitentes de Assis” e que havia muitas coisas que indicavam que os mesmos tinham muito da sua forma de viver em comum com os penitentes (o mesmo é válido para a forma de viver de Sta. Clara),
- o texto citado continha um parágrafo que admitia diferentes influências espirituais, também a de Francisco de Assis,
- muitas mulheres e muitos homens quiseram seguir as pegadas de Francisco, mas quiseram ficar “nas suas casas”. Foi a estes que Francisco dirigiu a sua “Carta aos fiéis”.
Qual é então a data do nascimento da Terceira Ordem Franciscana? Seria difícil fixar uma data convincente. Penso que poderíamos dizer também: 1208/09.
2. As Clarissa e o Movimento Feminino
É que as Clarissas também têm que ver alguma coisa com o ano do jubileu que vamos celebrar em 2008/2009? Penso que sim. No entanto, temos de ter especial cautela.
Só desde o ano de 1263 existe uma ordem com o nome explícito de “Clarissas”. Urbano IV determinou que todas as “Damas Pobres de São Damião” tivessem que chamar-se assim. Isto, no entanto, dá a entender algo que não existe. Pois aquelas que se deveriam chamar assim, dividem-se em dois grupos:
- num grupo muito maior e formado pelos conventos que deviam seguir a Regra que Ur[b]ano IV lhes tinha dado. Esta Regra, no fundo, é um texto que continua a Regra que o Cardeal Hugolino tinha dado à Ordem das Damas Pobres do Vale de Spoleto – um pouco melhorado e atualizado.
- num grupo muito pequeno de conventos que se orientaram na regra que Clara escreveu pouco antes da sua morte e que ficou confirmada por Inocêncio IV. O âmbito de validade foi muito reduzido: São Damião e outros poucos conventos.
É realmente muito admirável que o movimento dos penitentes, do qual falamos no mês passado, promova, em todas as partes e espontaneamente, a fundação de comunidades femininas. Mal há cidades nas quais não houvesse mulheres a saírem dos seus conjuntos familiares para se unirem: quiseram viver o Evangelho e levar uma vida na graça de Deus, dentro da cidade ou nos arredores. Mas não se pode descobrir nenhuma personalidade fundadora: tudo é espontâneo e independente. Aparentemente tinha chegado o tempo para uma nova figura da vida espiritual.
Porém há uma vontade ordenadora por parte da Igreja. O Cardeal Hugolino pede ao papa Honório III a licença de unir estas comunidades femininas. Escreve a Regra acima mencionada, dá-lhes uma clausura estrita unindo-as sob o nome de “Damas Pobres de São Damião” ou “do vale de Spoleto”. A partir de 1218 esta mão ordenadora de Hugolino nota-se em todas as comunidades. Aparece no palco da história uma nova Ordem monástica, embora as mulheres tivessem tido outra intenção.
Também em São Damião se impôs a influência de Hugolino. No entanto, é duvidoso que a sua Regra tenha sido seguida à letra. Clara tinha, pois, duas bases espirituais:
- O Privilégio da Pobreza de Inocêncio III (1216)
- A Forma de Vida de São Francisco do ano de 1212, a qual Clara vai incluir mais tarde no centro da sua Regra.
3. A Primeira Ordem
O ano 1208/1209 é tomado, pela Primeira Ordem, como a sua data da fundação. Mas, é possível sem mais nem menos?
Esta data só confirma o ano no qual “O Senhor lhe deu irmãos” a Francisco, como ele diz no seu testamento, isto é, no ano, em que o Papa confirmou verbalmente a assim chamada “regra original”. Não é, no entanto, uma data formal de fundação. Além disso, os irmãos chamam-se “penitentes de Assis” o que não significa outra coisa do que nasce em Assis e ao redor de Francisco uma forma especial dos “penitentes”, o que também há noutros lugares. (v. n° 1)
Estes penitentes, não são, por bastante tempo, uma ordem no sentido estrito do direito canônico. Eles formam uma espécie de fraternidade na qual estão obedientes mutuamente e unidos com fraternal amor entre eles. No princípio há poucos momentos institucionais: algumas frases da Bíblia, que devem ser seguidas por eles, algumas prescrições regulando a vida em comum. Não têm residências fixas, nenhum convento, nenhuma igreja. Pernoitam em amassarias, grutas, igrejas, ao ar livre. Tomam parte nas liturgias das paróquias. Trabalham temporalmente para ganhar a sua via. Vivem como os outros pobres. Andam pelo mundo, meditando, de vez em quando pedindo aos outros que se convertam a Deus. Normalmente andam de dois em dois. Muitas vezes ficam em lugares solitários, por algumas semanas. Uma vez por ano, juntam-se para um Capítulo comum de Pentecostes, para trocarem experiências: tanto positivas como negativas. Ambas as coisas são escritas e anexadas ou incluídas na regra original. Além disso, a crescente quantidade de irmãos pede medidas organizatórias: prescrições, divisões, a definição das responsabilidades. Assim se está fazendo um texto comprido, a “regra não bulada”. Embora válida não o é no sentido do direito eclesiástico.
Isto altera-se no ano de 1223: A pedido do Papa, Francisco escreve uma regra abreviada, na qual se fala também dos três Conselheiros Evangélicos. Os irmãos prometem agora “viver em obediência, sem posses, e em castidade”, desde há algumas décadas a forma prescrita pelo direito eclesiástico para uma comunidade se converter também formalmente numa ordem. A bula que agora confirma a regra, fala, por conseguinte, dum “ordo”. Duma fraternidade nasce assim uma verdadeira ordem. Portanto, deve considerar-se o ano de 1223 como data verdadeira da fundação da primeira ordem.
O ano de 1208/09 marca o nascimento de toda a família franciscana.
4. Algumas personalidades
Neste ano, não só a Terceira Ordem Franciscana celebra o ano do nascimento de Sta. Isabel de Turíngia (1207) como figura de referência espiritual. Ela é realmente digna de ser celebrada especialmente, pois viveu também uma renuncia radical inspirada por S. Francisco. Teve de descer para as mais diversas misérias dos homens. Olhou para além do seu próprio meio e quis ser solidária para com as pessoas que sofrem de injustiças, também na comida e na bebida, isto é, no consumo, pois em todo o seu estilo de vida. E por isso viveu – unida com os necessitados – as obras da misericórdia (Mt 25,31 seg.). Tal vida é uma fonte contínua de inspiração para toda a família franciscana e muito mais. Seria errado, pois, reivindicar esta fonte magnífica de inspiração só para si ou separar-se da maior fonte franciscana. Além disso, há outros dados dentro da sua biografia que serviam para celebrar um jubileu: o ano no qual aceitou o impulso franciscano (1225), a ano do seu estabelecimento em Marburgo (1229), o ano da sua morte (1231). Para a Ordem Terceira havia outras personalidades nas quais seria palpável o impulso franciscano e as quais poderiam ser homenageadas.
Semelhantes personalidades também haveria nos outros ramos da Família Franciscana. O fato de Francisco e Clara jogarem um papel especial é natural. No entanto, seria igualmente errado reivindicar estas personalidades só para o próprio espaço interior. Pertencem, como santos, a toda a família franciscana e, além disso, à Igreja, mesmo a todo o mundo. Isto é válido porque constituem uma interpretação atual e existencial do Evangelho, isto é, da bem-aventurança dos pobres. Este impulso, no entanto, começa no ano de 1208/09 quando o impulso evangélico, numa nova forma histórica, se tornou eficaz socialmente gerando comunhão.
Peço licença de citar, neste contexto, do livro sobre Jesus do Papa:
“Talvez seja bom que nós, antes de seguirmos a meditação do texto, nos dediquemos um pouco à figura da história da fé, na qual esta bem-aventurança é transmitida mais densamente para a existência humana: Francisco de Assis. Os santos são os verdadeiros intérpretes das Sagradas Escrituras. O significado duma palavra é melhor explicado por aqueles que foram comovidos mais pela mesma vivendo-a melhor. Interpretação e Escritura não pode ser uma fato meramente acadêmico não podendo ser exilado para o meramente histórico. A Escritura tem em toda a parte um potencial futuro dentro de si que só se há de abrir na vivência a no sofrimento das suas palavras. Francisco de Assis ficou comovido pela promessa desta palavra na sua última radicalidade. Até ao ponto de dar mesmo os seus vestidos... Esta humildade extrema foi para ele, sobre tudo, a liberdade do servir, a liberdade da missão, última confiança em Deus que não só cuida das flores do campo, mas especialmente pelos seus seres humanos; corretivo da igreja do seu tempo, que, com o sistema feudal, tinha perdido a liberdade e a dinâmica do estar a caminho da missão; abertura interna a Cristo, ao qual ficou igual pelos estigmas de maneira que ele já não vivia realmente o seu ser, mas existiu totalmente de e em Cristo como o renascido. Pois não quis fundar ordem nenhuma, mas sim juntar meramente de novo o povo de Deus para que se ouvisse a palavra que não escapasse, com comentários eruditos, da seriedade da chamada. Mas, com a fundação da Terceira Ordem, aceitou, mesmo assim, a diferença entre a missão radical e a vida necessária no mundo. Ordem Terceira significa precisamente aceitar a missão da profissão com as suas exigências humildemente, e isso, na posição de cada um, mas, mesmo assim, orientar-se a uma comunhão interior profunda com Cristo que nos precedeu. “Ter como se não tivesse (1 Cor 7,29 sg).” O sentido das ordens terceiras é aprender esta tensão interna, talvez como uma obrigação mais difícil, e poder vivê-la realmente sempre de novo juntamente com os homens da sucessão radical; e assim se revela o que a bem-aventurança pode significar para todos...” (108 seg.)
5. A Terceira Ordem Regular
A determinação dos dados da sua fundação torna-se ainda mais complicada quando incluímos a Terceira Ordem Regular.
O Movimento dos Penitentes, que, a partir de 1208/09 encontra a sua expressão franciscana, está-se diferenciando cada vez mais: em 1223 a fraternidade franciscana converte-se em “Ordo Fratrum Minorum”. O movimento correspondente feminino perto de Clara de Assis converte-se, a partir de 1218, sob a influência do Cardeal Hugolino numa ordem tradicional monástica, cuja orientação franciscana só é segurada pouco antes da morte de Clara (1252), no entanto, só para a parte mais pequena da ordem que, a partir de 1263, é denominada no seu total como Ordem das Clarisas.
Desde o início há sempre iniciativas e movimentos que, primeiro sob o estatuto dos penitentes, seguem uma inspiração franciscana estabelecendo-se, a partir de 1289, como Terceira Ordem Franciscana.
Acrescentam-se duas tendências:
- Homens e mulheres que querem viver franciscanamente unem-se em comunidades. Confessam os 3 votos evangélicos, que chegam a ser cada vez mais o critério original duma ordem no sentido jurisdicional da Igreja. O fato que também os ditos leigos adotem a forma de vida dos conselheiros encontra resistência, pois João XXII tem de proteger estes franciscanos contra os respectivos ataques. Em 1323 declarou que a forma de vida não só era louvável, mas também correspondia à vontade de Francisco. Os votos eram possíveis para todos que se esforçavam por uma perfeição maior. Pouco tempo depois surgem também as tarefas sacerdotais e pastorais. A ordem é aprovada oficialmente pelo papa Nicolau V. Simultaneamente recomenda-lhes organizarem-se como ordens autênticas, distinguirem-se dos eremitas franciscanos, convocarem um capítulo geral e elegerem um ministro geral. Igualmente deviam estabelecer estatutos próprios e trazer um hábito que se distinguia dos demais. Isto acontece em Montefalco no dia 29 de Abril de 1448. Em 1474 os estatutos próprios são aceites. Portanto, toda uma série de dados de fundação!
- Independentemente, há também, desde a segunda metade do século 13 comunidades de leigos espontâneas, entre outras as Beguinas, na Alemanha, p.ex. em Dillingen, Kaufbeuren, Mariastern - Augsburg... Houve a suspeita de heresia e, portanto, tiveram que adotar a clausura e a regra da Terceira Ordem. Juntam-se os eremitas que se referem a Francisco. Em 1521 o Papa Leão X dá-lhes uma regra comum correspondente que é válida até 1927. Desde esta data até depois do Concílio vale uma regra renovada. A estes grupos pertencem inúmeras fundações que, sobre tudo no século 19, se ocupavam de problemas sociais.
6. A conversão de S. Francisco
Acabo de voltar de Assis. Notei que aí se celebra um jubileu em 2006/2007: 800 anos desde a conversão de S. Francisco.
Não tendo em conta o fato de a acumulação de jubileus não ser boa nem desejável, é possível, no entanto, tomar esta data como motivo de comemorações específicas. Pois, neste tempo, Francisco fez as experiências espirituais decisivas: o encontro com o leproso, a experiência diante da Cruz de San Damiano, o deitar mão na restauração de igrejas, o desligamento dramático do pai.
Pode definir-se claramente a experiência mística fundamental que está ligada a todos estes acontecimentos: pelo contrário daquilo que se liga normalmente a Deus, resplandece o último segredo de Deus: aí onde se torce o nariz: no leproso que se torna o sacramento do Crucificado; ou vice versa: no Crucificado abre-se a vista para todos os excluídos desta terra. Não na acumulação das coisas deste mundo, não no ter, mas sim no ser, “ser pobre em coisas ou ser rico em virtudes” (Regra Bulada), na solidariedade conseqüente para com os pobres e os que sofrem deste mundo, reside o sentido que Deus inscreveu na história. A sucessão de Jesus, do Deus encarnado e crucificado, é a vocação franciscana.
O Papa Bento XVI foi a Assis por este motivo, dizendo:
“Desde que o rosto dos leprosos, amados devido ao amor de Deus, fez com que Francisco adivinhasse, duma maneira determinada, o segredo da “kenosis”, o segredo da descida de Deus dentro da carne do Filho dos Homens, desde que a voz da cruz de San Damiano implantou o programa da sua vida no seu coração: “Vai, Francisco, e restaura a minha casa” (2 Cel 1,6,10: FF 593), o seu caminho não foi outra coisa do que o esforço diário de se tornar mais parecido a Cristo. As chagas da cruz, feriram o seu coração, antes de que marcaram o seu corpo em La Verna. Pode dizer realmente com Paulo: “Não sou eu que vivo, mas Cristo vive dentro de mim”. O que foi a vida do Francisco convertido se não um grande ato de amor? Isto é demonstrado nas suas orações fervorosas, ricas em reflexões e louvor, o abraço carinhoso do Menino de Deus de Greccio, a sua reflexão da Paixão em La Verna, a sua “vida segundo as prescrições do Santo Evangelho (2 Test 14), a sua decisão pela pobreza e a sua procura de Cristo no rosto dos pobres. A sua conversão a Cristo que vai até à ansiedade de se “transformar” nele, convertendo-se numa imagem completa, explica o típico da sua vida, a eficiência na qual nos parece tão atual visto o grandes temas do nosso tempo: a procura pela paz, a proteção da natureza, a promoção do diálogo entre todos os homens. Francisco foi realmente um mestre nestas coisas. Mas é-o por parte de Cristo. Cristo é “a nossa paz” (v. Ef 2,14). Cristo mesmo está no princípio do cosmos porque tudo foi feito por Ele (v. Jo 1,3). Cristo é a verdade divina, o “logos” eterno, no qual todo o “diálogo” do tempo encontra o seu último fundamento. Francisco aceitou esta verdade “cristológica” profundamente na sua carne; está nas raízes da existência humana, do cosmos, da história”Realmente palavras magníficas acerca do momento da conversão de S. Francisco. No que diz respeito ao conteúdo, não há nada de objetar. Mas destaco o seguinte: 2006/2007 lembra uma experiência muito pessoal da sua vida. Pode perguntar-se se teríamos conhecimento deste fato se posteriormente não se tivesse juntado algo muito decisivo: Isto é: a encarnização da experiência pessoal ou deste impulso espiritual na forma social da Família Franciscana de três ramos. Esta forma começou em 1208/1209, quando “o Senhor me deu irmãos” (Test 14).
Extraído de http://www.ccfmc.net/wPortugues/cbcmf/aktuelles/Charisma_2008/Dados_da_Fundacao.shtml?navId=9 acesso em 06 set. 2008.
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