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quarta-feira, 10 de setembro de 2008

O encontro de Francisco com o lobo

Um paradigma para o diálogo

Todos nós conhecemos a famosa passagem de I Fioretti que marca o encontro de São Francisco com o lobo. A partir desse pequeno texto, não quero aqui fazer uma análise exegética. Tal como ele está em português, proponho uma interpretação que ajude a elucidar a dinâmica do encontro. Um olhar que ilumine nossa postura diante do diferente de nós, do outro.

O texto conta que São Francisco estando em Gubio, ficou sabendo de um lobo que estava tirando a paz do lugarejo, de forma que todos os habitantes tinham medo de sair da cidade. O diferente, nesse caso o lobo, causa medo, assusta e provoca pânico. Sendo assim causa um problema social atrapalhando a vida desse grupo, já que não sabem como lidar com isso.

Francisco toma conhecimento da situação e não começa a agir imediatamente a partir das informações que recebe dos outros. Ele quer conhecer o outro lado da história. Ter clareza da situação. Equilibrar as coisas. Nada melhor que conhecer a história a partir do lobo também.

No primeiro momento, Francisco toma a decisão de sair ao seu encontro, como nos narra o texto: “ quis sair ao encontro do lobo” e não esperar que ele venha a si, mas se propõe a sair de si, do seu local e ir até a situação do “outro”, se dispõe ao encontro. Não com critérios pré-estabelecidos, nem impondo condições, mas está disposto a encontrar o outro, como ele é, no estado e condição em que o outro se encontra.

Agir assim é não se prender a auto-suficiência, ou se colocar como alguém de grau superior, mas, “ pondo toda a sua confiança em Deus”. Colocar-se em atitude de reciprocidade e abertura, confiando em Deus e se lançar. Francisco, “tomou o caminho que levava ao outro lado”. Toma a iniciativa, sai do seu lugar e vai ao encontro.

Por mais diferente que o outro seja, e mesmo que não saibamos as disposições e intenções dele é necessário partir desarmado para o encontro. A iniciativa deve partir de mim de aproximar-me dele como irmão. Não importa como, nem quem seja. Eu opto tornar-me irmão dele, “ chamou a si e disse lhe assim: Vem cá, irmão lobo, ordeno-te da parte de Cristo que não faças mal a ninguém”.

No decorrer da história, Francisco se refere ao lobo sempre como a um irmão. Toma conhecimento das realidades vividas por esse irmão e as compreende, intuindo que as situações forçam esse irmão a agir daquela maneira.

O agressor é tão vítima quanto às vítimas que ele faz. Na verdade, a iniciativa de atacar é só uma estratégia para se defender. Quem tenta se mostrar forte provocando medo e coagindo, no fundo só está mostrando a sua fraqueza.

Para isso se recorre a uma máscara, a um cargo, e a tantas outras estratégias de se mostrar imbatível para não assumir seu medo e fragilidade. Ao partir da violência, o ser só mostra o quanto debilitado está. Às vezes, essa agressividade é somente um pedido de socorro.

Quando Francisco o encontra, o lobo também se deixa encontrar. Aquele está oferecendo a este irmão a chance de reconhecer seu estado.

Após compreender a situação, o próximo passo é propor uma aliança. Do encontro brota o laço de amizade, a cumplicidade, um pacto, uma proposta de paz e fraternidade. O outro acolhido se reconhece como tal se deixa cativar e se aceita como irmão. Assume essa cumplicidade respondendo como um irmão. Acontece um equilíbrio das relações de maneira a estabelecer um relacionamento de fraternidade e amizade.

Um relacionamento em disparidade, quando uma parte se sente sócio-econômica, hierárquica, intelectualmente ou num grau de santidade mais elevado é impossível acontecer um relacionamento fraterno.

Enquanto uma das partes é inferior não está acontecendo a fraternidade. Só posso criar laços com o igual. Entenda-se, não no sentido de relativizar as individualidades. Todos nós somos diferentes. Mas, é impossível estabelecer laços fraternos, se me julgo superior ou inferior aos outros. Isso tanto no caso das pessoas como das religiões. Se me sinto o único portador da verdade absoluta e vejo a fé dos outros como “superstição”, jamais poderemos ser irmãos.

A mania de “ser superior” mata todo diálogo, o crescimento e a alteridade. A tendência do que se julga superior é normatizar tudo de modo que o seu conceito de verdade seja o único válido e seus princípios sejam aplicados a todos. Sendo as regras que regem o jogo são unicamente as suas.

Partindo dessa pequena reflexão temos alguns pontos que seriam importantes para aprofundar. Podemos dizer que seriam os 10 mandamentos do encontro:
  1. A disposição de ir ao encontro do outro, ignorando os pressupostos e preconceitos adquiridos. Conhecer o outro a partir dele e não de idéias pré-concebidas, ou do que outros disseram.
  2. A coragem de se desarmar para o encontro. Tirar a armadura.
  3. Colocar-se no lugar do outro e procurar compreendê-lo, no seu contexto vital, entendendo por que age de determinada maneira. Calçar as sandálias do outro, pisar o mesmo chão.
  4. Confiar na Paternidade de Deus e sentir-se irmão.
  5. Tomar a iniciativa de ir ao outro como irmão. Não se importando com a reação e a disposição do outro. Vencendo assim suas resistências.
  6. Colocar-se na atitude de acalanto, acolher o outro, aceitá-lo incondicionalmente como ele é.
  7. Ter a disposição de ouvir o outro. Deixando que o outro seja o outro e não um espelho de minhas projeções.
  8. Ter coragem de criar laços libertadores; relações de amizade e fraternidade.
  9. Partindo do encontro, fazer uma proposta de um caminho juntos que transformem as relações.
  10. Dar ao outro o direito de aceitar ou não as proposições.
O tema do encontro é extremamente sério em nossa época. Os laços, as relações estão quebradas e na Vida Religiosa, também por estar inserida no mundo, recebe vários “contra-valores”, e podemos citar o afrouxamento das relações entre eles. Tudo isso nos leva a questionarmos, fazermos velhas perguntas que achamos banais, já nos fizemos, mas não devemos cansar de fazê-las: Como nos relacionamos com nosso corpo, com nossas emoções, com o irmão, seja ele mais velho ou mais novo, e com Deus? Será que estou atento ao meu leque de relações? De fato, me encontro e me deixo encontrar? Quero me encontrar? Estou atento as minhas relações cotidianas? Quando me relaciono seja em casa, seja na pastoral tenho consciência que comunico o meu ser aos outros?

Nossa contribuição ao Reino de Deus deve ser expressiva principalmente pelo nosso testemunho, ser simplesmente alguém que é sinal do Reino, não por feitos extraordinários, mas com a minha vida. Evangelizo com minha alegria? Eu me coloco como “Dom de Deus” para o irmão e reconheço nele esse dom?

Na verdade, esse tema do encontro, do diálogo, do relacionamento, da fraternidade não tem conclusão. Tem dia marcado pra começar, para acabar jamais, não devemos nos preocupar com o fim do caminho o importante é curtir o trajeto admirar a paisagem, estar em constante atenção diante da vida e do outro. Estar se adaptando, questionando, e como diz Santo Agostinho, estar com o coração inquieto. Cuidando com especial atenção e tudo o mais dependerá disso e como nos propõe Francisco, sempre recomeçando, pouco fizemos.

Frei Emerson Aparecido Rodrigues [OFMCap] Extraído de http://www.procasp.org.br/textos.php?id_texto=394 acesso em 10 set. 2008.

Um comentário:

  1. Lamentavelmente não houve uma análise exegética. Sou assinando do feed desse grandioso trabalho, mas sinto falta de um trabalho mais aprofundado.

    A maioria dos trabalhos apresentados giram entorno da espiritualidade e do carisma franciscano; falta, contudo, uma abordagem mais histórica sobre o personagem Francisco.

    Não sei se esse é o objetivo deste trabalho. Que fique, portanto, como sugestão para que se possa pensar em novas postagens no futuro com teor mais aprofundado.

    Breno

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