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quarta-feira, 26 de setembro de 2007

Amor franciscano

Deu na Adital:
Leonardo Boff *


Adital -
Quem diria que um homem que viveu há mais de 800 anos viesse a ser referência fundamental para todos aqueles que procuram um novo acordo com a natureza e que sonham com uma confraternização universal? Este é Francisco de Assis (+1226), proclamado patrono da ecologia. Nele encontramos valores que perdemos como o encantamento face ao esplendor da natureza, a reverência diante de cada ser, a cortesia para com cada pessoa e o sentimento de irmandade com cada ser da criação, com o sol e a lua, com o lobo feroz e o hanseniano que ele abraça enternecido.
[ . . . ]
O fascínio que exerceu desde seu tempo até os dias de hoje se deve ao resgate que fez dos direitos do coração, à centralidade que conferiu ao sentimento e à ternura que introduziu nas relações humanas e cósmicas. Não sem razão, em seus escritos a palavra "coração" ocorre 42 vezes sobre uma de "inteligência", "amor" 23 vezes sobre 12 de "verdade", "misericórdia" 26 vezes sobre uma de "intelecto". Era o "irmão-sempre-alegre" como o alcunhavam seus confrades. Por esta razão, deixa para trás o cristianismo severo dos penitentes do deserto, o cristianismo litúrgico monacal, o cristianismo hierático e formal dos palácios pontifícios e das cúrias clericais, o cristianismo sofisticado da cultura livresca da teologia escolástica. Nele emerge um cristianismo de jovialidade e canto, de paixão e dança, de coração e poesia. Ele preservou a inocência como claridade infantil na idade adulta que devolve frescor, pureza e encantamento à penosa existência nesta terra. Nele as pessoas não comparecem como "filhos e filhas da necessidade, mas como filhos e filhas da alegria" (G. Bachelard). Aqui se encontra a relevância inegável do modo de ser do Poverello de Assis para o espírito ecológico de nosso tempo, carente de encantamento e de magia.

Estando certa vez, no dia 4 de outubro, festa do Santo, em Assis, naquela minúscula cidade branca ao pé do monte Subásio, celebrei o amor franciscano com o seguinte soneto que me atrevo a publicar:
Abraçar cada ser, fazer-se irmã e irmão,
Ouvir a cantiga do pássaro na rama,
Auscultar em tudo um coração
Que pulsa na pedra e até na lama,

Saber que tudo vale e nada é em vão
E que se pode amar mesmo quem não ama,
Encher-se de ternura e compaixão
Pelo bichinho que por ajuda clama,

Conversar até com o fero lobo
E conviver e beijar o leproso
E, para alegrar, fazer-se de joão-bobo,

Sentir-se da pobreza o esposo
E derramar afeto por todo o globo:
Eis o amor franciscano: oh supremo gozo!

* Teólogo e professor emérito de ética da UERJ Leia na íntegra em http://www.adital.com.br/site/noticia.asp?lang=PT&cod=29726

sexta-feira, 7 de setembro de 2007

Francisco e a Mística do Tau

por Aldir Crocoli, OFMCap

Nesta última década o Tau (uma cruz sem a parte vertical acima da linha transversal) está se tornando quase moda. Artistas de telenovelas o usam pendurado ao pescoço, e muitos outros jovens o ostentam em seu peito, no pulso, em forma de brinco nas orelhas. Porque todas essas pessoas o carregam podemos apenas intuir, sem contudo ter certeza do motivo que fez este símbolo como que ressuscitar na história.

Há 50 anos, o tau não era mais que o sinal distintivo dos franciscanos e franciscanas da Ordem Franciscana Secular. Daí passou a ser usado por religiosos franciscanos em substituição ao hábito, por jovens da Jufra e, depois, pelo público em geral. Mesmo que este símbolo seja muito difundido, não resta dúvida que atualmente ele está em estreita relação com o franciscanismo e parece estar carregado de uma mística especial relacionada à pessoa de São Francisco e à família franciscana, ainda que não reservada aos franciscanos e franciscanas.

As origens bíblicas deste símbolo

A inspiração bíblica direta do Tau viria do livro do profeta Ezequiel (9,4), onde Deus pede para percorrer a cidade e marcar na fronte aqueles que não se conformam com a maldade existente dentro dela. Estes eram marcados com o sinal de Tau, isto é, a última letra do alfabeto hebraico. Eles seriam poupados quando passasse o anjo exterminador do mal, enquanto todos os demais seriam mortos.

Os biblistas entendem que o profeta Ezequiel, na verdade, se inspirou na página do Êxodo (12,13), no momento em que os hebreus no Egito, inconformados com o regime de escravidão que lhes era imposto, estavam se organizando para fugir de Faraó. Na véspera da partida, mataram o cordeiro, tingiram com sangue um Tau nos umbrais da porta. Ao passar o anjo exterminador durante a noite, poupou os primogênitos dessas casas. Nas demais havia choro e desespero. Os hebreus aproveitaram a confusão, fugiram e entraram deserto adentro, sem poderem ser alcançados pelo exército do inimigo que os perseguiu. Tornaram-se uma nação com projeto sócio-político de fraternidade e igualdade, e crente no único Deus libertador. Sentiram ser portadores da missão de mostrar a todos que “um outro mundo possível”.

A mesma mística, segundo os exegetas da Sagrada Escritura, pode ser encontrado em outras duas passagens bíblicas, no último livro, o Apocalipse: 7, 3-4 e 14, 1-7. Os 144 mil marcados na fronte (sempre com o mesmo sinal do Tau) foram salvos, porque não se deixaram condicionar pelo modo pervertido da sociedade e se deixaram redimir pelo sangue do Cordeiro imolado (Jesus Cristo).

Como se vê, é sempre a mesma idéia a perpassar os textos: ser marcado (por Deus) com o sinal do Tau porque inconformado com a maldade existente ao seu redor e, ao mesmo tempo, como expressão da opção por levar uma vida diferente, mais coerente com o desígnio de Deus.

Francisco e o Tau

Damien Vorreux, um pesquisador francês de nossos dias, nos informa que na Idade Média o povo usava o Tau como um meio mágico e milagroso para serem preservados da peste e de todo o poder diabólico. Muitos o levavam como anel no dedo, como amuleto ao pescoço ou então o pintavam no umbral da porta. Em 1212, na Cruzada das Crianças contra os muçulmanos, o Tau foi o símbolo escolhido desta luta contra o mal, o que “prova o valor afetivo desta bandeira e seu poder encantador”. Gregório de Tours, outro cronista francês, nos dá notícias de que o Tau era objeto de devoção do povo já em 546 na cidade de Clermont, mediante o qual esperava ser livre de pestes e outros males.

Como Francisco entrou em contato com esta tradição do Tau? Embora os dados não sejam muito abundantes, são mais que suficientes para o objetivo que nos interessa. Francisco nasceu e foi criado em Assis, a 180km de Roma. Mas ele esteve em Roma ao menos umas sete ou oito vezes. Em algumas dessas oportunidades permaneceu muitos dias, mais de mês, hospedando-se repetidas vezes junto ao hospital de Santo Antão, onde os Frades Hospitaleiros, dedicados aos leprosos e outros doentes, usavam ostensivamente esse símbolo do Tau: desenhado no bastão que fazia parte do seu traje, costurado por sobre o hábito, pintado nas portas dos quartos, nas panelas, nos pratos, em toalhas etc. Sempre faziam uso dele também nas orações de cura e nos exorcismos.

Em 1215, quando Francisco se encontrava em Roma participando do IV Concílio de Latrão, no dia 11 de novembro, o papa Inocêncio III fez um solene discurso para os mais de 800 padres conciliares e os convidou a serem “campeões do Tau”, isto é, ser os vanguardas da onda de renovação e conversão da Igreja que Deus esperava. “Com muita probabilidade, escreve ainda D. Vorreux, Francisco se deixou sensibilizar por estas palavras do papa e pela mística deste símbolo, passando a adotá-lo.

Nos escritos do próprio Francisco não encontramos nenhuma referência direta a este sinal bíblico. Ou melhor dizendo, Francisco nunca faz referência com palavras a este sinal. No entanto, a restauração da capelinha de Santa Maria Madalena, em Fonte Colombo, lugar onde Francisco teria feito o primeiro esboço da Regra, sob as camadas sobrepostas de cal, pode-se ver claramente o sinal do Tau desenhado em vermelho no umbral da janela, provavelmente próxima ao local onde costumava se ajoelhar para suas prolongadas orações. Também no bilhete da bênção dado a Frei Leão, Francisco substitui sua assinatura pelo desenho de um Tau. São Boaventura nos informa que “o Tau era um sinal muito querido do santo. Recomendava-o muitas vezes, fazia-o sobre si mesmo antes de iniciar qualquer trabalho e o escrevia de próprio punho no final das cartas que ele enviava, como se quisesse pôr todo o seu empenho em imprimir esse Tau, segundo a palavra do profeta (Ez 9,4) sobre a fronte daqueles que gemem e choram seus pecados, de todos os verdadeiros convertidos a Cristo Jesus”.

Para concluir, poder-se-ia resumir a três as idéias mais importantes da mística do Tau para Francisco.

a) O Tau está associado à cruz. Mas, se por um lado pode ser visto como sinônimo, por outro pode receber uma significação mais abrangente, já que ele já era evocado muitos séculos antes de Jesus Cristo. Luciano Sangermano reconhece no Tau um símbolo religioso ecumênico e aberto ao diálogo inter-religioso. Não é impossível que o espírito de Francisco tenha intuído neste símbolo uma possibilidade de aproximação com as outras crenças religiosas, sobretudo o judaísmo, naquele tempo em aberto contraste com o cristianismo.

b) O Tau aparece na Bíblia sempre em contexto de busca de conversão e de luta por libertação do pecado, as injustas estruturas sócio-políticas de dominação, como expressão de que seja substituído por um regime de verdadeira solidariedade humana.

c) Por fim, o Tau para Francisco seria o símbolo de uma opção por uma radicalidade maior de vida onde o Evangelho se torna a regra máxima do viver. Ou dizendo de forma diferente: uma vida de seguimento real das pegadas de Nosso Senhor Jesus Cristo. Assumir o Tau quer significar estar comprometido com a proposta de Cristo. Caberia nos perguntar, então, se essa “onda” do Tau constatada atualmente na sociedade não é também portadora, ainda que de modo velado, de um acalentado sonho de “um outro mundo possível”, calcado na fraternidade e na paz como Francisco buscou construir com seus irmãos e irmãs? Se assim o é, quem pudera que estivesse presente em todos os lugares e de todas s formas. Mas, caso contrário, ao menos os franciscanos e franciscanas deveríamos ser os portadores desta utopia que, claramente, integra a mística de São Francisco.

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