A comunidade cristã das origens é sinal da possibilidade histórica, e
não mera tensão escatológica, do ideal de pobreza na e para a Igreja
pregado por Francisco.
A opinião é de Marco Rizzi, professor de literatura cristã antiga da Università Cattolica del Sacro Cuore, em artigo publicado no caderno La Lettura, do jornal Corriere della Sera, 05-08-2012. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Eis o texto.
Há alguns dias, durante o show de
Patti Smith na
Villa Arconati,
uma aranha se empoleirou no microfone da cantora. O assistente que
havia se precipitado a removê-la da frente, com um gesto ameaçador, se
sentiu intimado, porém, a não fazer nenhum mal a ela. Ao contrário da
grande parte dos seus colegas do star system, o respeitoso pânico pelas
criaturas, incluindo aracnídeos, não deriva em Patti Smith de alguma
filosofia oriental, aprendida mais ou menos de segunda mão, mas sim de
uma intensa frequentação com
São Francisco e os seus textos.
Na última coletânea (
Banga. Believe or explode, Columbia Records), destaca-se uma longa reading,
Constantine's dream, o sonho de
Constantino, inspirada no célebre afresco de
Piero della Francesca na
Igreja de São Francisco, em
Arezzo.
O sonho do imperador se torna o da cantora, que reza com Francisco,
pinta com Piero, acompanha Constantino na batalha vitoriosa, antes, e
Colombo, depois, na descoberta da
América,
para concluir na noite apocalíptica do século XXI, em que "se dissolve
na luz o sonho do rei angustiado"; no pano de fundo – em italiano –, as
palavras da "oração simples" apocrifamente atribuída a Francisco.
Muitos leitores poderiam ficar totalmente perplexos pela aproximação de
Francisco ao imperador da reviravolta que fez do cristianismo a religião do
Império Romano e, ainda mais, à conquista da
América, viagem sinônima de todos os imperialismos, na ida e – sobretudo – na volta.
Mas décadas de investigação histórica demoliram a imagem um pouco tola e protoecologista do santo de
Assis, substituindo-a por um retrato de uma personalidade e de uma história de força e complexidade bem diferentes: em
Francisco,
o problema da natureza se liga estreitamente ao da pobreza e torna-se
central a distinção, que se tornaria fonte de todos os conflitos
posteriores com a autoridade eclesiástica, entre uso e posse, entre uma
relação com os bens da criação fundamentada no compartilhamento ou na
apropriação.
No entanto,
Francisco tornou-se principalmente
objeto, imprevisto e um pouco paradoxal, de uma série de reflexões em
âmbito filosófico e político, que fazem dele o portador de uma
"revolução" oposta e alternativa a toda forma de poder e de
imperialismo, que representaria a versão atual da instituição
eclesiástica que extinguiu a inspiração franciscano original.
Começou com
Toni Negri, que em
Império (Ed. Record) não teve escrúpulos em escrever como, na época pós-moderna, nos encontramos exatamente na mesma situação de
São Francisco
e, assim como ele, à miséria do poder, podemos contrapôr a alegria do
ser: "É uma revolução que nenhum poder poderá controlar. Nisso consiste a
irreprimível clareza e a irreprimível alegria de ser comunista".
Menos ingenuamente,
Massimo Cacciari (
Doppio ritratto. San Francesco in Dante e Giotto,
Ed. Adelphi) recorre à categoria de "profecia radical" para identificar
a essência da mensagem do santo (mas a contracapa sabe que, para
intrigar os leitores, é preciso falar justamente de "revolução
franciscana"); uma mensagem traída pelos seus dois sumos divulgadores no
plano literário (
Dante) e visual (
Giotto),
no momento em que se esforçam para reportá-lo às condições comuns da
existência humana para comunicá-lo ao auditório universal.
Do mesmo modo, os projetos religiosos, teológicos ou políticos que,
nos séculos posteriores, se remeteriam a Francisco nunca o
representariam plenamente, da mesma forma, aliás, que o modelo
cristológico de Francisco (o Jesus do esvaziamento de si, a kenosis)
resistiria, segundo Cacciari, "além de todo cristianismo".
Ainda mais radical é a abordagem de
Giorgio Agamben, que, denunciando o abandono do legado mais precioso do franciscanismo, identifica uma tarefa decisiva e indeferível para o
Ocidente:
pensar uma vida humana "totalmente subtraída das presas do direito e um
uso dos corpos e do mundo que nunca se substancie em uma apropriação".
Em tudo isso, porém, a mensagem de
Francisco não teria
mais nada a ver com o cristianismo, muito menos com a Igreja. O velho
ditado anarquista "a cada um segundo suas necessidades, de cada um
segundo suas capacidades", torna-se no neofranciscanismo anômico de
Agamben "pensar a vida como aquilo de que nunca se detém a propriedade,
mas apenas um uso comum".
Esse, no entanto, já era o programa da primeira primeira comunidade cristã descrita no quinto capítulo dos
Atos dos Apóstolos.
Sem esse precedente, de natureza estritamente eclesiológica, nem mesmo a
referência direta ao modelo de Cristo faria sentido para
Francisco:
a comunidade das origens é sinal da possibilidade histórica, e não mera
tensão escatológica, do ideal de pobreza na e para a Igreja pregado por
Francisco.
Na verdade, quem havia inaugurado uma saída "franciscana" para a
crise do pensamento marxismo havia sido ainda a publicação, desejada por
Paolo Pullega no início dos anos 1980, de uma coleção de escritos de
Gyorgy Lukács anteriores à reviravolta marxista, significativamente intitulada
Sulla povertà di spirito [Sobre a pobreza de espírito] (Ed. Cappelli, 1981), em que a referência era a
Francisco como o primeiro que havia procurado a pobreza, ao invés de sofrê-la. Nisso,
Lukács via uma analogia ao esforço de essencialização da revolução abstratista na pintura.
Dois anos antes, em setembro de 1979,
Patti Smith havia concluído a primeira fase da sua carreira com um memorável concerto em
Florença, no clima sombrio e sobre-excitado pelo terrorismo, pelas tensões sociais e pelas utopias revolucionárias que percorriam a
Itália nos últimos instantes dos anos 1970.
Ela mesma recorda: "Antes de iniciar, eu coloquei uma fita com a voz de
João Paulo I que falava às crianças, e o vaiaram. A terceira sinfonia de
Beethoven,
segundo movimento, e a vaiaram". Como ela costumava fazer, então,
começou o concerto mandando o seu irmão tremular a bandeira
norte-americana.
Foi um triunfo. Grande parte do público de então sonhava com a
revolução, a verdadeira: algumas décadas depois, intelectuais pensativos
redescobriram a revolução de
Francisco; alguns, também, a norte-americana.
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