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sábado, 22 de janeiro de 2011

O surgimento das cidades medievais

Inspirado nas questões enviadas pela redação da IHU On-Line, o medievalista francês Jean-Claude Schmitt escreveu o artigo que segue, enviado por e-mail. Nele, o pesquisador explica a lógica do surgimento das cidades medievais e suas conseqüências.

Por: IHU Online


Uma das concepções que mudou com o surgimento dos centros urbanos no medievo foi aquela a respeito do trabalho. O entedimento do trabalho como pena, “conseqüência do pecado original, cede lugar a uma concepção do trabalho como produtor de bens e de riquezas. É preciso trabalhar, não mais apenas para garantir sua Salvação, mas para ganhar sua vida e alimentar seus filhos. A ociosidade já não é mais apenas um vício, é uma falta social. A pobreza, por longo tempo associada a uma virtude (exemplo do Cristo, seguido pelos – Pauper Christi (Pobre do Cristo) – que fazem voto de renúncia aos bens materiais) torna-se maldição social e risco para a ordem pública”. Os grifos no artigo a seguir são do próprio autor.

Schmitt é professor na École des Hautes Études en Sciences Sociales (EHESS), na França, e membro da Escola dos Annales, junto de Jacques Le Goff, com quem organizou o Dicionário temático do Ocidente medieval. Bauru/São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial do Estado, 2002, traduzido por Hilário Franco. Escreveu também História das superstições. Portugal: Edições Europa-América, 1997 e Os Vivos e os Mortos na Sociedade Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1999. É considerado um dos historiadores mais importantes da sua geração.

A renovação do fenômeno urbano é um dos maiores aspectos da história da sociedade e da cultura da Europa dos séculos XI – XIII, e ela deixou marca indelével até nossos dias, nas cidades européias. Não se trata propriamente de falar de um “surgimento”, já que muitas cidades antigas, reduzidas a poucas coisas após o desmoronamento do Império Romano, renasciam nos mesmos locais, integrando muitas vezes partes dos monumentos e dos recintos anteriores. A cidade medieval, porém, com efeito, nada mais tem a ver com a cidade antiga, tanto que, nas regiões não romanizadas, ou mesmo em novos lugares do antigo imperium, há aglomerações realmente novas que se erguem e se desenvolvem.

A sociedade é, então, essencialmente rural e é da terra que vêm as riquezas e os excedentes que permitem construir e nutrir esses novos espaços habitados. É, pois, do lado das zonas rurais e da economia agrária que é preciso procurar as primeiras causas do surgimento urbano: melhores rendimentos, devidos, sem dúvida, a transformações climáticas, favoráveis a um aumento dos rendimentos básicos, porém, em primeiro lugar e sobretudo, devidos a transformações sociais, a um enquadramento diferente das pessoas pelo poder senhorial, a novas formas de extrair um valor da terra. De início, portanto, causas ecológicas e materiais, porém igualmente causas sociais, que se resumem pela noção de “feudalismo”: ou seja, um novo modo de produção que repousa sobre o enquadramento de trabalhadores livres (e não mais escravos), adstritos a encargos, pagos mais em dinheiro, pois um dos efeitos destas transformações é a renovação da economia monetária, da cunhagem de moedas (como, por exemplo, a retomada da cunhagem do ouro, interrompida após o século VII). A cidade beneficia-se e torna-se rapidamente o motor dessa circulação monetária, metálica e mais fiduciária (no caso das letras de câmbio pagáveis a termo nas feiras e mercados).

A cidade é um organismo social que participa da sociedade feudal, contrariamente à idéia romântica e liberal de uma burguesia urbana estranha à ordem senhorial. Ao contrário, é preciso pensar sua articulação com as formas senhoriais e feudais (e da realeza) do poder que regem a sociedade. No interior desse mundo, a cidade desenvolve, entretanto, instituições que tendem a contradizer os princípios institucionais tradicionais (que se pense nas cartas de franquia que dão às “comunas” uma grande autonomia). A cidade é o lugar de um poder compartilhado – horizontal e não vertical – mas que permanece oligárquico: é o dos nobres urbanos, detentores do essencial da fortuna mercadológica e territorial, mas, contra os quais os artesãos, organizados em profissões, se rebelam, exigindo compartilhar do poder, o que eles acabam por obter. No século XIV, assiste-se mesmo a revoltas do popolo minuto, (do povo miúdo), que são esmagadas.

A conquista da autonomia perante o senhor laico ou eclesiástico (trata-se, com freqüência, do bispo local) e depois a repartição do poder e dos recursos entre os diferentes grupos hierárquicos da população representam, evidentemente, os principais problemas com os quais são confrontadas as cidades. Em seguida, no decurso do tempo, surgem outros problemas, ligados à revitalização em caso de fome, às variações sazonais dos preços (com os riscos de motins em caso de penúria), aos riscos de epidemia e à peste (a partir de 1348), à extensão espacial da cidade (quando, por exemplo, é preciso reconstruir as muralhas para que elas englobem um território mais extenso) e, de maneira geral, à tributação ligada ao crescimento do poder monárquico e estatal (na França e na Inglaterra, no contexto da Guerra dos Cem Anos, amplamente financiada pelas contribuições das cidades).

Na medida em que a economia urbana repousa sobre o trabalho artesanal ou industrial (nas grandes cidades fabricantes de tecidos da Itália ou de Flandres) e sobre o comércio, a questão do trabalho manual está no centro das preocupações, tanto dos edis que governam e fixam as regras do trabalho das “corporações”, quanto dos clérigos que definem uma ética do trabalho. O trabalho concebido como pena (labor), conseqüência do pecado original, cede lugar a uma concepção do trabalho como produtor de bens e de riquezas. É preciso trabalhar, não mais apenas para garantir sua Salvação, mas para ganhar sua vida e alimentar seus filhos. A ociosidade já não é mais apenas um vício, é uma falta social. A pobreza, por longo tempo associada a uma virtude (exemplo do Cristo, seguido pelos – Pauper Christi (Pobre do Cristo) – que fazem voto de renúncia aos bens materiais) torna-se maldição social e risco para a ordem pública. O “pobre válido” – acusado de mendigo quando é fisicamente apto para trabalhar – é denunciado a partir do século XIII, sendo perseguido e estigmatizado entre os séculos XV e XVII. Ele se torna a figura “anti-urbana” por excelência.

As Ordens Mendicantes  e, mais precisamente os franciscanos, conhecem uma história intimamente ligada a estes problemas ideológicos e sociais. Eles pretendem originariamente viver como “mendicantes”, recusando o dinheiro, a terra, a propriedade. Eles pedem somente que sejam alimentados em troca da Palavra que prodigalizam em seus sermões. Entretanto, a evolução da sociedade em seu conjunto e em seu próprio sucesso, que faz afluir para eles as doações, confronta-os rapidamente com o problema do enriquecimento. De onde a ficção que se imagina, segundo a qual o papado é proprietário de seus bens, enquanto eles são apenas usufrutuários (usu pauper). Uma fração dos franciscanos, os espirituais, contudo, recusam esse compromisso, inspiram-se em teses apocalípticas e milenaristas de Joachim de Fiore  e são repelidos por heresia. Eles são finalmente exterminados pelos poderes eclesiásticos e seculares. No entanto, trata-se apenas de um fenômeno muito limitado e, apesar de tudo, característico sobretudo da Itália e do sul da França. O essencial é a boa integração das Ordens Mendicantes nas cidades (dominicanos, franciscanos, carmelitas, agostinianos) – elas são apenas quatro a partir de 1274 – pois são elas que, ao lado, e por vezes contra, o clero secular, são responsáveis pela pregação, pelas missas e pelos sacramentos, em proveito da população. Numa cidade como Paris, elas ocupam cátedras na universidade, representam o cume da intelligentsia, que se expande deste centro intelectual para toda a cristandade. Eles são tão bem integrados que se pode apreciar a importância das cidades medievais em função do número dos conventos mendicantes que ali se encontram – 4 para uma grande cidade, 3 para uma cidade menos importante etc. Se uma aglomeração não possui um convento mendicante, pode-se hesitar em falar de cidade.

A vida religiosa dos urbanos não é, nem mais, nem menos “supersticiosa” do que a dos rurais. De fato, é preciso evitar de falar de “superstições”, pois a palavra lembra sempre um julgamento de valor segundo critérios que são os nossos (sábios, racionais etc.). Há crenças e práticas rituais “populares”, mas, com freqüência perfeitamente aceitas pelos clérigos e pela Igreja oficial; diversas práticas e crenças desse tipo (notadamente a propósito do culto das imagens) brotaram, aliás, das formas cultuais da Igreja; elas não são denunciadas ou caçadas como radicalmente diferentes ou heterodoxas, mas enquanto ultrapassam as práticas oficiais e, sobretudo, escapam ao controle do clero. Quanto à bruxaria, que existe também na cidade, ela mobiliza as forças do Mal, mas estas forças também fazem parte da religião cristã! Seu erro é principalmente, quando condenado, o de aparecer como prática das pessoas simples e das mulheres, fora do controle do clero.

Extraído de: IHU on-line. Revista do Instituto Humanitas. São Leopoldo. Ano 4, n. 198, 02 out. 2006. Disponível em http://www.ihuonline.unisinos.br/index.php?option=com_content&view=article&id=442&secao=198 acesso em 13 jan. 2011.
Ilustração: Les Très Riches Heures du duc de Berry, Juin. In the background, the royal palace, in the island, of Cité with the Holy Chapel the Musée Condé, Chantilly. Disponível em http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Les_Tr%C3%A8s_Riches_Heures_du_duc_de_Berry_juin.jpg acesso em 13 jan. 2011.

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