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domingo, 26 de agosto de 2012

Franciscano e franciscanos

Frei Dorvalino Fassini, OFM


O movimento sugerido pelo Papa João XXIII e confirmado pelo Vaticano II está nos revelando, cada vez mais, que nós franciscanos constituímos uma única e mesma Ordem, seguimos uma única e mesma Regra e vivemos uma única e mesma Vida: a Ordem, a Regra e a Vida da ardente Paixão de nosso Senhor Jesus Cristo, vivida e testemunhada pelos Apóstolos, re-aparecida ou ressuscitada em Francisco, re-vivida e testemunhada por ele e por inúmeros de seus companheiros, séculos afora[1].
O vigor desse mistério ou Paixão é de tal efervescência, disposição e fecundidade que explodiu e se multiplicou desde cedo em milhares e milhares de pessoas que olhavam, procuravam e seguiam Francisco não apenas de forma individual ou particular, mas também comunitariamente em pequenas e, às vezes, em grandes grupos ou comunidades. Essa multiplicação pode ser comparada à Igreja nascente do primeiro século cristão. Em poucos anos o mistério do mesmo Cristo crucificado, vivo e ressuscitado, multiplicava-se e difundia-se por quase todas as partes do mundo. Os fiéis, nascidos e vivificados pela seiva da única e mesma Boa Nova, eram todos “cristãos”, mas nem todos de igual forma. Uns eram de Éfeso e formavam a Igreja de Éfeso, outros de Roma e formavam a Igreja de Roma, de Jerusalém, Corinto, Tessalônica, etc.; uns procediam do paganismo e outros do judaísmo. Todos, pois, são cristãos, mas nem todos do mesmo jeito. Assim, também, acontece com nossa Ordem. Todos somos franciscanos, mas nem todos do mesmo jeito. Por isso, todos os capuchinhos são franciscanos, mas nem todos os franciscanos são capuchinhos, vice e versa, etc. 
Assim também aconteceu com o Carisma originário de Francisco que, aos poucos, passou a chamar-se “franciscano”. “Franciscano” é, pois, a raiz, o comum de todos quantos se sentem atingidos pelo mesmo mistério da Paixão de Cristo que atingiu Francisco. Mas, o atingimento e a resposta não são iguais em ou para todos. Cada um procura recebê-la e concretizá-la a seu modo. É o fenômeno da multiplicação que outros, indevidamente, chamam de divisão. Por isso, desde logo nasceram as três Ordens, cada qual com uma denominação diferenciada e própria: Ordem dos Frades Menores, Ordem das Irmãs Pobres e Ordem Terceira. E, dentro de cada uma dessas três Ordens, com o decorrer dos anos e séculos, o processo continua florescendo e se multiplicando, com o consequente surgimento de muitas outras ramificações. Na ou da OFM surgiram os menores, os conventuais e os capuchinhos. Na ou da Ordem de santa Clara, surgiram as Coletinas, as Capuchinhas, as Concepcionistas, as Urbanistas, e outras. Na ou da Ordem Terceira, finalmente, nasceram e continuam nascendo dezenas e mais dezenas de Congregações e Institutos religiosos, conglomerados na então denominada Terceira Ordem Regular de são Francisco (TOR).
Todos e todas, porém, denominam-se “franciscanos/as”. Por isso, assim como o cristão de Roma não pode ser igual ao cristão de Éfeso, ou o gaúcho ao catarinense, o mesmo acontece conosco. Nenhum conventual ou capuchinho, nenhum franciscano secular ou regular gostaria de chamar-se de “menor”, e vice-versa, nenhum “menor”, gostaria de ser chamado de conventual ou capuchinho, etc. 
Por isso, não há nenhuma razão que justifique o neologismo “francisclariano”, inventado para designar todos os franciscanos. As únicas que podem usar com justiça e propriedade esse nome seriam as clarissas. Quando um outro franciscano recorre a este termo para se auto-definir está renunciando e negando o vigor próprio de sua origem e de sua espiritualidade, o brilho de sua identidade, conduzindo-se, necessariamente, a um lento, mas irremediável processo de vagueza, enfraquecimento e diluição do específico de seu espírito, carisma, vocação e missão[2].
O importante em tudo isso é não sucumbir à tentação de reduzir o mistério, a obra, a “coisa” de Deus à subjetividade das pessoas, sejam indivíduos ou grupos. Em outras palavras, cuidar para que o Carisma franciscano não vire “coisa” de um Francisco, de uma Clara, de um Egídio e, no fim, de cada um de nós, seus seguidores. Neste caso, estaríamos prendendo e reduzindo à mera fragilidade dos limites da subjetividade das pessoas, dos fatos, das ocorrências passageiras e do biológico o que não se pode subjetivar ou prender: a floração do mistério, do amor, da Paixão de Deus que não se limita a nenhuma pessoa, a nenhum tempo, lugar ou gênero, mas a tudo e a todos, fazendo surgir um novo Céu e uma nova Terra. Pode-se parafrasear, aqui, o pensamento de Oscar Wilde acerca da arte[3]: O Franciscanismo, ou o Carisma franciscano, não pode jamais ser submetido ao sujeito Francisco e a nenhum outro sujeito. Pois, neste caso, não seria mais carisma, graça do Senhor. Seria apenas biografia, mera narrativa de fatos e ocorrências, através da qual a realidade, isto é o real, que costumamos chamar de “franciscano”, foge e escapa.



 Notas:

[1] Portanto, em vez de se falar em “Família Franciscana do Brasil” dever-se-ia falar em “Ordem Franciscana do Brasil”.

[2] Tudo o que se diz aqui, das pessoas, isto é, dos franciscanos, vale também das assim chamadas Fontes Franciscanas. Não existem Fontes “francisclarianas”. O que existe são Fontes Franciscanas que se desdobram em Fontes ou Escritos de São Francisco, de Santa Clara, de Frei Egídio, de São Boaventura, de Santo Antônio, etc. Assim, ao se dizer “Fontes Franciscanas” está-se pensando e incluindo todas. Por isso, se disser uma, não estarei, necessariamente, incluindo as demais. Se disser “Fontes fancisclarianas” estarei falando apenas dos Escritos de São Francisco e de Santa Clara. Não estarão, necessariamente, incluídos, por exemplo, os Escritos de Frei Egídio, de Junípero, Tomás de Celano, São Boaventura, etc. Mas, ao contrário, se disser Fontes Franciscanas incluo todos os escritos que de uma ou outra forma estão sob a inspiração originária desse Carisma que moveu Francisco, Clara e seus primeiros companheiros.
[3] Oscar Wilde expressa assim seu pensamento: A arte não pode ser submetida ao seu sujeito. Nesse caso não é mais arte e sim biografia e a biografia é a rede pela qual a realidade escapa (Oscar Wilde).

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