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terça-feira, 27 de outubro de 2009

O espírito de Assis

Frei Ary E. Pintarelli, OFM

Os encontros de oração e jejum pela paz convocados pelo Papa, em Assis, nos dias 27 de outubro de 1986 e 9-10 de janeiro de 1993, pertencem àquele tipo de experiências que não esgotam seu significado e sua grandeza no fim do dia em que foram vividas, nem nos gestos e palavras pelas quais foram expressas. Isso porque se tornam como que "sacramentais", ultrapassam qualquer tipo de materialidade para chegar à categoria do simbólico, tornam-se verdadeira "profecia", no sentido primeiro e mais profundo do termo. A presença simultânea dos representantes das grandes religiões do mundo, de modo especial, dos hebreus, cristãos e muçulmanos, que há muitos séculos se tratavam com suspeita e até intolerância, o objetivo comum que os reuniu, rezar pela paz, o estar lado a lado partilhando as mesmas ansiedades e os mesmos ideais, transforma-se num fato prodigioso, num genuíno "sinal dos tempos".

Desde o século XIII, muitas outras circunstâncias sempre atraíram grandes personalidades a Assis. Sobretudo papas. Para só ficarmos nos tempos mais próximos a nós, recordamos a peregrinação de João XXIII, antes da abertura do Concílio Vaticano II, e do próprio João Paulo II, em 1978, no início de seu pontificado, e depois, em 1982. Mas esses dois encontros, de 1986 e 1993, assumem um valor e um significado especial, por causa daquilo que ali se fez e por originar aquilo que o próprio Papa chamou e se continuou a tratar de "espírito de Assis".

Assis foi definida pelo Papa como a "cidade da paz", a "cidade sobre o monte, símbolo da oração e da paz". E isso conferiu à cidade um caráter bíblico. Quantas cidades e lugares da Bíblia tiveram, e têm ainda, um sentido especial na história da salvação. Lembremos, apenas a título de exemplo, Belém, o Monte Sinai, Betel, Nazaré, o Tabor, Jerusalém e outros. Para o mundo todo, não apenas para o mundo cristão, Assis deverá ficar para sempre associada à paz, à oração, à penitência pelos grandes desmandos da humanidade.

Embora possa parecer retórica, a pergunta a fazer seria: Por que exatamente Assis, esta minúscula cidadezinha umbra, recolhida e sugestiva, sem grande importância histórica, social, econômica ou estratégica, à margem dos grandes acontecimentos sócio-culturais e políticos do nosso tempo? E então, nos virá à mente que essa pergunta já foi feita quase oito séculos atrás, quando Frei Masseu, muito humilde e admirado, perguntou a Frei Francisco: "Por que todo o mundo anda atrás de ti e toda a gente parece que deseja ver-te e ouvir-te e obedecer-te? Não és um homem belo, não és de grande ciência, não és nobre: donde vem, pois, que todo o mundo anda atrás de ti?" (cf. Fioretti, 10).

Conhecemos a resposta de Francisco, mas preferimos dizer que foi escolhida a cidade de Assis porque lá estão Francisco e Clara. E se essas duas grandes almas, únicas e complementares, não fazem de Assis um ponto de referência dos movimentos políticos, econômicos ou outros, a transformam em ponto mundial de convergência de toda autêntica espiritualidade, mostrando que é possível viver de forma radical e completa o Evangelho de Nosso Senhor Jesus Cristo. Ambos viveram uma experiência que não os levou para fora do mundo, mesmo que Clara se tenha fechado num mosteiro, não se evadiram, não fugiram, mas inseriram-se totalmente nele de forma construtiva, participativa, simpática. A experiência dos dois grandes assisienses foi de abertura para Deus, para o próximo, para a criação, renunciando a si mesmos, tomando sua cruz e seguindo o Mestre (cf Mt 16,24). Sua experiência os levou diretamente ao homem, ao verdadeiro homem, ao homem humano, isto é, o homem original, criado, não fechado em si, mas aberto ao outro, em comunhão, em fraternidade.

"Por que a ti, por que a ti ... ?", repetia com simplicidade e espanto Frei Masseu. A resposta ao fato do segredo de Francisco exercer atração sobre as pessoas de todos os tempos, raças e religiões, está na verdade de ele ter-se realizado como homem. Desde o paraíso, o homem quer ser igual a Deus. Mas esqueceu-se de que para isso é preciso ser verdadeiro homem. Nem quando, para mostrar o caminho, o próprio Deus se fez homem e habitou entre nós (cf. Jo 1,14), o homem aprendeu a lição. E continua o problema de as pessoas, o mundo todo, especialmente o nosso, precisarem descobrir a humanidade do homem. Francisco e Clara, plenamente homem e plenamente mulher, são uma proposta, sobretudo para os nossos dias, quando vemos explodir os ódios mais irracionais, as violências mais atrozes, as barbáries sem precedentes, as guerras mais devastantes. Francisco e Clara são duas figuras humanas que, de maneira mais profunda que tantas outras, fazem que não nos envergonhemos de ser humanos e nos ajudam a entrever uma possibilidade de construir um mundo mais fraterno.

O caminho da paz passa pelo homem, mas pelo homem autêntico, original, reconciliado, fraterno. Por isso, o Papa escolheu Assis para sede dos encontros de oração pela paz, e ele próprio dirigiu-se para lá, como que para nos dar o exemplo e para que, como ele, o façamos nós também (cf.Jo 13,15). Como no tempo de Francisco a meta da penitência e da peregrinação era Santiago de Compostela, Roma, ou a Terra Santa, hoje, o caminho passa por Assis.

Mas o homem é um eterno insatisfeito, e continua a perguntar. Desta vez, sobre a utilidade de tais manifestações. E aqui devemos voltar a algo que, de passagem, falamos acima. A utilidade de tais encontros, além da utilidade intrínseca da própria oração, está no fato de tais encontros serem "proféticos". E o mundo tem necessidade urgente da "profecia", precisa reencontrar os rumos fundamentais, os pontos de referência mais válidos e universais, a estrada justa de sua felicidade. Não será a busca de caminhos certos, de saídas viáveis, que faz as pessoas criarem seus "ídolos", escolhendo cantores, esportistas, artistas vários para modelos de seus comportamentos?

É preciso identificar pontos de referência válidos, capazes de conduzir à felicidade duradoura, à felicidade que a traça não corrói e o ladrão não rouba (cf Lc 12,33), e não correr atrás da felicidade fugaz do lírio do campo, que hoje cresce e amanhã seca (cf Lc 12,28). É preciso identificar tais pontos, tais valores, indicá-los aos homens, protegê-los da apatia, defendê-los dos profetas do absurdo, dos contravalores, ou como diz Paulo VI "atingir e como que modificar pela força do Evangelho os critérios de julgar, os valores que contam, os centros de interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida da humanidade, que se apresentam em contraste com a Palavra de Deus e com o desígnio da salvação" (EN 19).

E aqui se deve dar destaque a uma realidade sempre comprometida e ameaçada pela falta de paz: a vida. E a vida em abundância (Jo 10,10), esta realidade maravilhosa, valor primeiro e fundante de todos os outros, dom recebido para ser protegido como a pupila dos olhos, para ser derramado a mancheias pelos quatro cantos do mundo, com absoluta gratuidade e total disponibilidade. É preciso proclamar de cima dos telhados (cf Lc 12,3) que a vida é um "a priori" absoluto e que, enquanto a humanidade não compreender isso, não chegará a bem algum. É preciso apregoar que não é refugiando-se na violência e no horror que se constrói o mundo.

Assis nos diz que a violência, a guerra, a intolerância cruenta e tudo o que combate a vida é o que existe de mais irracional e desumano.

Assis nos diz que a vida vive onde há concórdia, colaboração, respeito mútuo.

Assis nos diz que para mudar o mundo não bastam coalisões de poder, pactos de egoísmo e exploração.

Assis nos diz que somos uma fraternidade, que nos construímos e amadurecemos como pessoas, mediante uma rede de relacionamentos interpessoais.

Assis nos diz que ou nos tornamos homens, juntos, ou seremos lobos mais ferozes que o de Gubbio, a nos devorar uns aos outros.

Assis nos diz que ou nos salvamos juntos, como povo, ou pereceremos todos nas tempestades que agitam o mundo.

Assis nos diz que não é possível desinteressar-se dos outros, pensando permanecer incólumes.

Assis nos diz, enfim, que se o mundo quer ser realmente humano, deve superar toda a espécie de egoísmo, de racismo, de divisões e construir uma fraternidade universal.

Este o grande testemunho que, de maneira sublime e inigualável, nos é dado por Francisco e Clara. E esta é sua grande "profecia" que, neste espírito, se tenta resgatar com os dias de oração e jejum.

Como cristãos, temos consciência de ter um projeto de amor - o primeiro e máximo mandamento -, e porque filhos do Deus da paz, somos chamados a ser "construtores de paz" e obrigados a dar esse testemunho profético ao mundo. Nossa credibilidade de cristãos - e, eventualmente, de franciscanos -, nossa razão de existir, dependerá fundamentalmente do nosso esforço de enfrentar os grandes desafios do mundo, sobretudo os desafios que envolvem a vida, a pessoa, a fé, a reconciliação, a paz, a esperança.

O "espírito de Assis" proclama que a vida pode renascer, que a separação jamais é tão grande e forte que não possa ser superada, que a fé é uma componente essencial da pessoa, que a reconciliação é o início de qualquer caminhada comum, que "a paz é o outro nome de Deus" e que, por isso, existe esperança para o nosso futuro.

Esta utopia que Assis nos apresenta e que como cristãos, franciscanos ou amigos e admiradores de Francisco e Clara queremos assumir.

Extraído de http://www.franciscanos.org.br/v3/vidacrista/especiais/2009/espiritodeassis_09/index.php acesso em 27 out. 2009.

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