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sexta-feira, 4 de novembro de 2011

Da privação de toda consolação

Não é dificultoso desprezar as consolações humanas, quando gozamos das divinas. Grande coisa, porém, e de muito mérito, é poder estar sem nenhuma consolação, tanto divina como humana, sofrendo de boa mente o desamparo total do coração, sem em nada buscar-se a si mesmo, nem atender ao seu próprio merecimento.

Que maravilha será estar alegre e devoto, quando nos assiste a graça! De todos é almejada esta hora. É muito suave andar, levado pela graça de Deus. E que maravilha não sentir a carga aquele que é sustentado pelo Onipotente e acompanhado do guia supremo!

Gostamos de ter qualquer consolação, e é penoso ao ser humamo despojar-se de si mesmo. O glorioso mártir São Lourenço venceu o mundo em união com seu pai espiritual, porque desprezou todos os atrativos do século e sofreu com paciência, por amor de Cristo, que o separassem do Supremo Pontífice São Xisto a quem ele muito amava! Assim, com o amor de Deus, ele subjugou o amor da criatura, e ao alívio humano preferiu o beneplácito divino. Daí devemos aprender a deixar, às vezes, por amor de Deus, um parente ou amigo querido. Nem tanto mos aflijir se mos abandonar algum amigo, sabendo que todos, finalmente, nos havemos de separar uns dos outros.

Só com renhido e longo combate interior aprende o ser humano a dominar-se plenamente e pôr em Deus todo o seu afeto. Quando a pessoa confia em si, facilmente desliza nas consolações humanas. Mas o verdadeiro amigo de Cristo e fervoroso imitador de suas virtudes não se inclina às consolações nem busca tais doçuras sensíveis; antes, procura exercícios austeros e sofre por Cristo trabalhos penosos.

Quando, pois, Deus nos mandar consolação espiritual, devemos receber com ações de graças, mas lembrando-nos sempre que é favores de Deus, e não merecimento nosso. Com isto, porém, não nos desvaneceremos, nem nos entregaremos a excessiva alegria ou a vã presunção; seremos antes mais humilde pelo dom recebido, mais prudente e timorato em nossas ações, pois passará aquela hora e voltará a tentação. Quando nos for tirada a consolação, não desesperaremos logo, aguardaremos, pelo contrário, com humildade e paciência, a visita celestial; pois Deus é bastante poderoso para restituir-nos maior graça e consolação. Isto não é novo nem estranho aos que são experientes nos caminhos de Deus; porque nos grandes santos e antigos profetas houve muitas vezes esta mudança.

Por isso um deles, sentindo a presença da graça, exclamava: Eu disse em minha abundância: não serei jamais abalado (Sl 29,7). Sentindo, porém, retirar-se a graça, acrescenta: Desviastes de mim, Senhor, o vosso rosto, e fiquei perturbado (v.8). Entretanto não desespera, mas com mais instância roga ao Senhor, e diz: A vós, Senhor, clamarei, e ao meu Deus rogarei (v.9). Alcança, afinal, o fruto de sua oração e atesta ter sido atendido, dizendo: Ouviu-me o Senhor, e compadeceu-se de mim, o Senhor se fez meu protetor (v.11). Mas em quê? Convertestes, diz ele, meu pranto em gozo, e me cercastes de alegria (v.12). Se isto sucedeu aos grandes santos, não devemos desesperar nós mesmos, fracos e pobres, por nos sentirmos umas vezes com fervor, outras vezes com frieza porque vai e vem o espírito de Deus, segundo lhe apraz. Por isso diz o santo Jó: Senhor, visitais o homem na madrugada, e logo o provais (7,18).

Em que podemos, pois, esperar ou em que devemos confiar, senão na grande misericórdia de Deus e na esperança da graça celestial? Porque, mesmo que nos assistam homens justos, irmãos devotos e amigos fiéis, ou livros santos e formosos tratados, ou cânticos e hinos suaves, tudo isso de pouco nos serve e pouco nos agrada, quando estamos desamparado da graça e entregue à mossa própria pobreza. Não há então melhor remédio que Deus.

Nunca encontrei homem tão religioso e devoto, que não sofresse, às vezes, a subtração da graça e sentisse o arrefecimento do fervor. Nenhum santo foi tão altamente arrebatado e esclarecido que, antes ou depois, não fosse tentado. Porque não é digno da alta contemplação de Deus quem por Deus não sofreu alguma tribulação. Costuma vir primeiro a tentação, como sinal precursor da próxima consolação; porque aos provados pela tentação é prometido o celeste consolo. A quem tiver vencido, diz o Senhor, darei a comer o fruto da árvore da vida (Apc 2,7).

Dá Deus a consolação, para fortalecer o homem contra as adversidades. Segue-se então a tentação, para que não se desvaneça a felicidade. O demônio não dorme, nem a carne está morta; por isso, não devemos nunca cessar de aparelhar-nos para a peleja, porque à direita e à esquerda estão nossos inimigos que nunca descansam.

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