Para o franciscanismo
o humano é a sinfonia de Deus
Chegamos num ponto de nosso percurso onde vamos tratar das Virtudes tipicamente Franciscanas. Já refletimos, preparando esta parte, sobre a Virtus in medio. Esta expressão vem de um ditado latino, muito em evidência no período medieval, que significa: a virtude está no meio. Meio
aqui entendido como ponto de equilíbrio, a força que vem daharmonia.
Um processo que inspirava os penitentes de então: a contínua eliminação
de excessos, para chegar à medida exata do coração, e com serenidade,
superar as vicissitudes e perturbações. Como diz Hermógenes Harada: “Há
a versão “soft” e a versão “hard” dessa harmonia preestabelecida. A
“soft” diz que a pessoa virtuosa é sem tribulações e contrariedades.
Sem cortes abruptos e sem por limites bruscos na sua personalidade. É
como as águas mansas de um lago sem ondas. Está no gozo da harmonia
perfeita, natural. Nela, dificuldades e desgastes, suores e sofrimentos
do árduo mourejar estão superados e não podem existir. É a serenidade
das águas mansas. A versão “hard” diz: o virtuoso é um lutador. Deve
ser firme, impávido, estóico, imutável e disciplinado. Domina soberano
todas as suas paixões. É senhor de si e das situações. É a fortaleza
das rochas no meio das águas impetuosas”.
O caminho das Virtudes tipicamente franciscanas passa pela
busca incansável dos dons e frutos do Espírito, pelos Conselhos
Evangélicos, que são tantos, mas intensamente convergentes nos três
conselhos que se tornam Votos: Obediência, Pobreza (sine proprium) e
Pureza de Coração; e tem muita inspiração nos votos cavaleirescos. Se a
força do Movimento que nasce naquele momento e move Assis,
transforma-se em Ordem e abala o mundo, foi um caminho de virtuosidade, e
que bebeu em seu tempo os anseios por uma qualidade humana; hoje
também estamos numa época, em que na moral, na ética, na teologia, na
espiritualidade, na filosofia de identidade, volta-se a falar de
virtudes. Antigos tratados são retomados à luz dos desafios de novos
tempos.
Na passagem entre a era industrial e a época pós-moderna, a
pessoa virtuosa era considerada aquela que tinha ares e práticas
consideradas piedosas e beatas. Hoje se destina e molda pessoas de
beatitude, isto é, pessoas realizadas, felizes, vigorosas, éticas,
modelos vivos, engajadas em causas nobres da contemporaneidade. Hoje
pessoas virtuosas são aquelas que estão no empenho e desempenho de
superar-se. Diz Mestre Eckhardt (1260-1327): “O humano não deve achar
sua obra boa, por melhor que ele a tenha executado, a tal ponto de se
sentir nela à vontade e assegurado de si. Pois, se tal acontecer, a sua
capacidade de captar, a sua razão se tornará preguiçosa e adormecerá.
Antes, deve continuamente se levantar e erguer-se, com ambas as forças
de seu ser, isto é, com razão e vontade, e neste alçar-se, agarrar o
melhor de si, a sua identidade, no mais alto grau. E, com cuidado e
ponderação, precaver-se, por dentro e por fora, contra toda e qualquer
falha nessa ação. Se assim o fizer, ele jamais perderá o ser em nenhuma
coisa; antes, crescerá sem cessar em alto grau” (ECKHARDT, Meister, O Livro da Divina Consolação e Outros Textos Seletos, Petrópolis: Vozes, 1991, p 110).
Voltemos ao tema das Virtudes tipicamente Franciscanas. O
mundo de seguidores da vida franciscana tem como modelo São Francisco de
Assis, um homem virtuoso. Ele mesmo personalizava as virtudes, por
isso as chamamos tipicamente franciscanas. Diz o grande historiador
Jacques Le Goff: “(Francisco) revela a profunda marca de um amor cortês
que confere admirável expressão aos sentimentos do santo por sua dama,
a Senhora Pobreza, e ao seu “amor intenso e genuíno pelo próximo”, sem
falar da “cortesia fraterna” em relação a toda criação, inclusive
“nossa irmã Morte corporal”, dádiva graciosa de um senhor em quem se
encarna um ideal feudal interiorizado em termos de família, pai, mãe,
irmão, irmã.”( in: Frugoni, Chiara, Vida de um Homem: Francisco de Assis, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 12.) .
Por que virtudes tipicamente franciscanas? Por ser o modo, o
ponto de vista, ou melhor, o ponto de partida, da aventura do Espírito
para elucidar o sentido da vida. É o dever ser, a força ética, o jeito
próprio de morar e reconstruir a moradia. O “ethos” franciscano tem um
jeito típico de educar, disciplinar, cultivar uma identidade sonhada. É
o “eu devo”, “eu posso”, “eu quero” percorrer um caminho virtuoso. “De
boa vontade o farei, Senhor! ( LTC, 13) É formar-se, de olho nas
Fontes Franciscanas e Clarianas, perceber a força que deu qualidade a
um grupo humano nobre, fraterno, humano e divino ao mesmo tempo. Elas
brotaram da verdade de quem olhou as manifestações do Espírito, abraçou
como comprometimento a Boa Nova, as virtudes do Evangelho, Jesus
Cristo, Francisco de Assis, Clara de Assis e a essência do humano que
daí se revela. Melhorar o humano é entrar numa escola de virtudes e dar
um acabamento melhor ao humano, experimentando o que a experiência
franciscana traçou e viveu como projeto de vida. Nem sempre sozinho
conquisto uma identidade; mas é a tarefa de refazer a boa caminhada de
muitos.
Vamos elencar Algumas Virtudes Tipicamente Franciscanas:
MINORIDADE: É a renúncia do status de
quem tem, pode e sabe. É não apropriar-se do próprio poder, mas
conviver com a força de tudo e de todos. É a renúncia da superioridade.
Se o mar, vindo da potência de sua interioridade, não tivesse a
coragem de morrer mansamente na praia, não haveria o espetáculo das
ondas, não haveria a magia da praia. Muitos ligam a minoridade à
pobreza, ao desapego, a desinstalação. Isto é, apenas uma natural
consequência, uma irradiação do ser menor. A minoridade é um modo de
ser, uma forma de vida. É a conformidade com a grandeza e onipotência
de um Deus que se revelou na simplicidade de um Menino.
Um Deus, que no seu amor tão grande Encarnou-se em Jesus
Cristo e experimentou estábulo, manjedoura, fuga para o Egito, ceia,
lava-pés, colocou o coração divino nas mãos, nos pés, nas palavras e se
misturou na paisagem do humano. A minoridade remete à vassalidade, ao
serviço, ao ser servo. Na Carta aos Fiéis, 47, diz São Francisco:
“Nunca devemos desejar estar acima dos outros, mas antes devemos ser
servos e submissos a toda humana criatura por causa de Deus”. É não
usar o cargo como cargo de mando, mas de serviço prestado por amor. Ser
menor é amar com um amor que não faz acepção de pessoas. Ama a todos
incondicionalmente, ricos e pobres, bons e maus, fracos e fortes,
amigos e inimigos, simpáticos e antipáticos. Ser menor é não querer
estar acima dos outros ou acima de tudo, mas testemunhar uma presença
silenciosa e amorosa.
A minoridade é a humanidade da Divindade. É ver a gritante
simplicidade como Deus ama e, sob o filtro do Evangelho, amar assim do
jeito do Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo. A minoridade é a
consciência e a afirmação do ser criatura. Ser pequeno diante da
grandeza de o todo ser criado, ser irmão e irmã de toda família
criatural, estar num perene estado de gratidão e graça. É como o
primeiro e remelento olhar de criança se abrindo ao mundo num encontro
de brilhos. A minoridade é fé; não no sentido de conjunto de doutrinas
para se crer, mas como admiração, enamoramento, abandono ao colo da
vida. Ver todas as coisas com olhar de poeta e sentir-se um nada diante
da grandeza de tudo.
BELO, BOM, BONDADE: O grande mestre de Paris, o franciscano Alexandre de Halles, sintetiza esta força virtuosa criando a reflexão sobre o Belo e o Bom,
a estética franciscana. O que é o belo e o bom? Ele mesmo, entra no
hábito franciscano, vai para dentro da academia com os pés descalços e o
máximo despojamento, na fluência da transparência do simples e
natural. Ele diz que o belo e o bom revelam grande expressividade da
mística da Encarnação: o Deus Humilde aparece na beleza da Criança, na
tessitura da bondade. É a redescoberta do que a vida tem de melhor:
convocação divina e convocação do amor! O Belo é o transparente e o
transcendente, o Uno e o Vero. O Belo é sempre percepção, chamado,
apelo, um grito para perceber o real, o palpável, o sensível. Não
podemos estar no grito de abandono de todas as coisas, é preciso
vê-las, percebê-las, senti-las. A forma do Belo, (ver a Beleza de tudo o
que é), torna-se amada e imitada, cria o discipulado e arrasta. Não
basta só um entusiasmo inicial, é preciso um dinamismo constante, um
impulso de vida exercitado na convivência com o valor de todas as
coisas. Quanto mais você entra neste dinamismo mais se torna vivaz
(percebe a vida que está dentro) e mais a vida floresce; então se
descobre a arte da vida. O que é a Arte, ou melhor, a virtuosidade da
Arte? É ser um artista da vida. O artista é aquele que vive imerso nas
estruturas da vida e nelas coloca a sua profundidade, a sua
interioridade, a sua sensibilidade. Neste sentido, é preciso, ser, ter,
fazer e conhecer a arte para se ter um projeto de vida.
O franciscanismo é um modo místico, espiritual,
existencial, cultural e sensível de estar na vida. Não é só aplicação
técnica de uma filosofia de vida ou postura de vida, mas é saber que a
vida é Arte Divina e Arte Humana, é Lógica de Amor, isto é, um grande
encontro entre a inspiração, o sopro, o hálito que dá vida a tudo com o
Humano, com o Divino e a Fraternidade. A partir daí o belo não basta, é
preciso ser bom.
O que faz a pessoa bonita é a Bondade. A bondade é uma
virtude; e a virtuosidade, como um conjunto de virtudes, é a beleza
maior e a mola propulsora de todos os gestos de amor e cuidado. O que
faz o mundo bonito é a bondade esparramada de todas as coisas: “Louvado
sejas, meu Senhor, pela
Irmã Água que é mui útil, humilde, preciosa e
casta”.
A fecundidade da vida vem deste movimento. A terra boa é o
coração belo e bom. Esta é a síntese da perfeição. O belo é a expressão
natural e perfeita do bem. O bom é a plenitude da caridade. Francisco
viveu esta experiência. O mestre da Paris escreve e impulsiona esta
reflexão. Alexandre de Halles descobre a filosofia franciscana da
Beleza como difusão do Bem: esta é a verdadeira estética do Simples.
O invisível e o visível, a essência, a medula, a
profundidade tomam forma, quantidade, cor e qualidade. Sai de si e
atinge o humano. Como um ato amoroso da vida toma forma num corpo.
Torna-se figura, imagem. Como? Com o vigor da simplicidade, da
transparência. Para isso é preciso saber sentir, escutar e ver.
Sensibilidade à flor da pele, a Palavra nos ouvidos e a Imagem nos
olhos. Perceber e amar. Escutar e crer. Ver e professar. Disto surge
uma bela e boa espiritualidade. Para o franciscanismo ver, falar e
escrever e igual a pintar. As virtudes do belo e do bom nos fazem
artistas que esculpem e pintam o mais belo quadro da Paisagem do Humano
e da Paisagem do Divino. Somente assim a palavra ressoa e refulge,
encarna-se, plastifica-se. Somente assim podemos compreender Francisco,
o canto das criaturas. Francisco não quer possuir as criaturas, mas
cantar o valor e a beleza que elas possuem. É a arte de conhecer e
reconhecer os dons e as virtudes da existência. Reconhecer é fazer então
uma nova criação. Recriar com o Criador. É perceber que o Belo é
alegria e o Bom uma sabedoria criadora; enfim, é ver todo o criado
impregnado de Beleza. Para o franciscanismo o humano é a sinfonia de
Deus e por isso deve conquistar a harmonia espelhando-se na harmonia do
natural.
Quando alguém é unificado por uma intensa experiência
afetiva e espiritual torna-se uma fonte. O movimento franciscano, que
brota da estética do belo e do bom, tem sua base em alguém: a
experiência concreta e vital de Francisco de Assis, um homem de coração
enamorado pela vida e pelo Deus da vida! O seu forte amor progressivo e
cheio de energia faz com que ele e seus seguidores e seguidoras
tornassem criadores e criativos. Daí surge uma arte de viver. A fonte
da Arte Franciscana é a paixão. O apaixonado é sensível, antenado, real
e contemplativo. Escolhe o natural e transforma o natural numa
linguagem. O natural sempre nos atinge e nos refaz. Existe a Beleza do
Simples? O que é a Beleza do Simples? É descobrir e fazer aparecer o
modesto em sua força. Uma fragilidade que é potência. A grandiosidade
da vida, do mundo e das pessoas só é dada para quem tem os olhos
voltados para esta Beleza.
Queria abrir, neste ponto da reflexão, um fato que a meu
ver é um fenômeno que vem do Belo e do Bom. São Francisco é o santo
mais representado na iconografia. Podemos ir muitas feiras de
artesanato, em lojas de artigos para presentes, em loja de antiguidades
e outros objetos de decoração, em lojas de artigos religiosos, em
bancas de artistas autônomos e anônimos, em galerias de artes e em
muitas exposições de pintura e escultura; sempre estará ali uma imagem,
um quadro, um banner, um pôster, um arranjo com São Francisco. Muitos
artistas, religiosos ou não, o moldam e pintam. Por quê? Será porque há
estudiosos do fenômeno religioso que o apontam como o maior herói
religioso depois de Jesus Cristo? Ou porque ele é um arquétipo humano, o
melhor de nós, uma expressão cristalina das virtudes que sonhamos. O
humano divino que gostaríamos de ser. Ele, no seu modo de ser natural,
foi pródigo, nobre, jovial, cordial, magnânimo, penitente, generoso,
amigo, cavaleiro, terno e fraterno. Criou uma revolução de amor e, por
isso mesmo, tornou-se um reformulador social e eclesial. Permanece para
sempre nas representações da humanidade porque tinha
consciência historial, vive intensamente a sua época e mostra algo de
novo para o seu tempo. Um homem cheio de encontro, de amor, de brilho,
sem cair no pieguismo. Para o povo e para os artistas ele é a
visualização das virtudes que gostaríamos de ter e que podemos ter. Ele
é a teologia da imagem. O que é a teologia da imagem?
É perceber que a transparência é carisma maior. Ser uma
pessoa verdadeiramente espiritual é a maior evangelização, a maior
missão, a maior pastoral que existe. Ele é o que é! Onde passa, toca,
fala e acolhe, ali nasce alguma coisa. Ele é o santo do Amor, da paz,
da convivência. Ama intensamente e deixa que o Amor viva intensamente
nele. O Amor se fez forma nele e o estigmatizou. Ele incorporou todos
os dons que um humano pode receber do Divino.
As imagens, quadros e esculturas sobre Francisco querem
dizer o que? Elas são uma constante recordação de que precisamos a cada
dia encher a nossa vida do Belo e do Bom. Ele é uma coisa boa de
ver-se! Olhar o santo e encher-se de graça. Não é a adoração de um
ídolo, mas é abraçar um modelo referencial de grandeza. São Francisco
desejou ardentemente fazer o bem. Quem faz ardentemente o bem em vida
continua fazendo o bem após a morte. Quem ama intensamente sempre se
eterniza em todas as representações. Quem não vive para si mesmo
ultrapassa a barreira do tempo e se atualiza numa obra perene.
Ele teve a firme e forte vontade de realizar tudo o que
queria, por isso permanece. Ao vê-lo nós refazemos a nossa vontade, às
vezes tão fragmentada. Olhamos para ele para cuidar do Espírito. Hoje, o
mundo das agências de top models olha para a representação humana para cuidar de que?
Francisco transmite uma energia divina vivendo no humano.
Ele é a expressão simples e reveladora da pureza de coração, da
mansidão, da fortaleza, do amor fecundo. Ele é uma sensibilidade
suspensa no ar, numa vitalidade que transparece. Num coração aberto
para o Absoluto, o Pai sempre deposita sua beleza. Os artistas captam
isso com mais facilidade e mostram que o espírito sempre trabalha na
imagem. Não seria este o segredo de tantas representações? Quem vê um
belo panorama se enamora, se encanta.Se nos colocarmos diante do vazio,
como apaixonarmos?
- Frei Vitório Mazzuco cursou Teologia e Filosofia, em Petrópolis, e fez pós-graduação em Teologia Espiritual, na Pontificia Università Antonianum, em Roma, obtendo o mestrado. Sua tesina, publicada em forma de livro, leva por título: “Francisco de Assis e o modelo de amor cortes-cavaleiresco: elementos cavaleirescos na personalidade e espiritualidade de Francisco de Assis” (Vozes 1994). Atualmente, ele é reitor do Santuário de Santo Antônio, no Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro, professor de Franciscanismo, em Piracicaba, no Rio de Janeiro e em Petrópolis. Também é pesquisador do IFAN (Instituto Franciscano de Antropologia), entidade ligada à Universidade São Francisco de Assis, em Bragança Paulista, e dedicada às áreas de Franciscanismo, Teologia e Ciências da Religião, Estudos Humanísticos, Estudos da Cultura Moderna e Pastoral.
- Extraído de http://www.franciscanos.org.br/itf/cursos/extensao/curso1_2011/7.php acesso em 10 nov. 2011.
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