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quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Virtudes franciscanas


Para o franciscanismo
o humano é a sinfonia de Deus
 

Frei Vitório Mazzuco, OFM*

Chegamos num ponto de nosso percurso onde vamos tratar das Virtudes tipicamente Franciscanas. Já refletimos, preparando esta parte, sobre a Virtus  in  medio. Esta expressão vem de um ditado latino, muito em evidência no período medieval, que significa: a virtude está no meio. Meio aqui entendido como ponto de equilíbrio, a força que vem daharmonia. Um processo que inspirava os penitentes de então: a contínua eliminação de excessos, para chegar à medida exata do coração, e com serenidade, superar as vicissitudes e perturbações. Como diz Hermógenes Harada: “Há a versão “soft” e a versão “hard” dessa harmonia preestabelecida. A “soft” diz que a pessoa virtuosa é sem tribulações e contrariedades. Sem cortes abruptos e sem por limites bruscos na sua personalidade. É como as águas mansas de um lago sem ondas. Está no gozo da harmonia perfeita, natural. Nela, dificuldades e desgastes, suores e sofrimentos do árduo mourejar estão superados e não podem existir. É a serenidade das águas mansas. A versão “hard” diz: o virtuoso é um lutador. Deve ser firme, impávido, estóico, imutável e disciplinado. Domina soberano todas as suas paixões. É senhor de si e das situações. É a fortaleza das rochas no meio das águas impetuosas”.

O caminho das Virtudes tipicamente franciscanas passa pela busca incansável dos dons e frutos do Espírito, pelos Conselhos Evangélicos, que são tantos, mas intensamente convergentes nos três conselhos que se tornam Votos: Obediência, Pobreza (sine proprium) e Pureza de Coração; e tem muita inspiração nos votos cavaleirescos. Se a força do Movimento que nasce naquele momento e move Assis, transforma-se em Ordem e abala o mundo, foi um caminho de virtuosidade, e que bebeu em seu tempo os anseios por uma qualidade humana; hoje também estamos numa época, em que na moral, na ética, na teologia, na espiritualidade, na filosofia de identidade, volta-se a falar de virtudes. Antigos tratados são retomados à luz dos desafios de novos tempos.

Na passagem entre a era industrial e a época pós-moderna, a pessoa virtuosa era considerada aquela que tinha ares e práticas consideradas piedosas e beatas. Hoje se destina e molda pessoas de beatitude, isto é, pessoas realizadas, felizes, vigorosas, éticas, modelos vivos, engajadas em causas nobres da contemporaneidade. Hoje pessoas virtuosas são aquelas que estão no empenho e desempenho de superar-se. Diz Mestre Eckhardt (1260-1327): “O humano não deve achar sua obra boa, por melhor que ele a tenha executado, a tal ponto de se sentir nela à vontade e assegurado de si. Pois, se tal acontecer, a sua capacidade de captar, a sua razão se tornará preguiçosa e adormecerá. Antes, deve continuamente se levantar e erguer-se, com ambas as forças de seu ser, isto é, com razão e vontade, e neste alçar-se, agarrar o melhor de si, a sua identidade, no mais alto grau. E, com cuidado e ponderação, precaver-se, por dentro e por fora, contra toda e qualquer falha nessa ação. Se assim o fizer, ele jamais perderá o ser em nenhuma coisa; antes, crescerá sem cessar em alto grau” (ECKHARDT, Meister, O Livro da Divina Consolação e Outros Textos Seletos, Petrópolis: Vozes, 1991, p 110).

Voltemos ao tema das Virtudes tipicamente Franciscanas. O mundo de seguidores da vida franciscana tem como modelo São Francisco de Assis, um homem virtuoso. Ele mesmo personalizava as virtudes, por isso as chamamos tipicamente franciscanas. Diz o grande historiador Jacques Le Goff: “(Francisco) revela a profunda marca de um amor cortês que confere admirável expressão aos sentimentos do santo por sua dama, a Senhora Pobreza, e ao seu “amor intenso e genuíno pelo próximo”, sem falar da “cortesia fraterna” em relação a toda criação, inclusive “nossa irmã Morte corporal”, dádiva graciosa de um senhor em quem se encarna um ideal feudal interiorizado em termos de família, pai, mãe, irmão, irmã.”( in: Frugoni, Chiara, Vida de um Homem: Francisco de Assis, São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 12.) .

Por que virtudes tipicamente franciscanas? Por ser o modo, o ponto de vista, ou melhor, o ponto de partida, da aventura do Espírito para elucidar o sentido da vida. É o dever ser, a força ética, o jeito próprio de morar e reconstruir a moradia. O “ethos” franciscano tem um jeito típico de educar, disciplinar, cultivar uma identidade sonhada. É o “eu devo”, “eu posso”, “eu quero” percorrer um caminho virtuoso. “De boa vontade o farei, Senhor! ( LTC, 13) É formar-se, de olho nas Fontes Franciscanas e Clarianas, perceber a força que deu qualidade a um grupo humano nobre, fraterno, humano e divino ao mesmo tempo. Elas brotaram da verdade de quem olhou as manifestações do Espírito, abraçou como comprometimento a Boa Nova, as virtudes do Evangelho, Jesus Cristo, Francisco de Assis, Clara de Assis e a essência do humano que daí se revela. Melhorar o humano é entrar numa escola de virtudes e dar um acabamento melhor ao humano, experimentando o que a experiência franciscana traçou e viveu como projeto de vida. Nem sempre sozinho conquisto uma identidade; mas é a tarefa de refazer a boa caminhada de muitos.

Vamos elencar Algumas Virtudes Tipicamente Franciscanas:

MINORIDADE: É a renúncia do status de quem tem, pode e sabe. É não apropriar-se do próprio poder, mas conviver com a força de tudo e de todos. É a renúncia da superioridade. Se o mar, vindo da potência de sua interioridade, não tivesse a coragem de morrer mansamente na praia, não haveria o espetáculo das ondas, não haveria a magia da praia. Muitos ligam a minoridade à pobreza, ao desapego, a desinstalação. Isto é, apenas uma natural consequência, uma irradiação do ser menor. A minoridade é um modo de ser, uma forma de vida. É a conformidade com a grandeza e onipotência de um Deus que se revelou na simplicidade de um Menino.

Um Deus, que no seu amor tão grande Encarnou-se em Jesus Cristo e experimentou estábulo, manjedoura, fuga para o Egito, ceia, lava-pés, colocou o coração divino nas mãos, nos pés, nas palavras e se misturou na paisagem do humano. A minoridade remete à vassalidade, ao serviço, ao ser servo. Na Carta aos Fiéis, 47, diz São Francisco: “Nunca devemos desejar estar acima dos outros, mas antes devemos ser servos e submissos a toda humana criatura por causa de Deus”. É não usar o cargo como cargo de mando, mas de serviço prestado por amor. Ser menor é amar com um amor que não faz acepção de pessoas. Ama a todos incondicionalmente, ricos e pobres, bons e maus, fracos e fortes, amigos e inimigos, simpáticos e antipáticos. Ser menor é não querer estar acima dos outros ou acima de tudo, mas testemunhar uma presença silenciosa e amorosa.

A minoridade é a humanidade da Divindade. É ver a gritante simplicidade como Deus ama e, sob o filtro do Evangelho, amar assim do jeito do Deus de Nosso Senhor Jesus Cristo. A minoridade é a consciência e a afirmação do ser criatura. Ser pequeno diante da grandeza de o todo ser criado, ser irmão e irmã de toda família criatural, estar num perene estado de gratidão e graça. É como o primeiro e remelento olhar de criança se abrindo ao mundo num encontro de brilhos. A minoridade é fé; não no sentido de conjunto de doutrinas para se crer, mas como admiração, enamoramento, abandono ao colo da vida. Ver todas as coisas com olhar de poeta e sentir-se um nada diante da grandeza de tudo.

BELO, BOM, BONDADE: O grande mestre de Paris, o franciscano Alexandre de Halles, sintetiza esta força virtuosa criando a reflexão sobre o Belo e o Bom, a estética franciscana. O que é o belo e o bom? Ele mesmo, entra no hábito franciscano, vai para dentro da academia com os pés descalços e o máximo despojamento, na fluência da transparência do simples e natural. Ele diz que o belo e o bom revelam grande expressividade da mística da Encarnação: o Deus Humilde aparece na beleza da Criança, na tessitura da bondade. É a redescoberta do que a vida tem de melhor: convocação divina e convocação do amor! O Belo é o transparente e o transcendente, o Uno e o Vero. O Belo é sempre percepção, chamado, apelo, um grito para perceber o real, o palpável, o sensível. Não podemos estar no grito de abandono de todas as coisas, é preciso vê-las, percebê-las, senti-las. A forma do Belo, (ver a Beleza de tudo o que é), torna-se amada e imitada, cria o discipulado e arrasta. Não basta só um entusiasmo inicial, é preciso um dinamismo constante, um impulso de vida exercitado na convivência com o valor de todas as coisas. Quanto mais você entra neste dinamismo mais se torna vivaz (percebe a vida que está dentro) e mais a vida floresce; então se descobre a arte da vida. O que é a Arte, ou melhor, a virtuosidade da Arte? É ser um artista da vida. O artista é aquele que vive imerso nas estruturas da vida e nelas coloca a sua profundidade, a sua interioridade, a sua sensibilidade. Neste sentido, é preciso, ser, ter, fazer e conhecer a arte para se ter um projeto de vida.

O franciscanismo é um modo místico, espiritual, existencial, cultural e sensível de estar na vida. Não é só aplicação técnica de uma filosofia de vida ou postura de vida, mas é saber que a vida é Arte Divina e Arte Humana, é Lógica de Amor, isto é, um grande encontro entre a inspiração, o sopro, o hálito que dá vida a tudo com o Humano, com o Divino e a Fraternidade. A partir daí o belo não basta, é preciso ser bom.

O que faz a pessoa bonita é a Bondade. A bondade é uma virtude; e a virtuosidade, como um conjunto de virtudes, é a beleza maior e a mola propulsora de todos os gestos de amor e cuidado. O que faz o mundo bonito é a bondade esparramada de todas as coisas: “Louvado sejas, meu Senhor, pela 
Irmã Água que é mui útil, humilde, preciosa e casta”.

A fecundidade da vida vem deste movimento. A terra boa é o coração belo e bom. Esta é a síntese da perfeição. O belo é a expressão natural e perfeita do bem. O bom é a plenitude da caridade. Francisco viveu esta experiência. O mestre da Paris escreve e impulsiona esta reflexão. Alexandre de Halles descobre a filosofia franciscana da Beleza como difusão do Bem: esta é a verdadeira estética do Simples.

O invisível e o visível, a essência, a medula, a profundidade tomam forma, quantidade, cor e qualidade. Sai de si e atinge o humano. Como um ato amoroso da vida toma forma num corpo. Torna-se figura, imagem. Como? Com o vigor da simplicidade, da transparência. Para isso é preciso saber sentir, escutar e ver. Sensibilidade à flor da pele, a Palavra nos ouvidos e a Imagem nos olhos. Perceber e amar. Escutar e crer. Ver e professar. Disto surge uma bela e boa espiritualidade. Para o franciscanismo ver, falar e escrever e igual a pintar. As virtudes do belo e do bom nos fazem artistas que esculpem e pintam o mais belo quadro da Paisagem do Humano e da Paisagem do Divino. Somente assim a palavra ressoa e refulge, encarna-se, plastifica-se. Somente assim podemos compreender Francisco, o canto das criaturas. Francisco não quer possuir as criaturas, mas cantar o valor e a beleza que elas possuem. É a arte de conhecer e reconhecer os dons e as virtudes da existência. Reconhecer é fazer então uma nova criação. Recriar com o Criador. É perceber que o Belo é alegria e o Bom uma sabedoria criadora; enfim, é ver todo o criado impregnado de Beleza. Para o franciscanismo o humano é a sinfonia de Deus e por isso deve conquistar a harmonia espelhando-se na harmonia do natural.

Quando alguém é unificado por uma intensa experiência afetiva e espiritual torna-se uma fonte. O movimento franciscano, que brota da estética do belo e do bom, tem sua base em alguém: a experiência concreta e vital de Francisco de Assis, um homem de coração enamorado pela vida e pelo Deus da vida! O seu forte amor progressivo e cheio de energia faz com que ele e seus seguidores e seguidoras tornassem criadores e criativos. Daí surge uma arte de viver. A fonte da Arte Franciscana é a paixão. O apaixonado é sensível, antenado, real e contemplativo. Escolhe o natural e transforma o natural numa linguagem. O natural sempre nos atinge e nos refaz. Existe a Beleza do Simples? O que é a Beleza do Simples? É descobrir e fazer aparecer o modesto em sua força. Uma fragilidade que é potência. A grandiosidade da vida, do mundo e das pessoas só é dada para quem tem os olhos voltados para esta Beleza.

Queria abrir, neste ponto da reflexão, um fato que a meu ver é um fenômeno que vem do Belo e do Bom. São Francisco é o santo mais representado na iconografia. Podemos ir muitas feiras de artesanato, em lojas de artigos para presentes, em loja de antiguidades e outros objetos de decoração, em lojas de artigos religiosos, em bancas de artistas autônomos e anônimos, em galerias de artes e em muitas exposições de pintura e escultura; sempre estará ali uma imagem, um quadro, um banner, um pôster, um arranjo com São Francisco. Muitos artistas, religiosos ou não, o moldam e pintam. Por quê? Será porque há estudiosos do fenômeno religioso que o apontam como o maior herói religioso depois de Jesus Cristo? Ou porque ele é um arquétipo humano, o melhor de nós, uma expressão cristalina das virtudes que sonhamos. O humano divino que gostaríamos de ser. Ele, no seu modo de ser natural, foi pródigo, nobre, jovial, cordial, magnânimo, penitente, generoso, amigo, cavaleiro, terno e fraterno. Criou uma revolução de amor e, por isso mesmo, tornou-se um reformulador social e eclesial. Permanece para sempre nas representações da humanidade porque tinha consciência historial, vive intensamente a sua época e mostra algo de novo para o seu tempo. Um homem cheio de encontro, de amor, de brilho, sem cair no pieguismo. Para o povo e para os artistas ele é a visualização das virtudes que gostaríamos de ter e que podemos ter. Ele é a teologia da imagem. O que é a teologia da imagem?

É perceber que a transparência é carisma maior. Ser uma pessoa verdadeiramente espiritual é a maior evangelização, a maior missão, a maior pastoral que existe. Ele é o que é! Onde passa, toca, fala e acolhe, ali nasce alguma coisa. Ele é o santo do Amor, da paz, da convivência. Ama intensamente e deixa que o Amor viva intensamente nele. O Amor se fez forma nele e o estigmatizou. Ele incorporou todos os dons que um humano pode receber do Divino.

As imagens, quadros e esculturas sobre Francisco querem dizer o que? Elas são uma constante recordação de que precisamos a cada dia encher a nossa vida do Belo e do Bom. Ele é uma coisa boa de ver-se! Olhar o santo e encher-se de graça. Não é a adoração de um ídolo, mas é abraçar um modelo referencial de grandeza. São Francisco desejou ardentemente fazer o bem. Quem faz ardentemente o bem em vida continua fazendo o bem após a morte. Quem ama intensamente sempre se eterniza em todas as representações. Quem não vive para si mesmo ultrapassa a barreira do tempo e se atualiza numa obra perene.
Ele teve a firme e forte vontade de realizar tudo o que queria, por isso permanece. Ao vê-lo nós refazemos a nossa vontade, às vezes tão fragmentada. Olhamos para ele para cuidar do Espírito. Hoje, o mundo das agências de top models olha para a representação humana para cuidar de que?

Francisco transmite uma energia divina vivendo no humano. Ele é a expressão simples e reveladora da pureza de coração, da mansidão, da fortaleza, do amor fecundo. Ele é uma sensibilidade suspensa no ar, numa vitalidade que transparece. Num coração aberto para o Absoluto, o Pai sempre deposita sua beleza. Os artistas captam isso com mais facilidade e mostram que o espírito sempre trabalha na imagem. Não seria este o segredo de tantas representações? Quem vê um belo panorama se enamora, se encanta.Se nos colocarmos diante do vazio, como apaixonarmos?
  • Frei Vitório Mazzuco cursou Teologia e Filosofia, em Petrópolis, e fez pós-graduação em Teologia Espiritual, na Pontificia Università Antonianum, em Roma, obtendo o mestrado. Sua tesina, publicada em forma de livro, leva por título: “Francisco de Assis e o modelo de amor cortes-cavaleiresco: elementos cavaleirescos na personalidade e espiritualidade de Francisco de Assis” (Vozes 1994). Atualmente, ele é reitor do Santuário de Santo Antônio, no Largo da Carioca, na cidade do Rio de Janeiro, professor de Franciscanismo, em Piracicaba, no Rio de Janeiro e em Petrópolis. Também é pesquisador do IFAN (Instituto Franciscano de Antropologia), entidade ligada à Universidade São Francisco de Assis, em Bragança Paulista, e dedicada às áreas de Franciscanismo, Teologia e Ciências da Religião, Estudos Humanísticos, Estudos da Cultura Moderna e Pastoral.
  • Extraído de http://www.franciscanos.org.br/itf/cursos/extensao/curso1_2011/7.php acesso em 10 nov. 2011.

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